Alarme vizinho

O médico disse-me: - “Não é assim tão grave
não sair de casa, nem tapar as paredes
com musgo e palhinhas,
com alguns excrementos de animais e pauzinhos
como se fosse um ninho...É mesmo assim,
devemo-nos sentir bem na nossa própria casa...”.
- “compreensível senhor, agradeço-lhe mas
por favor, visite-nos, porque, para além desta
minha particularidade tenho uma irmã
que toca violino com cordas de tripas de gatos
à janela do sótão vestida como a República...”

Tudo com os seus limites

Uma artista de circo de idade avançada e a ver aproximar-se os dias da reforma, pensa em como será viver sem o sentimento de glória que lhe transmite os aplausos da platéia. Pouco ou nada pode fazer, afinal a idade não perdoa mesmo e as cirurgias além de impossiveis económicamente também não resolvem a velhice muscular que vai sentindo nestes últimos anos. Sente-se pertença do circo, foi aqui que viveu, foi com estas pessoas que aprendeu a ser gente.
Embrenhada nestes pensamentos, abre a porta e desce as escadas da roulote onde vive. Pousa os pés no chão. Uma lágrima lenta percorre a face e cai no chão, acentando a poeira da tarde ventosa de verão, mesmo ao lado do seu pé esquerdo. Apaga-a com terra seca vinda por debaixo do pé direito. Um gato chega-se perto e procura a lágrima com as patas da fente mas distrai-se, esquece-se da lágrima e entretém-se com um escaravelho que entretanto encontrou escondido debaixo do pó. O escaravelho escapa-se - abre as duas partes da carapaça e mostra dois pares de asas semi-transparentes azuis turquesa e voa. A artista segue a sua rota hipnotizada pela cor das asas até ao buraco de uma árvore que, de tão grande, a temperatura é muito fria perto do tronco. Uma vez chegado ao buraco da árvore, do escaravelho saem duas pernas como as que têm as gazelas só que em tamanho de escaravelho e as asas azuis, junto com a carapaça, caem como um casaco pesado. Agora mostra-se um corpo de homem jovem numa estatura de um palmo de altura medida pela mão de um adulto de estatura média. A caminhar entra pelo buraco para dentro da árvore. (sabe-se agora que este é um lugar mágico). Sem se atrever a entrar, sem se atrever a deixar o lugar e porque as possibilidades de um lugar mágico são infinitas e o seu é um corpo visívelmente finito, a artista tapa o buraco da árvore.

Ténis

No final de uma tarde de verão em Istambul, num court de ténis, duas raparigas disputam um torneio amigável. Ouvia-se a batida das raquetes nas bolas ao mesmo tempo que se soltavam os sons da respiração esforçada das jogadoras, depois os aplausos, as assobiadelas e o júri, a marcar pontos. O resultado foi um empate técnico. Uma das jogadoras saiu dos balneários para casa. Não sem antes se despedir das amigas de infância que como ela começaram a treinar ténis desde muito cedo e dos sócios do court que estavam no bar – tudo gente de boas famílias que a conheciam tão bem. Nessa noite acordou com um golpe fulminante nos pulmões. Foi hospitalizada e acompanhada durante toda a noite até ao raiar de um novo dia. O médico quis falar comigo:
- “Ela tem uma doença que lhe roubou o ar dos pulmões, mas que nada tem a ver com estes, a doença invadi-la-á com regularidade e sempre desta maneira, em contacto com algo absolutamente inexplicável do exterior, que pode ser uma sensação, um insecto, um objecto, um edifício, um sopro de ar. Não há tratamento, há no entanto que tomar decisões: há no momento presente duas, que você tem que me ajudar a escolher. Se ela sair e se expuser morrerá de imediato, mas se se fechar em casa (ou num espaço razoavelmente ventilado interno), tem que ser para sempre, sem volta a dar, e se por acaso sair, vai perder todas as forças aos poucos e no termo de dias morrerá.”
Respondi-lhe: - “podemos injectar-lhe aos poucos um pouco do exterior para que se habitue e fique preparada, enquanto isolada, para que o efeito de exposição não lhe seja fatal. O que lhe parece?”.
- “Parece-me razoável, mas não resolverá nada para já...”
- “E porque me pergunta a mim?”
- “Porque tem os mesmo sintomas, mas vai com dois anos de avanço aqui no hospital”

Síndrome Buck Rodgers: Podia ter escolhido viagem no tempo mas fica para outra história.

Há poucas pessoas que podem afirmar sentir esta sensação de não pertencer ao lugar onde se passou a maior parte da sua vida. É o que sinto hoje nesta festa. Reconheço o lugar, as pessoas, mas já não são mais as mesmas, elas viveram, umas com as outras, voltaram a encontrar-se e podem contar histórias desses encontros. Pergunto-me se me reconhecem, o que é pouco provável. Tenho marcado o tempo de ausência com deformações ligeiras devidas às distorções dos músculos e tendões, coisa muito frequente e à qual a ciência ainda não encontrou solução. Uma doença rara foi só o começo, depois a falta de conhecimento e consequentemente o impossivel diagnóstico e tratamento acabaram por ditar o meu destino. Tive que esperar, inconsciente, mergulhado num líquido do qual não recordo nem cor nem cheiro, até que alguém encontrasse a minha solução. Resolvendo-me físicamente fiquei de novo capaz de viver no quotidiano, fazer parte das histórias.

Crime sem recompensa

Pensavam que era um homem e por isso nunca incomodaram quando entrava na casa de banho ou em qualquer outro síitio exclusivamente masculino. Iniciou o hábito de sair em clubs gay, de ir ao futebol e mais tarde encontrou um emprego na construção cívil onde não faziam muitas perguntas e pagavam no dia combinado.
O disfarce era perfeito, o que tornava o seu crime também perfeito.
Agiria novamente e da mesma forma inesperada e violenta, como mulher, encontradas as condições apropriadas.

Ondas

Com muita frequência sonho que estou numa praia. Acordo sempre com a impressão que a água se aproxima e que me vai engolir. É um sufoco. Hoje aconteceu-me o mesmo. Saí para o café habitual com a estranha sensação que encontraria a reposta - em algum sítio, através de algum sinal ou por associação livre - para este sonho que me persegue. Pedi o café e o jornal. Mais um miúdo morto levado pelas ondas que simplesmente brincava na areia com os priminhos...

Concepção

Na presente situação o melhor é esperar que nos calhe um ou dois no sorteio. Estão inscritos mil milhões, entre homens e mulheres, só para o deste trimestre. Como têm em consideração a quantidade de vezes que nos inscrevemos e a primeira foi há cinco anos, penso que desta vez temos sérias possibilidades. Como se sabe, as crianças concebidas naturalmente, olhando aos casos raríssimos de que anda se houve falar, nascem cheias de malformações muitas das quais só se vão manifestar na idade adulta. Por isso entrar no sorteio de embriões dos laboratórios é a melhor opção. Tentar em casa com o kit de bioquímica é muito arriscado. Afina não estamos a falar da planta para criar e comer com o jantar da semana que vém, mas de um filho para criar e tomar conta até à idade em que já pode se juntar aos bandos de jovens e viver a sua vida.

Entre Família

Ao final de um dia de Verão, no interior de uma casa dos subúrbios, à mesa de jantar, uma família põe a conversa em dia: o trabalho, a escola, as notas e a cadernetas de faltas, a vida dos vizinhos e os novos ricos que se mudaram para o lado, a família que os vem visitar em breve e os doentes...muita gente doente com a chegada da Primavera.
- “Mãe, está ali um senhora a espreitar pela janela”.
- “Quem é? ...Não gosto que nos incomodem durante as poucas horas que temos em conjunto...ignora querida”, respondeu a mãe.
Tocam à campainha. Insistem, insistem muitas vezes e depois desistem.
- “Que maçada...que dizias tu querido sobre o teu colega estar doente?”
- “Parece que vai ser transferido para uma zona segura para ficar de quarentena, ele tentou explicar-me, mas eu não tive tempo...”, responde-lhe calmamente o marido e prossegue: “parece que não é da Primavera é uma doença rara que vai passar aqui pela zona, apanha os mais débeis com maior facilidade, mas é contagiante para a maioria...disse-lhe que gostaria de o ouvir falar mais do assunto, mas que tinha que vir jantar!”

Um contracto

Mete-se o dedo indicador, com a palma da mão virada para cima, dentro do buraco localizado na axila e assinalado com um ponto na tatuagem que foi feita aquando da operação. Deve ficar com o dedo introduzido até à palma da mão. De seguida dobre o dedo em forma de gancho.
Peça-lhe agora que lhe olhe de frente pois assim que tocar no local correcto a reacção será imediata e vai perceber isso na forma como olha para si. Uma vez realizado este procedimento terá ao seu dispôr um companheiro adulto e maduro que satisfará todos os seus desejos, mesmo os mais profundamente inconscientes. Estará portanto mais próximo de saber e obter o que realmente quer.
Obrigada pela escolha.

Saltos Altos

Um velho mágico andava sempre com uma mala na mão. Corria o boato que o homem tinha a própria mulher desfeita dentro da mala.

Enquanto fora sua assistente houve um espectáculo que tinha corrido mal e desde então a mulher estava desaparecida. Colocaram-se anúncios no jornal, falou-se disso na televisão, mas ela nunca mais apareceu. O velho ainda trabalhara por mais uns anos – sempre com a mala fechada – mas depois tornara-se amargo, deixou de comparecer aos espectáculos e retirou-se para vagabundear pelas ruas e isolar-se num quarto de hotel.

Um dia, o velho aparece morto. Apanham o assassino por acaso enquanto fugia com dificuldade. A mala caiu e abriu-se, tinha centenas de jóias emaranhadas umas nas outras. O assassino esticado no chão é descoberto: a mulher, que durante anos tinha esperado pelo momento de recuperar a fortuna do velho. Foi atraiçoada pelos sapatos de saltos altos e finos. Cá fora espera um jovem: o ex-assistente do velho, que na altura tinha 8 anos e que fugira com a mulher dos seus sonhos, 30 anos mais velha.

O excesso e a sabedoria

Há um ilha, algures escondida entre campos e florestas, que é formada por uma área de terra bem demarcada e que se distingue do restante material de que é feita a paisagem que a rodeia. Os seus habitantes raramente desejam ou precisam de sair da ilha pois as comunicações à distância estão de acordo com os protocologos internacionais e possibilitam a troca de informação com qualquer parte do mundo em qualquer altura. A ilha é, em geral, invisível e no entanto ambas as vias (de entrada e saída) são possiveis. É o desejo (a vontade de querer) que torna este pedaço de terra visível ou invisível e consequentemente acessivel ou não. Nesta ilha cada individuo vive dois lados opostos de si que não sabia existirem até aqui chegar: experimenta por vezes a total perda de controle sobre si mesmo e outras vezes experimenta uma sensação de se conhecer plena e totalmente. Tal como a ilha dá lugar à paisagem quando está invisível e se sobrepõe a esta quando visível - tão somente porque alguém assim o desejou; igualmente, os seus habitantes, sob influência do magnetismo da ilha, mostram-se colectivamente participantes em manifestações de loucura descontrolada e outras vezes manifestam uma tranquilidade só possivel nos seres que estão em sintonia consigo mesmos.

Fogo - Pedra - Água

Numa aldeia onde deflagrava um fogo com enormes labaredas saiu de uma casa uma pequena criatura feminina com um gato ao colo. Não era possível reconhecer o rosto da criatura e ninguém sabia de quem era o gato. Quando chegaram os proprietários da casa, que foram chamados ao sítio, disseram que só lá viviam os dois há mais de quarenta anos. À medida que a criatura avançava muito lentamente em direcção à povoação, as chamas afastavam-se. Perto do primeiro bombeiro disse-lhe – “segura-me no gato que eu vou fazer xixi”. Virou-se para a casa em chama, puxou as saias e urinou no fogo como se fosse um jacto de água de um camião-cisterna. Depois de apagar o fogo da casa e de toda a aldeia, e para surpresa de todos, pegou no gato dos braços dos bombeiros e voltou a entrar em casa. O casal agradeceu, mas nunca mais lá quis viver. Apenas depositavam flores, velas e deixavam pedidos à entrada.

Uma mulher por trás de cada homem

Aos quarenta tivera já três maridos. Entre eles partilhavam uma estranha coincidência - o facto de terem ganho o primeiro prémio do totoloto. Isto aconteceu no primeiro ano depois de cada casamento e todos os seus maridos faleceram no ano seguinte.
Este caso foi objecto de estudo das mais variadas ciências e da curiosidade dos media nacionais e internacionais. Investigaram a sua vida diversas vezes à procura de um esquema ou artimanha. Em sua defesa ela dizia que sentia o cheiro do dinheiro a anos de distância. Para a morte não há explicação.

Estrelinhas

Dois irmãozinhos brincavam na areia junto ao mar. Apanhavam estrelitas do mar para mostrarem aos amigos mal chegassem à escola. Com uma pazinha a rapariga tirava porções de areia para um balde, enquanto o irmão ia ao mar despejá-lo. À superfície da areia, sob um sol tórrido, estavam dezenas de estrelinhas que muito lentamente procuravam sobreviver. Já perto do meio dia, a rapariga escavara tão fundo que estava metida numa cova que lhe tapava a cabeça. Satisfeita com o que encontrara, deu o trabalho por terminado e tentou sair, mas não conseguiu. Ainda pediu ao irmão para chamar ajuda, mas este estava agora a brincar com um papagaio e tinha-se distraído da brincadeira com a irmã.

olho por olho, dente por dente

A Sra Y morava desde há uns meses numa casa de repouso. Com quase oitenta anos sabia ter vivido já todas as aventuras, todos os medos e todos os desejos que na sua vida teria tempo de imaginar e realizar. Todos menos um. Este seu desejo, ainda por realizar, tinha nascido de uma curiosidade infantil por saber do que é que as coisas são feitas e o que se esconde para além do que vemos.
Fraca pela idade, consciente do horror que causaria se revelasse a sua curiosidade a alguém, a Sra Y decide realizar o seu desejo sem a ajuda de ninguém e com o mínimo de esforço físico possível.
Esta manhã, à entrada da casa de repouso encontra-se a polícia para desvendar o caso de um olho roubado. A sra Y encontra-se num estado débil, mal fala e está acamada. Não pode prestar depoimentos sobre o olho que foi retirado à sua amiga do quarto ao lado na noite anterior.
Depois dos calmantes silenciarem a casa, ontem à noite, a Sra Y dirijou-se ao quarto ao lado. Cuidadosamente tapou o olho da sua amiga que ficaria intacto com um penso. O outro retirou-o com a ajuda da placa dentária. O olho foi literalmente arrancado à dentada. Foi deitar-se. Durante toda a noite sentiu, de olhos fechados e ás escuras, o olho alheio com os dedos, com a palma da mão, com o céu da boca, com todo o seu corpo.
Num planeta que rota em torno de vários sóis, situado numa galáxia em que o tempo decorre originalmente lento (em comparação com outras galáxias conhecidas), vive uma raça de hominídeos que a história dos mundos esqueceu.
Esta população de hominídeos ocupa uma área do planeta restrita e definida pelas suas condições climatéricas, pelos ventos e recursos naturais. Estes seres são dotados de capacidades invulgares para a comunicação. Tudo indica que isto se deve ao facto de terem uma vida social diversa e intensa em que as relações não se definem ou hierarquizam e onde não existem protocologos de parentesco ou qualquer outro tipo de afinidade. A falta de profissões, ou seja, de especialização, deixa-os à vontade com qualquer coisa ou conhecimento que partilham entre si generosamente. De uma arquitectura estranhamente caótica e sem um conjunto de regras que defina um estilo, esta população não apresenta núcleos centrais populacionais ou centros de actividade. Tudo que é social existe, faz-se e partilha-se em qualquer lado.
No entanto são seres que regularmente se isolam. Os edifícios multifuncionais contêm áreas de compartimentos privados que pertencem a cada um dos individuos. Este é o único planeta conhecido (ainda que não oficialmente) em que a técnologia não se desenvolveu de forma a possibilitar a viagem no sentido da descoberta de outros planetas. Esta é uma das razões pelas quais este planeta não existe históricamente. Por oposição, são alguns dos outros hominídeos de outras galáxias que, acidentalmente, viajando no espaço, encontram este planeta.
Os visitantes de outros mundos sentem por estes seres uma atração inigualável devido à forma como ali são recebidos e como comunicam com todos os sentidos, de forma desarmada e sem qualquer tipo de defesas. Ao mesmo tempo sentem repulsa pelo caos social e pela falta de regras impossivel de entender e sob os quais viver. Nunca outras raças sequer consideraram colonizar, explorar ou de alguma outra forma tirar proveito ou permanecer neste planeta.

Deserto

Caminhava no deserto há dias sem gota de água para beber quando encontrou uma tartaruga gigante virada ao contrário. Perguntou-lhe: “conhece a saída?”. “siga em frente” – responder a tartaruga. O homem hesitou, coçou a cabeça e parou para pensar aninhado na sombra de um cacto. Dado que a tartaruga era velha e tinha um ar sábio acabou por prosseguir caminho em frente confiante que depressa chegaria a casa. 300 metros à frente olhou para trás e a tartaruga tinha desaparecido. Quando se pôs de novo a caminho, avistou de novo a tartaruga.

Social Convencional

Com regularidade encontram-se casos de homens que irregularmente se masturbam quando as rapariguinhas passam pela manhã nos jardins da cidade a caminho da escola.
São oito da manhã e M que tem dezasseis anos redondinhos mas rijos vai a caminho de mais uma Terça-feira escolar. O habitual. Ao longe um vulto mexe-se e M já sabe que vai ter mais um encontro com um masturbador matutino e crónico. Respira fundo, este não será diferente dos demais que encontra nos outros dias da semana e nos outros dias do mês. Aproxima-se e M caminha em frente. Abre o casaco só na parte de baixo, as calças já estão abertas, a mão que passou por um bolso cumplicemente rasgado agita-se vigorosamente. M e o masturbador encontram-se frente a frente. Ele entra em convulsão como que possuído. M Despe-se e masturba-se também. São estes os momentos realmente raros mas que acontem a quem se encontra em certas situações. Dado o espanto e o bizarro pelo facto de a presente rapariga não fugir ou no mínimo ignorar, o masturbador, demasiado chocado ou extasiado, tem um ataque cardíaco e apaga-se no chão em extase ou agonia (difícil de perceber a diferença).
A notícia chega aos jornais em letras bold - XXXL, os leitores ajuizam que os gostos e o exibicionismo da muito jovem M são desrespeitosos para com cidadãos mais velhos e para com o estatuto social e familiar do defunto. Mais tarde, em tribunal, é condenada por homicídio, atentado ao pudor e subversão dos valores morais e sociais da corrente época.

Dor de cabeça

L. estava a almoçar na cantina da escola. Tinha cinco anos e sempre fora difícil para se alimentar. Quando lhe colocaram no prato a sopa voltou a pedir, como aliás fazia todos os dias, que lhe fosse retirada a obrigação da sopa porque lhe criava um certo mal estar na garganta. Como resposta obteve um olhar fulminante da empregada gorda que quase lhe despejou a terrina com líquido a ferver em cima. L deitou os olhos ao prato e desta vez não começou nenhuma fita que a condenasse a um castigo pior que comer as duas colheres de sopa. Os colegas, tal qual um publico ansioso, relaxou e riu-se com gozo. Distraídos a trocarem comentários brincalhões não repararam que L tinha a cabeça à roda. Ao fim das primeiras voltas o corpo já estava morto por asfixia. À centésima a cabeça destacou-se do resto e rolou até aos pés da cozinheira.

Passado Perfeito

Saiu de casa e desapareceu por entre as árvores da floresta de pinheiros.
Chegou aqui há umas semanas, convidei-a para me visitar nesta casa isolada do mundo, onde vivo (literalmente) com os meus fantasmas. É minha amiga de longa data, já não nos víamos há muitos anos, e alguns dos meus fantasmas também são dela. Foi por isso que veio, porque queria encontrar as pessoas que faziam parte da sua vida de outrora e que habitam agora este espaço sem a condição de lhe pertencer físicamente. Desesperou muitos dias porque nada se parecia com o que imaginava serem os fantasmas. À medida que desembrulhávamos o passado em longas conversas ficava mais pensativa, mais calada e fazia-me constantemente perguntas sobre as pessoas que conhecíamos ambos. Durante estes dias aqui descobriu novas facetas dos que conheceu, comigo reviveu a sua vida com eles - as pessoas, agora fantasmas, estavam transformadas e ela preferia congelar o tempo terminando a história com este momento.

Inocência

Acordou e ficou imóvel a pensar neste dia como mais um da sua vida em que se repetiriam em tarefas banais e cliché da vida moderna e cosmopolita.
Ao levantar-se, o chão cortou-lhe os pensamentos ainda mornos e dormentes, sentia-o demasiado frio nos pés. Molhado até, demasiado molhado. Olhou e viu o vermelho de uma poça de sangue. A visão despertou-lhe o olfacto, cheirava a morno de sangue e no entanto sentia-se gelada por dentro, um sentimento que era agora de medo. Uma calma desculpada e ao mesmo tempo uma questão lhe preenchia os pensamentos: era uma sonâmbula presa a um antigo hábito. O marido? Era Domingo.

Cegueira

Um cego tinha o costume passear à noite nas ruas do centro da cidade com a ajuda do seu cão. O fiel amigo aproveitava para urinar e comer os restos depositados nos contentores do lixo, nas traseiras dos restaurantes. Certo dia, na companhia de outro cão rafeiro, o cão do cego apanhou uma doença que lhe modificou o seu comportamento. Subitamente tornou-se agressivo e num momento de maior instabilidade agrediu o cego com um arranhão que lhe atravessou os olhos. O cego recuperou a visão, mas a intensidade da luz cegou-o de novo. Furioso com o acidente furou os olhos ao cão com tal violência que não o cegou, mas matou naquele mesmo instante.