Porta

Era uma sala em silêncio que acordou com o som composto do martelar do relógio, do metal dos talheres a bater, do barro dos pratos, do cristal dos copos e garrafas, ao qual se juntou o som dos sapatos, do roçar dos tecidos finos dos vestidos, o tacão dos sapatos, o metal dos brincos compridos, das pulseiras e dos colares, e por fim as vozes, agudas, graves, femininas, masculinas, de crianças, de adultos, de jovens, de especialistas em ter a voz colocada, de constipados, de ...enfim.

Daí a pouco ouviu-se uma campainha, uma corrida de um par de sapatos de senhora que usa sapatos de tacão ainda com dificuldade, o rodar de uma maçaneta, o ranger de uma porta, a troca de beijos, o abraço comprido, risos e um caminhar a dois. Este devia ser o visitante esperado. Todos os outros se levantaram e bateram palmas. Eram tão energéticas, tão fortes que o som formou uma textura que parecia chuva – cada mão uma gota a cair e a encontrar uma superfície.

Da roupa do visitante ouve-se o roçar de um casaco de fazenda com as calças de uma mistura de algodão – deve ter tirado o chapéu e ter retribuído com uma vénia. Qualquer gesto se seguiu que despertou o riso até à gargalhado dos outros.

Iniciou-se a festa que acabou no outro dia de manhã. Foi quando por trás da porta voltei a ouvir sons familiares: um bocejo e os ossos dos braços a ranger ao serem esticados para se livrarem da preguiça.

Um pequeno cosmos

Um dia encontrei uma cobra amarela enrolada dentro da sanita da casa de um velho muito chato e que falava também muito.
"Uma cobra tão bonita, que fazes tu aí dentro?" - perguntei eu.
Ao que ela respondeu: "Vim atrás de um anel que se perdeu e que antes estava no dedo de uma princesa. Eu estava nos seus ombros. Isto foi ontem do outro lado do globo na Austrália. Come era de noite, a princesa deu um berro - por ter deixado cair o anel - e a terra tremeu. Eu estava já a descer para a sanita para salvar o anel com a minha língua quando escorreguei, deslizei e vim aqui parar."
Como dá para perceber, a cobra também falava muito.
Eu até lhe perguntaria se o tinha encontrado mas não perguntei porque ela não se calou: "e agora, no meio de tantos caminhos, de todos os formatos e feitios, subterrâneos, que existem entre os continentes, nunca mais o vou encontrar. Quando a terra tremeu tudo mudou de lugar e o anel foi concerteza numa direção diferente da minha."
Ela ía continuar mas eu preferi fechar a tampa, apertar a bexiga mais um bocadinho, fechar a porta da casa de banho e sair dali.
Fui para a sala onde estava o velho que ainda falava do mesmo assunto que também já não sei qual era. Desejei a todos uma boa noite saí para a rua. Na rua reparei que estava noutro sítio que não era a mesma por onde tinha entrado na casa.
Estava perdida.
Estava a ficar frio e eu não tinha casaco.
Não percebia nada do que as pessoas que passavam por mim conversavam.
Entrei num café e ía à casa de banho mas vi uma entrada para uma cave.
Fui por lá e dei com um tunel. Pensei que se era verdade que os caminhos subterrâneos se tinham todos confundido então pelo menos podia ir dar a um sítio mais quentinho.
Assim foi. Saí do outro lado numa ilha onde era de dia. Encontrei uma princesa sem anel e muito triste.
Afinal o mundo é pequeno.

Banquete

O Conde de Vitoria casou com uma nobre muito frágil, tão frágil que morreu passadas horas da troca das alianças. O Conde que tanto lutara pela união dos dois, contra os familiares que se opunham por não encontrarem nenhuma importância politica no casamento, estava agora destroçado e desesperançado de alguma vez voltar a encontrar motivos para amar. Tinha-se afastado do mundo e já não tinha contacto com mais ninguém. Quando um dia passeava na sua propriedade ouviu o gemido de um gato moribundo. O coração tremeu e movido pela emoção pegou no gato e levou-o para casa. Fechou-se lá dentro com o pobre animal.

Passaram-se anos e ouviram-se rumores de que o Conde tinha enlouquecido, mas ninguém conseguia explicar porquê. Certo dia dois gatos bem falantes passeavam-se pela cidade. A população indignou-se, pois até então só conheciam animais para trabalhar nos campos ou então selvagens. Um homem decidiu ser o responsável por ver o que se estava a passar e dirigiu-se ao palácio do Conde.

Do que viu o pobre mal conseguia explicar com o susto, usou uma caneta para fazer uns rabiscos a ver se fazia algum sentido. O Conde fora visto a conviver com mais de uma centena de gatos, bem vestidos, bem falados, em desenvolvimento de actividades recreativas. À noite o pobre homem tinha inclusivamente chegado a ver o Conde bêbado em grande pândega com mais dois gatos pardos.

Estampas

Dois amigos seguiam num carro a alta velocidade em direcção ao desconhecido – eram dois forasteiros praticantes. Tinham acabado de beber bastante na companhia de duas raparigas locais. Vinham a cantarolar e a contar piadas para se entreterem. Steve adormeceu ao volante provocando a sua morte. Pat acordou num hospital dois anos e meio depois. No início estava bastante confuso, não tinha noção nenhuma da realidade. Acabou por pedir que o levassem para casa numa tentativa de encontrar referências. Foi transportado de imediato para o hospital mais proximo da sua terra natal mas não foi possível contactar nenhum familiar. Pat tinha ficado com as pernas danificadas e mal se mexia da cintura para baixo. Os médicos previam que fosse ficar ali mais uns meses, até anos. Pat, pediu um bloco e uma caneta do bolso da enfermeira. E com a ajuda desta colocou-se em posição para desenhar. Começou a desenhar o que lhe vinha à memoria. Dos desenhos isolados começaram a surgir cenários, primeiro simples e depois muito complicados. O tema, quando era possível identificar, variava: podia ser o acidente repetido mais de mil vezes ou os episódios do hospital que assistia entre doentes, médicas e enfermeiros. O que realmente surpreendia era a sua capacidade de desenhar tudo com o mesmo tipo de linguagem gráfica das estampas medievais sem nunca ter visto uma.

Agentes digitais

Li os mails e deixei a mailbox aberta no meu computador enquanto fui tomar o café. Quando voltei tinha novamente um mail spam muito estranho por ler. Apaguei-o. Mais tarde, novamente o mesmo mail. Que chatice. Apaguei novamnete sem lhe dar muita atenção. Iniciei mais um dia de secretária no escritório. Mais uma hora e o mesmo mail voltou. É estranha, devereas bizarra até esta sensação que tenho de que não é a repetição do mesmo mail mas é realmente o mesmo mail. Abri o Trash folder para provar a mim mesma o óbvio. Realmente não tinha lá nenhum outro mail. O que dizia o título? "No replika, Im youriginal". Deixei-o ficar na mailbox sossegadinho o dia inteiro para deixar de pensar no assunto.
Chega o fim de expediente. O mail ainda lá está mas eu não quero saber. Pronto, tá bem, vou abrir e ver o que tem lá dentro. Abri. Apanharam-me a ser curiosa.

Em perspectiva

Está mais um lindo dia de sol e eu fui de visita ao campo. Estava com as minhas expectativas de encontrar um cavalo branco e de olhos azuis em alta - tinha ouvido descrições, tinha visto fotos, tinha me informado. Sabia dos seus hábitos e sabia onde se enconravam.
Lá fui eu, bem apetrechada, como deve de ser, com maquina fotográfica, binóculos, de visita ao campo.
Sentei-me imóvel por o tempo em que é possivel até quase à negação das funções corporais. Em outras actividades tomar decisões e mover-se constantemente com agilidade é fundamental. Aqui é diferente, o desafio é a imobilidade total.
escrevo-me em pensamento para que me lembre que existe um mundo em que os cavalos brancos e de olhos azuis não são assim tão importantes. Isto porque perdi-me no meu esforço de conseguir um objectivo e mais nada é importante.
Acordei coberta de branco, concerteza que nevou, não dei por nada.

Emparedada Viva

Em 1910 comprei num atelier localizado numa cave parisiense o mais belo quadro abstracto. O meu marido que estava comigo na altura da compra, interpretava o quadro e a compra de um modo muito diferente de mim. Ele achava que a compra tinha sido um capricho patético, uma forma de eu me integrar, não sem me sobrepor, à cultura da rua e principalmente aos artistas que ele achava piores em qualidade. Ora, na opinião dele eu estava a fazer-lhe frente, a contrariá-lo, porque vivia centrado nele próprio como mais ninguém que eu tenha conhecido.

Quando um dia decido tirá-lo do embrulho e afixá-lo na parede, o meu marido comunica-me que se sente traído, e esta será uma prova de como o tenho rebaixado publicamente.

Naturalmente que desconhecia a força da sua raiva e a vontade de me impedir de expor os meus sentimentos mais íntimos pela Arte e por aquele quadro. Decidi fazer-lhe frente e peguei num martelo e encostei-me à parede.

Comunicação Falível

O meu telefone nunca tocou tão tarde como naquele dia. E uma surpresa seguiu-se à outra, porque em vez de ficar sobressaltado em consequência do toque fiquei tranquilamente debaixo dos lençóis. Calculo que devem ter insistido umas cinco vezes até eu me convencer que devia atender o telefone. Sentia uma preguiça enorme, as pernas estavam cansadas e os braços esticados hirtos como se tivessem nascido sem articulações. No tronco passava-se qualquer coisa de sensacional, um tipo de bem estar estupendo, precisamente o oposto ao que se sente quando se come demasiado ou quando se interrompe a digestão. Na minha cabeça não se passava grande coisa; estava dormente pelo todo mas com boa disposição. Falei para o outro lado da linha metendo o auscultador entre mim e o travesseiro: - “Que deseja?”. A resposta não tardou: - “Dar-lhe um tiro”.
- “Por favor leve tudo o que eu tiver que lhe agrade, mas não me mate, sinto-me incapaz de morrer assim neste estado!”

Dreaming and Loathing Las Vegas

Entrou em Las Vegas pela porta da frente de cadillac vermelho e muita droga na bagagem. Entrou num casino enorme e dourado como se fosse o rei do Rock - já muito fizeram isso antes, é verdade mas ele não poderia saber disso, vivia o seu sonho, uma recriação fiel do filme mais real-ficcional de Hollywood. A rapariga que primeiro veio ter com ele era loira, a segunda era ruiva e ele deu-lhes uma nota grande a cada.
Um disfarce interessante sem dúvida. Snipers são gente cool em Las Vegas e ele tinha armas também.
Voltou a sair com a mesma glória com que entrou e logo de seguida. O sonho estava cumprido: mulheres, muito dinheiro, entrada em glória, ele teve tudo e todos.
Entregou-se no hospital de onde tinha fugido. Era louco e sabia-o ou fingia-se bem . Falou desta aventura até à sua morte e assim se fez lenda.

À procura do Verão

A caixa do tesouro continha dois manuscritos. Um com instruções reais e um outro com um instruções ficcionadas, ambos apontam para um mesmo e suposto lugar de delícias, jóias, ouro e especiarias. A caixa, em cima de uma mesa de trabalho, pertencia a uma pretenciosa escritora que pouco mais escrevia do que textos pequenos e ainda por cima anónimos.
Certo dia um ladrão assalta a casa, aproxima-se do computador mas distrai-se a olhar a caixa que é velha. Realmente esta tem desenhos de uma ilha com palmeiras, do oceano e de um tesouro. Abre a caixa e encontra os dois manuscritos. Sem saber qual escolher resolve planificar uma estratégia paar conseguir resolver ambos os enigmas ao mesmo tempo, concluindo que, seja qual for o percurso, o resulta será sempre o paraíso. Assim deixa para trás o computador (que valia umas massas valentes) mais outras coisas também de valor e sai da casa que não lhe pertence. Ambos os caminhos se encontram aqui e ali e as tarefas a efectar variam por vezes ligeiramente. Colmata esta diferença entregando-se a várias soluções sem suposto compromisso a longo prazo, numa terceira variável. Quando vai perto do fim descobre que está no princípio. Volta a tentar, sempre com variáveis que julga não afectarem o resultado. Ao fim de um longo tempo desiste, volta ao princípio. Escolhe um dos manuscritos e sabe desta vez que não voltará ao princípio mas que as possibilidades de encontrar o seu paraíso são ainda mais diminutas mas reais. Segue em frente com coragem. Não voltou a ser visto.

Morcego

No portão da entrada de uma certa herdade estava um morcego cego e esganado, portanto, morto. Os habitantes da casa interrogaram-se sobre quem seria o autor de tamanha crueldade. As respostas variaram, mas a maioria respondeu que no lugar do autor do assassinato animal, teria feito de modo bem mais sangrento. Seguiram-se as descrições. Os habitantes ao ouvirem o relato uns dos outros, vomitaram muitas vezes e alguns acabaram por expelir fel. Ora a sessão ganhou tamanha proporção e teve tamanha aderencia que se repetiu por muitas vezes com a desculpa de retirar o mal de dentro. Quanto ao autor do crime que desencadeou este episódio, nunca se descobriu de facto, mas desconfia-se que estas sessões eram famosas entre morcegos e que este era um prenuncio de um possível desfecho para aqueles habitantes.

Água

“Tudo o que é puro a água aceita, o que é mau a água rejeita”

Este princípio foi válido por muito tempo para se distinguissem as bruxas das mulheres sábias e os ovos bons dos pobres.

Ora, um navio também podia estar abrangido por esta lei. Pensou assim o capitão que o pôs no mar sem o testar devidamente. Comunicou à tripulação que a segurança não estaria comprometida. Um marinheiro dos mais novos confessou que estava com medo, que o navio estava mal ensebado, que lhe parecia que ia entrar água e que a ancora não tinha peso suficiente. O capitão nem ouviu metade, pois estava mais preocupado com o papagaio que tinha as penas pálidas.

Meteram-se em viagem, dentro da água salgada e com uma trajectória muito complexa, para comercializar bebidas e cobertores com um continente antigo. Percorridas algumas milhas e avistando-se ainda terra, a embarcação emerge na água. Voltam à superfície os corpos, que se levantam como se as águas do mar fossem os lençóis desarrumados da cama, e se põem a caminhar.

O capitão caminha ainda com o papagaio, ainda mais pálido e até um pouco azul. Este pergunta-lhe o que terá acontecido na sua opinião. A que ele responde: “não entendo, o navio era do demónio mas não flutuou - ainda bem que nos livramos dele”.

Carne Tenra

Um estudo antropológico do sec. XIX explica a vida desta comunidade longínqua no tempo e na geografia:

“Este povo vive para descansar. Ao contrário do que pensamos, que o trabalho dignifica, para este povo o trabalho estraga os bens mais preciosos do mundo: as mãos e os pés que ficam calejados e o corpo que fica degradado. Trabalhar é contrário à beleza, dizem. Assim, à pergunta, como conseguem subsistir, eles respondem que se dão bastante bem com os animais da localidade e que desejam o mesmo para eles – que descansem muito e que trabalhem pouco.”

(uma série de páginas à frente do mesmo estudo)
“...este povo é canibal há já séculos, desde que aqui se fixaram. E a sua coerência estende-se à simpatia que têm com tudo o que os rodeia justificando assim o canibalismo: “o ciclo só é ciclo de vida realmente se aproveitarmos os recursos que temos; os animais comem-se e as plantas também...”...” .

Um Homem ao Avesso

O Sr.X, antigo porteiro, pediu dispensa para se conhecer melhor. A entidade empregador achou estranho o pedido uma vez que lhe faltava pouco tempo para a reforma. O Sr.X respondeu-lhe por escrito, numa carta registada, o seguinte: “Urgente: preciso de me estudar para que não morra sendo um desconhecido para mim mesmo.”

A aventura do Sr.X. começa com a sua evasão para o campo. Aí começou a estudar tudo à sua volta de mais afastado: o universo, os planetas, as estrelas, a temperatura. Depois o mais próximo: os animais, as plantas que constituíam a paisagem, a oscilações geográficas do terreno a ele próximo. Mas tarde, e no sentido de se aproximar, começou a estudar a fronteira entre o espaço que o envolvida e o espaço que ocupava, que não mais que a sua pele. Quando descobriu que a pele separava-o do mundo exterior ficou maravilhado. Pensou: “A pele?! Como é que eu nunca tinha pensado nisto antes?!”. Estudou tudo o que havia a estudar sobre o assunto. Até que um dia decidiu debruçar-se no que lhe faltava: a outra parte da fronteira, o seu interior. Nesta altura o Sr.X propôs-se revirar ao avesso. Não havia raio X, nem nenhuma maneira, nem cientifica nem amadora, de saber o que era o seu interior sem ser extremamente dolorosa e perigosa para a sua vida. Foi então que concluiu: “ como posso eu conhecer-me para além do que não sou eu!”. Ficou completamente destroçado.

Possível Progresso

Uma coisa fantástica - um homem muito pequeno senta-se numa cadeira banal de um café banal, pede "-um café". Entre a minha mesa e a do homem em questão há mais dez mesas com gente. Embora as cadeiras e as mesas sejam iguais, a gente sentada entre mim e o homem pequeno parecem gigantes. Concluo portanto que estive a observar o homem pequeno atentamente e prolongadamente.
De um pulo levantei-me, saltei para uma cadeira, daí para cima da mesa - estico os braços para cima, reclino a cabeça para trás e o corpo todo se espreguiça. Três inspirações e outras três expirações nesta posição. Com outros dois saltos volto a ter os pés no chão. Sento-me.
Olho em volta - na mesa ao lado está sentada uma mulher que me fascina: voluptuosa, olhos verdes e cabelos ruivos e cheios de caracóis grandes. O empregado aproxima-se dela. A chávena do café fica suspensa por cima e ao lado da sua cabeça, segura pelo empregado que com a outra mão limpa a mesa antes de a pousar. A fita em volta da chávena diz "Imperial".
pergunto-lhe discretamente sem "-tem um gato persa branco?". Ela diz que sim com o fechar de olhos demorado. Consente portanto. Pago a conta e saímos de braço dado.

A.

Caixas pretas sobre caixas pretas ao lado de caixas pretas em cima de caixas pretas. Todas pretas para não denunciar o conteúdo. Tamanho sempre igual mas que varia segundo os sentimentos de quem estiver a abrir. Todas as caixas cabem dentro de todas as caixas. Quem abre uma encontrará outra e outra e outra, incansavelmente, invariavelmente. Cada pessoa que abre uma caixa e depois outra encontrará conteúdos diferentes de cada outra pessoa que depois, antes ou ao mesmo tempo, abra as mesmas caixas. Quantas mais caixas pretas houver mais haverá para abrir.
Não se perdem e não estão contidas dentro de nada maior. São parte de um todo por associação.

Desiquilibrio

Um sussurro ecoa pela montanha em dias de nevoeiro. A estrada esconde-se impossibiltando o acesso de carro. Os caminhos a pé são também impossiveis de fazer, desaparecem. A montanha isola-se e o sussurro é como que o som de uma entidade isolada que quer mostrar a sua individualidade e saparação do resto do mundo. Os animais assustam-se e as crianças fogem para perto dos adultos. Os homens baixam a cabeça e enfrentam o solo e as mulheres ficam em estao melancólico. Ás vezes a montanha isola-se durante dias. O sussurro transforma-se num choro. Coisas estranhas acontecem, um dia a água do rio correu quase preta da nascente e outra vez viu-se neve nas beiras das estradas menos apanhadas pelo nevoeiro.
Quando o nevoeiro se dissipa o verde é resplandecente, as flores são mais e garridas e as árvores mais frondosas e mais vivos os seus ramos. Tudo parece ter renascido com mais força e mais encanto. Esta parte do mundo é conhecida pela sua extraordinária beleza natural. Contudo o turismo não é muito forte e poucos são os habitantes que aqui permanecem por uma vida inteira.

Jarra de Mármore

Conheci-o num Hotel. Era investigador de bactérias marinhas. Não era nem bonito, nem feio. Era alto e moreno. Sorridente. Vestia um fato às riscas azul escuro. Conversamos no bar até que este fechou. Era já quase de madrugada. Levantei-me. Dei um salto da cadeira e despedi-me. Cheia de mim, vaidosa e orgulhosa, dava-lhe a entender que ficávamos por ali, tal como devia ser para dois senhores de meia idade após um primeiro contacto. À medida que subia as escadas sentia-me aturdida. Talvez uma indigestão ou o efeito do álcool. Embora nenhuma me parecesse razão capaz de realmente me provocar tal sintoma. Subi devagar um lance de escadas até encontrar o elevador. Marquei o terceiro andar. A tontura passava aos poucos e, porque estava aliviada pelo susto que passara, procurei o quarto dele – precisava de companhia. Sabia que não ficava longe do meu, embora não me lembrasse do número. Por casualidade vi a sua silhueta. Corri e ainda tentei alcança-lo com o braço antes de cair acidentadamente no chão e bater com a cabeça numa pesadíssima jarra de mármore. Acordei não me lembrando de muito e deparei-me com as malas prontas, no que parecia ser o meu quarto. Ajudou-me a vestir uma nova toilette e segurou-me no braço com força para fazer o check out do Hotel. Ainda estando eu tão débil, não tive forças para me opor a nada. À saída, ele foi pedir que lhe trouxessem o carro e eu esperei em frente à porta de vidro. Comecei a pensar pouco a pouco, episodicamente, no que me tinha acontecido até que me lembrei porque razão estava eu ali, prestes a sair, quando tencionava ficar naquele Hotel por mais quinze dias de repouso. Entre pensamentos, chegou perto de mim um empregado, carregador de malas, que me diz “deixou isto no quarto”. E entrega-me uma saca de veludo preta cheia de amendoins lá dentro, que formavam um volume reconhecível. Abismada, respondi: “mas não estamos perto da hora de almoço, pois não?”.

Como acontece o que não é passivel de explicação

Certo capacete de mota estava pousado em cima de um muro à beira mar. Um rapaz encontra uma rapariga e convida-a para dar uma volta. Não tem capacete. Pega naquele que está mesmo ali. Olha em volta, está tudo deserto. Entrega-o à rapariga. Serve-lhe que nem uma luva na mão.
Metem-se na mota e arrancam. Ela agarra-o e inclina-se para a frente, faz a mota andar ainda mais rápido do que a velocidade que pode ser marcada no contador. Força a mota a deitar nas curvas e nas mais apertadas há faiscas que saem por debaixo dos pés. O rapaz está assustado e nada pode fazer. Está preso à mota pelo abraço da rapariga, mal vê o que está à frente. Deita para fora um penoso e prolongado grito.
É uma corrida que ele começa a apreciar agora que sente não haver perigo. É também uma corrida que não deseja acabar. É o capacete ou a rapariga que puxam os limites do que se conhece para velocidade ajuizada?

Virtual

São raras as histórias em que o personagem que é tambem o narrador é o fantasma. Não sei porquê mas os fanasmas podem até ser os personagens principais mas as suas histórias são contadas de forma passiva, na sua maioria por humanos.
Pois era uma vez um homem que morreu e deixou ficar a sua viúva muito nova e com um filho para criar. Morreu na altura errada porque a sua morte foi desejada por si mesmo. Queria com uma tal vontade resolver a grande questão da vida que se colocou rapidamente no confronto directo com a morte. Falo na terceira pessoa, porque me assim é mais fácil assumir a minha situação.
Pois então queria este homem resolver-se, passar à frente todas as etapas do processo de aprendizagem e chegar à meta. A passagem estava fechada, não era a minha altura e aí estou, num lugar sem corpo, entre morte e vida, comunicando por energias e formas imateriais com as pessoas a quem quero bem.

Batota

Um homem ia a atravessar as suas terras em direcção a um notário. Naquele dia, se tudo corresse bem, assinaria triunfalmente o grande documento que lhe daria a independência de sua esposa, com quem estava casado há mais de vinte anos.
Foi surpreendido por um raio que o atingiu, no meio de um dia solarengo, enxuto, com céu azul, sem o mínimo sinal de que algo semelhante poderia acontecer. Estendido no chão, sem se mexer, perguntava-se: “Porque caíra um raio sobre mim? Qual a origem deste raio?”. Ainda muito abalado mete-se à estrada, a pé. Chega ao notário e encontra, mãe, mulher, sogra, filhos, e restante família. Lamenta-se pelo atraso pega numa caneta e tenta escrever qualquer coisa, como que ensaiando a assinatura. Infelizmente não consegue, treme como varas verdes. A caneta mal pousa na superficie do papel. Desesperado, força com a outra mão a direita a estabilizar. A mulher diz-lhe. Batota.

Seda

Primeiro passo, segurar na barriga da aranha com os dedos, polegar e indicador, identificar o orifício por onde saí o liquido viscoso em forma de fio. De seguida puxá-lo gentilmente e enrola-lo num cartãozinho fino, metodicamente dobrado. Largar a aranha mal se constitua um novelo. Aprumar uma agulha das mais estreitas da maleta da costura. Enfia a linha no buraco da agulha enquanto se estreita finamente esfregando os dois dedos. Com paciência bordar uma rede, partindo de um ponto simples para fazer uma linha e de um mais complexo para estender a peça e fazê-a ganhar volume. A forma final são uns cones que vestidos na perna assentam como umas simples meias de vidro de malha aberta. A singularidade é que estas meias são 500 vezes mais leves que as meias de seda normais e a sua proprietária fica capacitada de atributos simbólicos de predadora. Não serão comercializadas por enquanto.

Quatro

Quatro cantos da minha casa e nenhum deles posso alcançar, mesmo tocar. Limito-me a ficar sempre no centro. A minha forma não é moldável, ainda que dentro de certos limites, como o humano normal. Sou limitado por um cubo que me segue, onde também ocupo o centro. Sómente porque aqui, dentro deste cubo, quase poderia dizer inviolável, posso vver com a minha condição de fobia total a todos os animais pequeninos. Se respirasse a presença de uma formiga, ainda alguns metros de distãncia, ficaria com o corpo inchado como que prestes a explodir. De forma que fico aqui dentro deste um cubo o tempo inteiro, numa casa que também está preparada para a inexistência de animais. Há anos que medito sobre a razão desta estranha fobia e o porquê de somnete acontecer com animais pequenos. Imagino que seja porque os maiores eu sinto e a maior parte das vezes vejo a sua respiração mas os pequenos, como sei que estão vivos? Porque se mexem talvez seja uma resposta razoável, mas será essa uma condição para estar vivo? A minha casa, esta onde eu vivo, tem quatro cantos e eu não sei que lhes fazer porque não os posso usar.

Esconde-pega-larga-deixa

Qualquer Domingo é um dia diferente de todos os outros dias da semana. Porquê? Porque ao Domingo o Sr N encontrava a Sra S no café depois da missa e antes do almoço. Ele lia o jornal, entretanto ela entrava, pedia dez pães e nessa rotina olhavam-se. Houve tempos em que se sorriram mutuamente e depois disso passaram a dizer bom dia e assim continuam. Houve um dia em que as coisas aconteceram de forma diferente. A Sra S entrou e pediu dez pães e quando saiu o Sr N saíu também. Ela vou-o e deixou-se seguir até à porta de casa. Na Segunda-feira seguinte a Sra S saíu de casa a caminho do trabalho e não mais voltou ao lar durante vinte anos.
Com os dois filhos já homens, a Sra S entra hoje na sua velha casa, como se tivesse sido no mesmo dia e com um ar cansada adormece no sofá. Naquela Segunda-feira tinha ganho um medo imobilizador de enfrentar o desafio e as vontades, suas e dos outros, de viver o jogo da verdade e consequência com o mundo, enfim, tinha medo de perder e não saber o que quer ganhar e por isso permaneceu dentro do edifício do seu escritório este tempo, escondida entre as esfregonas. Há uma oras atrás o grande incêndio no prédio que afectou o seu departamento fizeram alguma coisa agitar-se na sua mente. Até ali, no seu refugio, o mundo dos outros conseguira a afectar.

Singularidades

Um labirinto de pessoas de vidros que se partem a caminhar é um delírio recorrente. Não sei como me livrar de ser assaltada por esta imagem que me atravessa o pensamento com regularidade. Significaria uma cosmologia fabricada pela minha insegurança se não tivesse aparecido num livro de ilustrações com a legenda: Labirinto Quebrado da autoria de Sir Simon Walter – Arquitecto paisagista inglês do Sec. XIX. Comentário sobre este sítio identificam-no como provavelmente imaginado por alguém com uma anomalia gravíssima genética: falta de açúcar no sangue. E daí a compensação de cristais na concepção da humanidade. Escreveria um livro sobre o assunto se a reconstituição da saúde não prejudicasse visões tão singulares quanto esta.

Ver

Desconheço a história completa sei que foi uma história de amor à primeira vista que durou cinquenta anos. No final os dois bons amigos separaram-se, um tinha que partir para um sítio longíssimo. Após a partida a senhoria ligou ao amigo que ficara para que este se despachasse dos objectos que por lá tinham ficado – tralhas velhas que tinha armazenado sem qualquer ordem. Uma semana volvida o senhoria voltou ao apartamento com um casal para o alugar e encontrou o amigo disposto num sofá desfalecido, tinha tentado ingerir as lentes de vidro moídas do falecido.

Os invisíveis

Tenho saudades das fotos, ainda que digitais, ainda que registos imóveis de momentos. Tenho saudades de recordar rostos e lugares. Tão ridícula como estranha esta imposição governamental para a abolição das colecções e qrquivos pessoais de memórias em forma de fotos, vídeos, músicas, etc. Ridículo sermos parte que activamente constrói uma só memória colectiva, num arquivo geral. Infelizmente, por ter uma actividade inclassificável, não posso nem armazenar nem aceder à base de memórias colectiva, ao arquivo geral. Não posso ver o teu rosto, ouvir a tua voz, a dos nossos filhos e recordar. Não faço parte da história que será lida pelos que vêm a seguir a nós. Será que alguém, algum dia, se questionará sobre quem é a mãe dos teus filhos? Tenho deixado rastos para que me sigam, os que posso e que não sejam elementos de violação da ordem ecológica. Essa ordem ecológica, ridícula também, a mesma que nos impossibilita coleccionar memórias, que nos impossibilita ser individuos com vidas próprias. Sigo o meu caminho; esta espécie de estafeta interterritorial que sou, em constante mobilidade, um perigo para uma aparentemente frágil estabilidade.

Sócrates

A noite passada dormi na rua da minha cidade. Tem estado um tempo primaveril por isso não foi difícil defender-me da temperatura nocturna. É durante a noite que os factos se tornam mitos. A noite passada jantei com o cigano e vagueando pela cidade encontrei uma prostituta velha e cheia de rugas que é pretendida por todos os homens, mesmo os que têm quem querem. A fada dos dentes apareceu quando já me deitava, à entrada da estação de metro, a perguntar se precisava de alguma coisa. Disse-lhe que tinha uma dentadura saudável. Foi muito simpática quando se despediu-se e logo desapareceu. Ali, à entrada da estação, passavam de vez em quando, enquanto estava deitado, animais que nunca tinha visto antes. A certa altura, um extra terrestre acordou-me e pediu-me lume, estava disfarçado de pessoa humana mas, como concerteza tinha saído de casa à pressa, a máscara estava mal colocada.
Já a nascer o dia acordei com o guarda a abrir o portão da estação do metro, já podia voltar para minha casa. O homem era barbudo e parecia o Sócrates representado nas esculturas do museu, o filósofo, cuja filosofia é conhecida pelas palavras dos outros. Não sei se era ou não mas lá me sentei com ele a conversar sobre cada vida e cada época e eu contei-lhe esta minha noite em que dei de caras com o lado real dos mitos que pairam sobre a cidade onde vivemos.
Ele convidou-me para uma festa com uns amigos quando saísse do trabalho onde continuariamos a conversar e onde poderiamos nos lavar, beber e comer. Eu disse que sim.
Cá estou eu e lá ver o Sócrates ao meu encontro. Estive aqui umas horas à entrada do metro onde não passou ninguém. Com isto tudo acabei por me esquecer do caminho para casa.

Linha Vertical

Um homem passeia um ovo. Aparentemente o ovo fala com o homem.
A sua solidão levou-o a adoptá-lo, a querer vê-lo nascer, crescer e tornar-se grande. Fosse a criatura que fosse, seria dele de mais ninguém. Aceitá-lo-ia incondicionalmente. Seria previsível que eu contasse que de facto era uma criatura hedionda que dali tinha saído. Mas não, foi um milagre o que dali nasceu - um pequeno homem, de apenas uns centímetros, já proporcional, que se manteve na cabeça do homem até ter o tamanho de uma criança. Depois disso, o homem disse que estava na altura de andar e ser autónomo. O homem pequeno, nesta altura médio, não quis ceder e manteve-se, às vezes de pé outras vezes sentado – sempre na cabeça. Enquanto um envelhecia e encolhia, o outro tornava-se um homem maduro e ganhava espaço. Um homem substitui o outro em linha vertical.

Re-volver

Mariana tatuou com um garfo e um tubo de tinta preta da pelican o seu nome numa coxa, dentro de barracão nas traseiras da escola. Foi para casa a escorrer tinta que trespassava as calças. Nunca mais voltava atrás, fora injustamente expulsa por cometer o terrível erro de confiar na melhor amiga. Esta dissera-lhe: - “Ele só gostará de ti se lho provares...”. E a melhor prova que conseguiu arranjar foi ().

Um 4

Explicaram-me no outro dia que há quarto partes do cérebro distintas e que cada uma aponta para seu lado, servindo de motor para diferentes movimentos. Um homem fora estudado que era capaz de se barbear, enquanto pedalava uma bicicleta com um pé, comia uma sanduíche de presunto e acendia um candeeiro com o dedo grande do outro pé. Quando morreu, de tal forma tinha os músculos desenvolvidos, que quando frio se ficou na posição de Z quando encontra um 4.

Cristaleira

Numa sala cheia de convidados realiza-se uma sessão de espiritismo através de um copo, um espelho e papelinhos com palavras e números, muito bem ordenados. A proprietária, uma senhora com um lenço vermelho de seda muito aprumada, pede para ser a primeira a estrear a sessão.
- “lepra, estás-me a ouvir, porque morreste?”
O copinho de vidro move-se com a pressão dos dedos na quase completa escuridão.
- “n-ã-o m-o-r-r-i!”
Todos sabiam que “lepra” era o caniche da casa e ficaram perturbados. Lembravam-se bem do caniche a rodopiar pela sala ou ao colo da senhora com um elegante laço idêntico à sua companheira. Começou-se a ouvir um murmurinho; perguntavam-se o que se estaria a passar.
- “lepra onde estás tu? Como é possível não teres morrido?”
- “c-r-i-s-t-a-l-e-i-r-a!”
- “rápido, procurem-na! estará aqui?”
Todos se afastaram abrindo caminho menos Marte, um homem de cinquenta anos admirador de álcool e eterno pretendente sem resposta da senhora.
- “Não abras”, diz-lhe Marte.
- “lepraaaaa”, dirigindo-se para a porta da cristaleira das bebidas com uma chave.
Abrindo a porta não encontra nada, só bebidas, copos e bases de cortiça. O ambiente é desolador. Estupefactos com a agitação, os convidados despedem-se à vez e retiram-se para suas casas prometendo uma próxima oportunidade.
A senhora procura consolo no ombro de Marte, agarra-o com força e pergunta-lhe:
- “A que se deveu este episódio?”
- “Querida, penso que o meu desejo por uma bebida foi mais forte que eu...”

Raiz

Uma árvore cresceu de imprevisto no meio e um jardim anónimo.
Como não havia jardineiro não se podaram os trocos e estes cresceram livres.
A árvore tornou-se visível numa primavera destacando-se da demais vegetação rasteira.
Certa manhã de um dia de Verão uma mulher chegou-se perto da árvore e aí se sentou na sua sombra e respirou o aroma da sua seiva. Aí se deixou ficar. Veio a noite e o dia seguinte, o outro e mais outro e muitos se seguiram. Comeu o fruto que a árvore dava e dormiu aconchegada pelo calor do tronco. Estava grávida e aí deu à luz outra mulher.
As serpentes habitavam os galhos da árvore e elas também procriaram e multiplicaram-se.
Certo dia chegou um homem. A mulher deu-lhe para comer do fruto da árvore porque ele estava cansado e com fome. Ele dormiu e recuperou. Depois sabendo que tudo era bom debaixo da árvore reclamou a sombra da árvore como sendo um território. Assim se fez a primeira lei.

Os reinos animais

No reino dos leões não se passa a mão no pêlo para amansar a fera. A ferocidade não se amansa, atiça-se. quanto mais feroz mais poderoso é cada um na relação entre as partes, pois não há porque se ser feroz na solidão. No reino dos leões quem é trapaceiro está já com o pé na cova.
No reino dos macacos quem passa a mão no pêlo quer conversa. Há facilidade na forma com que se inebria o companheiro com palavras e gestos aparentemente meigos. Todos reclamam, afastam-se dos diferentes, aproximam-se de quem querem ser iguais, gritam e imitam quem grita. No reino dos macacos é-se sempre só.
O rapaz invisível viveu uns tempos entre ambos os reinos e aprendeu muito sobre a arte de lêr pensamentos pela quietude que é inerente ao seu estado invisível.

Dança Macabra

Um Conde reconhecido pelas heróicas façanhas do seu falecido pai e pela sua suspeitíssima conduta de vida, passeia-se na vila com um papagaio no ombro como lhe era habitual.

Avista dois homens puxarem uma corda, cada um para seu lado. Ao meio estava uma vela que a ia desgastando. Maravilhado com a imagem com que se deparou e pensando que se tratava de um jogo, pede ao papagaio que ofereça dinheiro em seu nome a um dos homens se este fingir que perde. Assim foi, a corda cedeu e do empate saiu um vencedor. O Conde bateu palmas e deu uma forte gargalhada.

De seguida o homem que saiu vencido pede que o papagaio se aproxime e no ouvido transmite-lhe uma mensagem de volta para o Conde. Este começou a mexer-se como quem tenta dançar, mas a medo. Saltitava mais que respondia a um ritmo imaginado. A sua figura era tão ridícula que se juntou muita gente à volta para o ver.

Recepção Selvática

Um homem cava um cova com uma pá, desenterra um tesouro e tenta fugir por entre a vegetação da selva. Desconfia que está a ser seguido. Mais adiante depara-se com um índio que lhe indica a melhor maneira de sair se descobrir qual dos ramos que segura na mão fechada é o mais pequeno. O homem falha e o índio sorri e indica-lhe o caminho mais longo. Mal sabia o índio que o homem não era muito inteligente e que ali fica durante séculos, ressequido pelo sol, envolto em colares de pedras preciosas brilhantes e agarrado a moedas de ouro.

Contraditório

Estava determinado a não me governar por um relógio porque queria adiar e não pensar no dia em que à hora x iria morrer, nem que a data seria relembrada como assunto do passado com direito a celebrações estranhíssimas numa religião escolhida pelos amigos e familiares.

Escusado será dizer que tinha horror à minha própria morte. Mas as horas estavam tão definidas no meu organismo que não tinha outra escapatória excepto lixar o meu organismo com toxinas e só autodestruindo-me livrar-me-ia de uma vez por todas do desconforto dos minutos a passar como soro a entrar nas veias. E se por acaso esta solução não se mostrasse eficaz pediria para ser cobaia de um golpe cerebral.

Acaso não é perigo

Começo por dizer que o deserto não é um cenário escolhido ao acaso – ocorre-me sempre que imagino uma situação seriamente dramática embora não jogue muito com simbolismos quando escrevo.

Eu tinha vestido uns calções e um casaco de cabedal por cima de uma camisa de mangas cortadas rentes ao ombro e caminhava sozinho em busca de uma aventura. Havia cactos e terra seca polvilhada num grande plano horizontal que não tinha fim. A cor era ocre, género caramelo - estranha para quem vive em grandes cidades como eu e já não se recorda de ver um torrão de pó, nem das cores da natureza. Encontrei um hotel e entrei. A aventura que procurava era um encontro com o perigo. Um tipo de perigo que nos becos e nas más horas da minha cidade não encontraria.

Subi duas vezes ao quarto com uns tipos, voltei a subir para uma festa privada, bebi demasiado e acabei por cair, de seguida fui socado e retalhado com restos de vidro por uns camionistas que não gostaram do meu estilo, fui salvo pelo recepcionista que me levou para um quarto para me recompor, tomei um banho, limpei os ferimentos e finalmente dormi.

Acordei com uma enorme cobra enroscada a mim com óculos de sol com lentes escuras espelhadas a fumar, enquanto uma forte e maravilhosa luz de fim de tarde me entrava pelo quarto. Ela lambia-me a face e eu, ingenuamente e sem reflexão alguma, enquanto isso, a agarrava com força aliviado por sentir algum carinho. Quando me levantei, ainda que incrédulo, fazendo os rituais de qualquer acordar em casa, vesti as calças e arrastei-me em tronco nu até à janela. Vi uma cidade imensa onde podia jurar que há pouco, na véspera, era um deserto. Abri os braços e pensei “apetece-me agarrar-te também, ó grande cidade do Sol”. E deixei-me ir num imenso abraço.

Uma condição de ser único

Uma trepadeira de folhas verdes escuras tapa um muro. A singularidade deste muro - e por isso ser um elemento desta história - é que ele afinal não é totalmente feito de pedra, tem uma entrada para um jardim. A princípio, se alguma vez aguém descubrisse esta entreda, é folhagem e folhagem que se encontra, densa, escura, sinistra até - seria preciso insistência e uma curiosidade maior para proseguir mais além. Por entre a folhagem existe uma clareira onde a luz do sol entra a medo, com dificuldade. Na clareira o chão tem flores pequeninas e lá está um corpo morto de uma mulher jovem que não se decompõe. Em mil anos foi a única que entrou por uma curiosidade maior e tão fascinada ali se quedou. A espera foi uma força ainda maior e a esperança deixa-lhe o corpo intocável mesmo quando deixou de ser vivo.

Levitação e outros truques

transformando ligeiramente qualquer fórmula podem se obter muitos mais resultados dos que os estudados e esperados. Existe o ensino das combinações essênciais mas o que distingue como único cada um dos praticantes é a forma original com que combina os elementos. A idêntidade de cada resultado final não está na forma como cumpre fielmente a fórmula e como esta é duplicada incessantemente. A idêntidade está na quebra das regras e fórmulas. GG nunca tinha tido acesso a nenhuma fórmula e tinha vinte e cinco anos de experiência na arte de hipnotizar gatos e convence-los a fazerem o que ele queria, como por exemplo roubar cigarros e carteiras nas casas de banho públicas dos hospitais.

Fragmento

Hoje V. trabalhou umas 12 horas na sua nova instalação, ainda que neste horário esteja incluído os encontros a dois com o galerista e alguns clientes. Nesta fase do projecto, V. tem o estúdio aberto a todos os interessados, privados ou representantes de instituições, que paguem o registo para acesso a meia hora de estúdio aberto. Desliga os sensores das mãos e dos tornezelos.
A instalação é virtual e ela molda o material com o corpo todo. Para isso precisa de um sensor especial que tem ligado directamente ao cortex, um novo sistema não transgressor mas ainda demasiado recente para se saber os efeitos da sua utilização a longo prazo.
Espera um pouco, antes de se desligar totalmente, para que algumas pessoas façam as últimas solicitações para assistirem ao desenvolvimento da peça no dia seguinte. Desliga-se então por completo do mundo virtual.
Passa na ventionha desinfectante, veste uma túnica azul e sai para o exterior do cubo que habita. Caminha para uma das rotundas, onde muito provávelmente encontrará outros artistas como ela, e onde poderá informalmente discutir trabalho bem como outras coisas de intersse comum. Não conhece ninguém, como habitual. As pessoas mudam com muita fluidez de cubo, de estação espacial, sempre à procura de uma nova actividade que lhes preencha o tempo até ao dia de serem chamados ao grande filme: onde se toma parte na construção e documentação da história global.

Primeira história do rapaz invisível

Olá Sras escritoras destas histórias, eu sou um rapaz invisível. Podem não acreditar mas é verdade. Não era, não nasci assim, mas sempre quis ser invisível.
Tenho vos lido quando estão a escrever uma e outra história. Por vezes altero-as ligeiramente sem que de tal se apercebam. Outras não, e quedo-me emocionado, sem fazer barulho, a ler o que escrevem.
Gostava que escrevessem sobre mim. Eu sou um rapaz que foi normal até a um certo dia, quando viajava de comboio, e uma bola de golf bateu no vidro da carruagem, quebrou-o e veio logo acertar na minha nuca. Desde então que ninguém mais me vê. Tornei-me invisível e depois de andar à deriva uns meses, acolhi-me na vossa casa e aqui fico por uns tempos.

Duelo

Um duelo de senhores requer concentração no disparo.
A assistência está atenta e os padrinhos aguardam o desfecho.
Há senhoras com sombrinhas.
Eu levei o meu sobrinho de propósito para ver um homem morrer.
À hora marcada para sete passos para três e dois para a frente (como é costume nesta aldeia) chega um mensageiro que traz uma carta e um canivete e entrega-os ao homem X.
Este lê a carta e tenta matar-se com um golpe no pescoço.
Enquanto acudimos o homem X para que volte ao seu posto, surge outro mensageiro com uma carta e um canivete.
Entrega-os ao homem Y. Este mal lê a carta tenta corta os pulsos.
óoooo!
Enquanto a tarde de sol chegava ao seu fim, os dois mensageiros conversavam e discutiam que tipo de regras deviam impor para não interromperem outro duelo; os padrinhos entretanto tinham desertado com enjoos por causa da cena e as senhoras conversavam e procuravam saber qual a razão para tanto aparato – estaria uma senhora envolvida, certamente que sim!

Bom, eu não tive escolha, como já não acreditava que aquilo fosse melhorar, levei o miúdo ao Zoo mais próximo para que visse, pelo menos, um pedaço de carne na boca de um leão. “Querido sobrinho, não acredite nos humanos, fazem tudo mal!”

A Felicidade Não Conta

A boca de Márcia escondia segredos, “Sshhhh!”, era o que diziam todos que a viam chegar de manhã à cidade vinda da praia. Chegava molhada, pés com areia descalços, suja e ainda embriagada, com andar recto sem responder a nenhuma provocação: “...deve ser sereia!!, “...deve ser bruxa!”, “...deve ser peixe...”, “deve ser má-vida...”, ...

Márcia era o fato-identidade que todas as mulheres da cidade usavam para fugir durante a noite à cama dos maridos. Márcia era cada uma à vez, na hora de se esticarem na areia com um homem escolhido. Mas ninguém suspeitava porque todos escondiam o mesmo segredo.

Pedido de Casamento

Há três anos atrás passávamos, eu e o meu marido, férias num parque de campismo no sul de Espanha, parte litoral, com mais dois amigos – um casal, o Uli e a Clara. Eu e a Clara fomos lavar a loiça a um tanque dividido em secções propositadamente para que durante a lavagem não se confundisse as peças de louça. Mal acabo de lavar o último prato paro para olhar para as minhas mãos. Ultimamente sentia-as um pouco secas e até desidratadas. Dou conta que um dos dedos, o anelar da mão direita, está pálido. Friccionei-o enquanto conversava. De início não lhe dei muita importância, mas depois deixei de o sentir. Parecia que o dedo se tinha desligado da mão – não tinha pinga de sangue. Pedi a quem estava perto para me ajudar a entender o que se estava a passar. Procurei por um médico, uma enfermeira ou especialista qualquer, e acabei com um voluntário a beliscar-me a pele que chegou mesmo a pegar num pedaço de vidro para fazer brotar uma gota ou duas de vitalidade. Mas o dedo estava MORTO, sem qualquer dúvida. E acabou por cair no dia seguinte, sem qualquer explicação.

Sob o signo de Gemini

Não se enganem, eu não sou dos que se esvai em raiva e comete erros desmesurados no ardor do momento.
Continuei a amar a minha esposa e a deseja-la da mesma forma e com a mesma intensidade mesmo depois do que se passou. O mesmo posso dizer do meu amigo P. que respeito e com quem sinto uma imensa idêntificação. Admiro-o e mantemos a mesma alegria de sempre apesar do dramático acontecimento. Desse acontecimento não vou falar mas somente da retribuição. O que P. desencadeou foi tremendamente chocante e pede a minha vingança. Poderia aqui descrever o que é o clássico modelo vingativo e como eu vejo esta acção de forma diferente. Sim, acredito que uma pessoa deve confrontar o outro com os seus sentimentos, por mais medonhos que sejam de forma que não haja mal entendidos e enganos. Com o fim de abertamente me vingar de P. desenhei os planos infalíveis para a sua morte premeditada, apontava-a para daqui a seis meses e não desta não poderia escapar. Escrevi-lhe uma carta contando os meus planos, só assim seria uma vingança. Fui ao escritório onde trabalhava. Encontrei-o de saída: "Vim aqui entregar-te esta cara", disse-lhe. Ele respondeu, "Que curioso, ía agora mesmo tentar encontrar-te para entregar esta carta de minha parte".

Taças De Champanhe

Lembro-me muito bem daquela noite e da casa onde se celebrava uma festa de aniversário, cheia de gente e barulho de risos, gritos e taças de champanhe, de onde recebi muitos telefonemas, com intervalos de dez minutos, a lembrar-me que eu não fora convidada e por isso não estava lá.

O que vai, volta

As meninas saltam às cordas no recreio da escola. Uma cantilena repetida como um mantra - quem fica, fica, quem sai fora fica sem cabeça, quem foge morre afogado, quem ... - que percorre as ruas e vielas das redondezas da escola. Um dia deixaram a menina V brincar com elas e por maldade puxaram-lhe a corda e ela arranhou o joelho. A menina V, sozinha, repetiu o mantra consigo mesma dez vezes, e em dez circulos em volta das suas coleguinhas que ainda jogavam à corda e cada vez ficavam mais enrugadas e feias no seu tamanho ainda infantil, as costas curvaram e as forças se enfraqueciam. Por fim tombaram para o lado, mesmo no fim da décima roda ter terminado. A esta altura, menina V, cansada e com a cabeça ás voltas foi para a classe.

Catarata

Ex-prisioneiro, condenado a uma dezena de anos numa prisão Austríaca, rejeitado pela família e pelos amigos, foi para a América do sul, escolheu a fronteira entre a Venezuela e o Brasil para se isolar de tudo o que conhecia. Aí encontrou dificuldades, mas para ele esta era a última oportunidade para se redimir e reencontrar. Tem agora setenta e dois anos e segura um desenho. Não fala nenhuma língua conhecida e apenas por gestos conseguimos entender a legenda do que nos apresenta: um animal próximo dos dinossauros ainda sobrevive naquela selva.

Nós estamos ali para encontrar o ouro e os diamantes, o resto das extravagâncias da selva que fiquem com ele guardadas. Os seus conhecimentos poderão servir-lhe, mais tarde, para trocar com alguma expedição de cientistas alimentos, droga ou cigarros. Procuramos informações para seguir caminho, como não conseguimos, avançamos em direcção à catarata. O homem aponta para o desenho. Estamos agora atravessar a densa cortina de água e ignoramo-lo. Desaparecemos sem deixar rasto.

Aquela zona continua a ser muito rica em ouro e diamantes, em espécies raras de flora e fauna!

O Enorme Ouvido

Trouxeram um elefante da Índia no mesmo barco que transportava especiarias refinadas e as melhores malhas de tecidos com cores nunca antes vistas pelos Ocidentais. O elefante era um animal magnifico, decorado com pinturas e ornamentos vulgares misturados com jóias da realeza. Com ele, apareceu um macaco que lhe servia de guia e companhia. Passearam-se pelas ruas estreitas, nada habituadas àquela escala, como turistas sedentos de novidades. Foram terminar o passeio no mercado onde o elefante ia ser vendido a um preço alto. Quando chegou a sua vez de ir a leilão o pobre animal sofreu ao pensar que se ia separar do seu grande amigo. Atirou-se para o chão de joelhos. Corriam-lhe lágrimas pela face capaz de formar uma poça de lama no chão. Acudiu-lhe um jovem que lhe segredou ao enorme ouvido – “ já ouviste falar em Albaramn Boran? Mantém-te em silêncio e ninguém desconfiará.”

Paralelos

Lêr o jornal, num café da baixa, de manhãzinha é uma prática habitual dos preguiçosos e reformados.
Zé Estrofes não era preguiçoso nem reformado mas também lia o jornal e tinha o vício de ler o ilegível. Enquanto que os outros liam os factos, ele lia as abstracções das narrações. De uma ponta à outra, lia o jornal ao contrário, da última página para a primeira, da última letra para a primeira e aí procurava o desígnio diário nas conbinações das palavras ao contrário e das frases ao contrário. Descubriu ao longo dos anos muitas coisas em relação a sociedades secretas desconhecidas, verdades apocalípticas e rumores de destruição intercontinental. Zé Estrofes morava com o cão Poeta. Era sim senhor um bonito cão e muito inteligente também. Quando tinha dificudades em perceber um enigma bem escondido entre as letras, o Zé Estrofes deixava o Poeta usar as palavras e se não era um, era o outro que encontrava a solução. Isto explica a ligação especial entre eles.

Olhos da verdade

Na sessão daquele dia o reverendo estava mais excitado que o costume. A cara suada com gotas a brotar dos poros espalhadas tão uniformemente que parecia uma laranja. E os olhos assustadoramente esbugalhados, quase que prometiam que o homem fosse ficar cego.
Haveria certamente algum novo crente com a família ou um novo truque para apresentar.

Começou por contar os dramas dos outros, verdadeiros ou inventados, na excitação do costume. Depois voltou-se para as verdades do Senhor ditas através de frases curtas que ou entravam nos ouvidos como ordens ou rodopiavam e perdiam o sentido.

O reverendo chamou-me e eu, sua assistente de confiança, respondi-lhe como era suposto com um grito forte e prolongado, quase me levando ao desmaio, e dirigi-me ao palco. Curar-me-ia de uma dor aguda no peito. O reverendo abraçou-me fortemente, agarrou-se ao meu tórax e disse – “Vai, serás feliz e saudável outra vez...”. Em agradecimento e tal como ensaiado saltei de alegria, mas por vez de o apanhar de frente, usei as suas costas. Estava prestes a desequilibrar-me e segurei-me ainda com mais força entre o pescoço e a cabeça. Saltaram-lhe os olhos que rolaram até à multidão desvairada, em profundo delírio incapaz de ver o que quer que fosse. Os olhos foram chutados para longe para perto de um cego ao qual chegaram intactos. E uma pomba voo fazendo parecer que algo realmente verdadeiro tinha acontecido ali.

Portas, janelas e tectos...

Todos os dias aguentava um bocadinho mais cá fora a beber o café quente sentado na extremidade do canteiro. Andava a puxar a corda e podia-se dizer que esperava encontrar o limite. Mas não, quando estava quase quase a ser chamado à atenção entrava pela porta giratória do escritório com um ar decidido.

À porta de casa fazia o mesmo. Chegava a passo lento e debruçava-se no portão a baloiçar. Ficava a olhar para dentro como se fosse pedir alguma coisa. Não fazia nada excepto quando era apanhado – nessa altura puxava de umas folhinhas amarelas do arbusto sob o pretexto de estarem secas. Mostrava-se sempre útil em qualquer coisa para não levantar suspeitas.

Escusado será dizer: “certo dia...” porque nunca houve um dia preciso. Ele simplesmente deixou de entrar em sítios, atravessar portas, olhar por uma janela e estar debaixo de um tecto.

Estranhamente em casa e no escritório ninguém deu conta do seu desaparecimento.
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Por casualidade, no verão, um colega encontrou-o na praça principal quando estava a caminho de ir tratar um assunto urgente que o obrigou a interromper a tarde de trabalho.
– “Anda desaparecido, não o temos visto...”;
Com um enorme sorriso e bem disposto responder: - “Mas eu estou aqui, não me escondo, não tenho esconderijo!”

A arte do amor segundo o Sr.H

O Sr.H mantém uma lavandaria de excelente reputação entre as famílias mais ricas da cidade. Estas confiam-lhe os segredos das suas nódoas e cheiros das camisas, as moedas e outros items pequenos dos seus bolsos das calças, a lama dos casacos compridos. É muito respeitado, pelos homens especialmente, e há até os que lhe confiam as roupas interiores de excessos. As senhoras, essas, deixam ficar, enroladas à pressa, as manchas das toalhas e lençóis.
Em troca da confiança depositada pela sua clientela, o Sr. H, excelente na requintada arte da embalagem Japonesa e na matemática estética do origami, oferece todo o género de animais e embalagenzinhas. As coisas que encontra para fazer estas pequenas dádivas é surpreendente. Por exemplo, uma marca vermelha numa camisa é apagada com a lavagem. Dentro da embalagem onde é entregue esta vai com pétalas de rosas vermelhas, com pequens pedaços de papel da mesma côr ou uma fita com um efeito de mancha. Outro exemplo, um recibo de estadia num hotel, encontrado no bolso de umas calças, é transformado num pássaro de papel. Todos adoram o Sr.H e ele toma conta das vidas de todos os que na sua lavandaria a entregam.

A cura

Um médico abre a janela do seu consultório para a praça da cidade. É meio-dia e o sol tem uma luz reticente, perdeu a linearidade e por isso move-se de um canto ao outro do horizonte, descoordenadamente, aparece num sítio ou noutro, sem ordem aparente. Ainda ssim, segundo as marcações humanas, é meio-dia. Além de um casal composto por dois homens que se perderam na troca acidental de ideias com palavras que procuram nas profundezas dos seus corpos, mais ninguém ocupa a praça. Esta é a hora em que a cidade é dos escritores. O médico é também um escritor. Neste momento a cidade está imóvel (falando de movimento aparente) para os que acreditam na vida real, ou seja, para os que, a esta hora, não são leitores do que é neste mesmo momento escrito.

Com a cabeça na Lua

Tirem 5 segundos para pensar numa decisão possível de concretizar neste momento e que mudaria por completo a vossa vida. Uma revolução pessoal com o poder que tem uma pedra nas águas calmas de um lago numa tarde quente e por isso preguiçosa de verão.
Ás 3 horas da madrugada de ontem, como antídoto para a insónia que se prolonga por algumas semanas com sucesso, fiz a minha decisão. Mas ao contrário do que possa ser a norma, eu realmente saí da cama e passei dos pensamentos à acção.
Comprei o bilhete para a próxima viagem a saír da estação lunar de YY a caminho da terra. Vou satisfazer a minha curiosidade de andar com os pés bem acentes no chão (eles lá têm gravidade, aqui não) e viver a deliciosa confusão de ouvir e falar muitas línguas e dialectos em vez deste hyper-formatado inglês interespacial onde duplos significados e portanto anedotas e piadas não são possíveis de construir.

Encenar

Não consigo escrever há dias e preciso de entregar amanhã um começo, uma linha que seja, na editora. Estou longe de ser uma escritora de policiais, romances ou histórias fantásticas. Meti foi esta ideia na cabeça de escrever um conto que iria deslumbrar o mundo da literatura e agora estou completamente enrascada. (Penso que também não sou grande jornalista.) Se eu pelo menos tivesse um assunto...uma questão, uma dor, um desgosto, um acidente, um drama, um trama infantil...poderia ter sido vitima, ou testemunha, só tinha que sobreviver para contar.

Mas é agora, é mesmo agora que tenho que escrever e não está ninguém perto que me ajude a encenar ou que me provoque tudo o que preciso para ter assunto, e quem sabe, alma de escritora. Então é assim: e se eu guardasse um papel dobrado com este nobre apontamento: “...Um segredo bem guardado estava escrito num papel.”

A vida

Entraste num comboio como se fosses fazer uma viagem ao centro da terra. Era importante para ti visitar a família e os amigos depois de meses a trabalhar no contexto hostil da capital. Ficamos frente a frente, trocamos sorrisos. Com brevidade iniciamos uma conversa. Que coisas em comum tínhamos? Recordas-te?...Isso, tínhamos tudo. Que espelho! Poderia pintar os lábios só a olhar para ti sem me enganar ou borrar os dentes, podia ajeitar a fita do cabelo, que ficaria logo bem. Que reflexo! Passaram quatro anos e todos os dias eu pensei em ti, éramos tão iguais que me dava a impressão que te tinha tirado alguma coisa. Tirei? Lembraste? Nunca mais te vi e comecei a desconfiar: não é natural encontrar alguém tão parecido para depois nos afastar-mos...alguma coisa se tinha passado. Também não perguntei a ninguém, porque mais ninguém te tinha conhecido (como eu). Nos últimos anos andei por aí em viagens sem ter pousado em nenhum sitio. De tal maneira vagueei que me esqueci onde estive. Mas tenho a sensação que ficou alguma coisa por resolver...que te devo?...

serviços

Um meino pequenino gostava de sangue e bebia-o todos os dias de manhã com o leite e os cereais. A irmã e a mãe estavam muito orgulhosas porque nos últimos meses o menino já conseguia beber o sangue delas, misturado com o sangue de estranhos e dizer exactamente as proporções de cada um. Quando fez treze anos conseguia distinguir já as doenças sanguineas mais comuns. Deixara de engolir. Agora metia o sangue na boca, gargejava, enchia ora uma ora a outra bochecha e deitava fora. Aos quinze aí sim, já era um profíssional e como tal a mãe e a irmã decidem que está na hora de sair de casa e ter a sua vida. Hoje, com vinte e cinco anos, trabalha no hospital e tem como função fazer testes ao sangue.