Uma mulher de fé nunca está sozinha e nunca se aborrece.
Esta mulher que dou o exemplo, enquanto dormia sonhava sozinha e quando acordava pensava sozinha. É natural que nada ficasse fora de si e que as imagens que via eram por si pintadas. Um dia podou uma cerejeira e viu uma cobra corada de vergonha – a cobra disse: “quero-te enganar mas não consigo!”. Num outro dia apanhou uma centopeia no meio dos figos – que lhe revelou – “quero-te morder mas é difícil”. Assim, se sucediam os encontros, felizes e naturais, sem problemas de redução ao mesmo.

Macaco

Existia um intervalo desengraçado entre a racionalidade daquele ser e a sua biologia. O que sentia a meio do dia era fome, mas era uma fome física de comer para preencher um vazio estomacal. Mas se pensasse bem, não tinha qulquer vontade de comer. Imaginava que este sintoma se devia à sua opção em não comer carne. O corpo comunicava-lhe a falta de proteína animal. Mas ele, índividuo formado, com bons sentimentos e excelente intenções tentava a todo custo controlar esses impulsos mais básicos – para ele considerados de bárbaros.

Estava já há uns anos neste regime e não lhe assombrava sequer a ideia de alterá-lo, até que passou pelo jardim Zoológico e comeu um macaco.
Claro está, racionalmente ele nunca o comeu de facto. Mas sentia-se melhor.

Acidente

Ás Sextas fazia meia hora de natação. Depois encontrava uma amiga para o almoço. Eram hábitos de uma vida calma, regulada e sem solavancos. A caminho da piscina, numa manhã muito enevoada e cinzenta, a sua vida estagnou-se. A razão era uma criança que passava na rua e à sua frente se transformou numa borboleta. De volta ao caminho para a piscina tentou fazer a meia hora de natação mas o ritmo estava diferente. Ligou à amiga e não foi almoçar com ela. Chegada a casa nesse dia fechou as portas e as janelas, pediu inetrnamento e foi feliz para o resto da vida.

Javali

Numa embarcação que seguia no sentido dos Açores fora descoberto um homem que viajava clandestinamente. A tripulação não via com bons olhos a aceitação de clandestinos pelo capitão que entusiasticamente os convidava para a sua cabine para lhes oferecer vinho e codornizes requentadas.

Quando a embarcação foi colhida pelo mar desgovernado no centro de uma tempestade o capitão deu prioridade ao clandestino para se socorreu de um barco de borracha e se lançar ao mar. A tripulação revoltou-se e impôs-se armada diante do capitão. Estavam enraivecidos com a natureza e com o destino que se aproximava. De rompante o clandestino ataca a garganta do benfeitor que cai no chão morto sem qualquer hipótese de ser reavivado.


Numa das ilhas dos Açores viveu durante muitos anos um clandestino de grandes peitos descobertos que à noite alimentava um javali selvagem de codornizes e vinhos licorosos, encarnação de um mártir.

(nota de leitura: o clandestino era uma mulher)

Verão alucinante

Foi um Verão em que choveu muito. Sempre e sem parar durante mais de meio ano. É também um verão muito quente. A combinação dos materiais molhados com o sol causa efeitos deveras surpreendentes. Há relatos de grupos de pessoas que vêm cores e formas a flutuar acima das suas cabeças. Há amantes que enlouquecem aos pares. As causas estão relacionadas com a desidratação por enjoo à tamanha quantidade de água que cai do céu e que estagna por toda a parte. Estas alucinações individuais, aos pares e colectivas espalham-se por toda a parte, tal como a chuva. Procurou-se um diagonóstico e uma solução. À falta de voz segura por parte dos médicos. Tentaram-se os magos, mágicos, visionários, artistas entre outros.

Férias

Certo dia uma loja de penhores decidiu abrir as suas portas com um novo letreiro “penhoram-se vidas”. Até ao momento a loja continha os mais refinados objectos feitos em ouro (anéis, relógios, pulseiras, malinhas de comprimidos, canetas, suportes de batons, etc.), dispunha para venda também objectos feitos com pedras preciosas e cristais de imitação, algumas peças de vestuário em couro e pele de crocodilo e pouco mais. O letreiro que anunciava a mudança estava por cima de uma vitrina vazia.

Na manhã em que a loja abriu estava já um cliente à porta, vestido de preto da cabeça aos pés, com sapatos pontiagudos dramaticamente envernizados, chapéu fora de moda colocado de lado mal cabendo na cabeça e uma bengala esquisita na mão. Esperou que o dono desse por ele e ao mínimo gesto irrompeu com a mão para a frente para o cumprimentar. Apresentou-se dizendo que era um simples cangalheiro, mero agente dos desígnios divinos, com falência à vista uma vez que a saúde não era um problema nos dias que corriam. Mas o dinheiro era – disse peremptoriamente. E, desdobrando-se em explicações disse com honestidade que aquela ideia era tão boa que apenas lamentava não ter sido ele o primeiro a tê-la... Depois de uma breve pausa de silêncio forçado, adiantou-se então a fazer a proposta que constava do seguinte: ...e se as pessoas pudesse morrer por umas horas, dias ou anos para não terem gastos? Cancelando temporariamente a sua existência? Assim, como uma penhora...Claro que mal pudessem e recebessem, talvez, uma herança, podiam voltar ao que eram...Era como se fossem de férias para outro sítio.

Bruxa

Num campo de férias um grupo de pessoas de todas as idades jogava um jogo tremendamente excitante – uma espécie de “quente e frio”. Uma monitora tocava no piano notas ora graves ora agudas, consoante os participantes se aproximassem ou se afastassem do esconderijo do tesouro secreto. Passadas algumas sessões descobriu-se que quem encontrava o tesouro era sempre a mesma pessoa, a idosa Senhora Chanpu. Desfeita em risinhos e lágrimas de emoção mostrava-se ainda em forma para receber os abraços ternurentos e piedosos dos seus companheiros. Uma criança mal-educada teve o atrevimento de lhe perguntar porque acertava sempre no sitio do esconderijo e ensinou se por acaso a Senhora não seria uma bruxa... A criança estava claramente incomodada por ter perdido aquele tesouro cheio de bombons de licor e queria que se fizesse justiça à sua maneira.

A Senhora Chanpu atrapalhou-se um pouco a acabou por afirmar que era francamente incapaz de distinguir uma nota grave de uma aguda, mas conservava uma visão de água e podia muito bem ver quando a monitora sorria e revelava o canino brilhante não deixando espaço para dúvida, mal o canino aparecia o tesouro estava próximo.

incompleta!

As duas raparigas representadas na pintura de Renoir sentadas ao piano estavam apaixonadas por Goethe. Contudo o poeta vivia subtraído aos seus sentimentos dedicando-se exclusivamente ao estudo da metamorfose das plantas procurando um modelo de planta que servisse para reconhecer todas as outras plantas. O estudo em processo, prolongado por mais de vinte anos, era notavelmente exaustivo e rigoroso. De modo que o poeta, decidido pela ciência sem ter para isso estofo, esforçava-se muito para não correr o risco de ser motivo de chacota da elite de cientistas da academia.
Certa tarde de sol as raparigas terminaram os ensaios mais cedo decididas a encontrá-lo durante o estudo. Levavam-lhe um ramo de flores variadas, em cor, forma e textura, supondo que assim o poeta e cientista lhes daria maior atenção. Porém, tinham-se esquecido que eram feitas de óleo e ao contacto com primeiro raio de sol desfizeram-se em lodo cinzento. Estavam tão motivadas que o lodo que tinham formado corria pelo campo procurando Goethe. Quando o encontraram meteram-se sorrateiramente nas botas, entranhando nas ranhuras.
Chegada a noite, Goethe prepara-se para se deitar. Julgando-se sozinho naquele quarto da estalagem onde estava hospedado, dirige-se às botas e notando no lodo, espesso e em abundante quantidade, forma com ele a planta das plantas - modelo universal.

Tortura

Lá fora decorria uma tempestade como não havia memória. Intercalavam-se raios e relâmpagos, caia chuva só muito espaçadamente quando não calhava de cair granizo, já o vento corria com força, vergastando os ramos das árvores sem pudor.

Enquanto isso, certos jovens mantiveram o hábito de se encontrarem, ao anoitecer, naquele salão de convívio - divisão principal de um importante ateneu, cujo estatuto de membro herdaram do pai ou do avô. Lacravam a divisão por dentro até ao amanhecer.

Formavam um circulo curioso de ociosos pachorrentos muito vocacionados para os prazeres da vida e pouco inclinados para o trabalho. Eram jovens, rapazes e raparigas, cheios de entusiasmo e de ideias mal paridas que estavam ali confortavelmente acomodados sabendo que o futuro estava sem qualquer dúvida assegurado.

Fumavam, bebiam licores, comiam docinhos secos e contavam piadas para se rirem até à exaustão. Quando se abeiravam desse ponto de açúcar chamado tédio sabiam, no seu íntimo, que estava perto o momento de porem à prova o modo de vida que tinham elegido.

Costumavam então imaginar como podiam converter o espaço onde estavam num antro de tortura medieval que descreviam, à vez, com detalhe e em voz alta a todos os outros convivas. Era nesta altura, que temendo o pior, um deles enlouquecia com angústia. Os restantes revigoravam-se com a falta de coragem do louco que tinha levado a brincadeira mais longe que os demais e assim a festa continuava e o tédio desaparecia.

CORTINA

Uma cortina espessa de veludo vermelho cobria toda a parede do fundo do quarto.

O tipo de tecido de que a cortina era tecida, causava uma escuridão absoluta.

Quando ela se levantou, caminhou em direcção à cortina de forma a abri-la e assim inundar o quarto com a primeira luz da manhã.

Tentou a primeira vez, segurando numa ponta do tecido e com um gesto energético, puxou-a para a esquerda. Encontrou uma porta fechada.

Tentou a segunda vez, procurando a outra extremidade e com um gesto semelhante puxou a ponta do tecido segurando-o com força. Tinha destapado agora uma parte da parede com tijolos à vista.

Descontrolou-se um pouco pensando que afinal aquela cortina não servia para cumprir o seu fim.

Procurou então o meio. Colocou as mãos nesse meia e com um gesto vigoroso abriu a cortina nos dois sentido. Desta vez encontrou uma reentrância que não dava a lado nenhum, uma espécie de armário sem porta com morcegos lá dentro que naquele instante tinham despertado.

Estava assustada e estupefacta com esta experiência. Voltou a fechar a cortina, a pôr tudo como estava.

Sentou-se na beira da cama à qual tinha chegado com dificuldade. Reflectiu no que lhe acontecera e concluíra que a cortina respondia aos medos que sentia.
Se desviasse o sentido do seu pensamento que veria? Experimentou e viu as escarpas de montanhas pontiagudas, planícies douradas pontuadas de elegantes cactos, e por aí – fo - ra

Pertença ao inútil

Todos os habitantes da aldeia têm direito, num dia das suas vidas, visitar o oráculo. O oráculo é consultado somente pelos membros governantes e para fins de estado. O local encontra-se para além da entrada da gruta na montanha, numa sala coberta de ouro nunca recolhido pelos caçadores de preciosidades. Uma vez por cada habitante, portanto, este oráculo, a que se reservam premonições fabulosas, pode ser consultado para fins pessoais. Foi no dia do seu quadragésimo aniversário que M. o foi consultar. Não tinha consigo uma pergunta, achava somente que estava na hora. A sua vida era dura e poderia nunca o consultar se esperasse a grande pergunta que colocaria ao oráculo. Lavou-se e vestiu-se, como se faz, em qualquer cultura, quando se trata de uma celebração ou de um dia especial, e dirigiu-se à montanha. Não voltou a ser visto na aldeia. Nesse ano o inverno foi duro, muitos morreram de fome e o oráculo foi visitado por homens perdidos por saber o rumo a dar à aldeia.
M. não sabia da fome. O ouro, na sua pureza, na sua inutilidade, pela incapacidade de troca ou de utilização, tinha o encantado.

A comunidade que se repete

Sentado debaixo de uma árvore exótica cujos ramos e o tronco se confundiam, Elder olhava para a palma das mãos com estupefacção. – “Não pode ser, não pode ser”. Dizia ele para consigo mesmo.

Apalpou com as mãos o ventre e massajou-o em círculos perfeitamente sincronizados pelas as duas mãos. Parecia que procurava ver-se à transparência como numa ecografia. Pressentia que havia vida lá dentro, um certo tipo de vida que pouco ou nada dependia dele. “Quem está aí? Está aí alguém?”.

As aulas de biologia e a professora em especial - que lhe dera tantos conselhos para o futuro como amiga tanto quanto o punia com olhares severos – alimentaram nele a ideia que havia vida, mas uma vida múltipla, em número, e agora sabia que era verdade.

“E as abelhas? E as formigas? Comunidades de grandes e de pequenos? Dentro e fora de mim?”.
Enquanto se confrontava com a imensidão do universo e a sua desoladora finitude lançou mãos à obra e com um pauzinho desenhou na poeira, debaixo daquela singular árvore, uma cosmologia de escalas sem hierarquia, eram apenas assim.

E descobriu que pela relação que tinha criado, ele e os seus semelhantes podiam muito bem ser qualquer coisa como um microrganismo no ventre de um gigante.

Técnicas para a curiosidade

Três escritores encontra-se no banco e todos vão depositar o cheque referente ás vendas do último livro que editaram.
Conhecem-se mas não muito bem. Querem saber mas não perguntam quais os números que estão escritos nos outros cheques. As técnicas divergem. Um tenta utilizar as suas capacidade de visão de se abstrair do material e ler através do papel o que está escrito na outra face. O segundo tenta a força da mente para retirar os cheques dos bolsos e das mãos, para que se dobre ou se abram e conseguir assim lêr o que deseja. O terceiro, menos necessitado da resposta no imediato, escreve um próximo livro onde indica os seus honorários e espera pelas reacções dos parceiros.

Atracção

Dois precepícios, em dois continentes diferentes, moram frente a frente o mesmo planeta.
Não se avistam mas estão conscientes da sua existência em frente um do outro. Um dia foram planície uniforme e isso ficou na memória histórica.
As pontas opostas destes dois continentes nunca se encontraram e a sua forma transforma-se no sentido do desconhecido, afastando cada vez mais estes dois nossos conhecidos precipícios que não sabem que se afastam muito lentamente a cada segundo que passa.

Acidentalmente na rua

Um gato olha a rua da janela de uma casa desabitada. É a casa onde mora com muitos outros gatos. Passam as pessoas na rua a caminho de um qualquer destino. Cada um conhece o seu. O gato vê atentamente uma pessoa ao princípio da rua, prepara-se para o salto. Olha para trás e com um olhar despede-se da casa e dos gatos e da sua vida. Volta-se de novo para a rua, ganha lanço, salta e vai terminar o salto no colo da senhora que ainda há minutos estava no princípio da rua. "Olá, disse a senhora, vamos para casa?" E foram.

O triunfo

(um titulo escrito antes de um texto)
Entrou de manto vermelho, pela igreja adentro. Decorria a missa de Domingo. Uma matilha de quarenta cães seguiam atraz. Estava nú e era bonito, muito alto, excêntrico e arrogante. O padre congelou perante o vislumbre de um possivel demónio, mais vivo que o próprio deus vivo. Os fiéis olharam a impressionante grandeza de um homem nú. Os cães entraram a ladrar. Por debaixo do manto saíram dez anões que logo trouxeram bancos que puseram em cima uns dos outros. O homem subiu ao cimo dos bancos dispostos em pirâmide. De lá de cima, de mãos e braços abertos urinou. Levantava-se do chão um cheiro pestilento e quente que logo se propagou pela igreja. A urina ficou seca e transformou-se em sal. Diz alto "Sou o Jacinto Perdido, venho, mais uma vez, me entregar a vós". As palavras fizeram uivar os cães. Em pose de ascenção, de braços abertos, caiu das cadeiras. Os anões levaram-no as costas, horizontal e desmaiado. O Jacinto não era o louco mas o regente amado por todos os cidadãos desta aldeia que fica mesmo ao lado da cidade onde moro.

Por exclusão

Trabalhador competente, disciplinado, organizado e com estudos apropriados procura esposa compatível.
Eram três da manhã e M. procurava pelos óculos para lêr. Tinha muitas insónias e regularmente também dores nas costas. O seu colchão, nos sonhos, movia-se e depois acordava com estas dores. As pessoas que apareciam nos seus sonhos eram sempre as mesmas: as senhoras que visitara na sua procura mal sucedida pela esposa compatível.As situações eram também as mesmas: estas senhoras tentavam o enpurrar com as mão por debaixo do colchão.
Assim que encontrou os óculos leu os seus documentos preferidos para aquela hora. Lia as mãos que cortava ás senhoras a quem as pedia e que as recusavam. Relia as suas vidas e os destinos traçados nas linhas do amor, das vidas que congelou. Porque M. era competente, disciplinado, no emprego e esta sua missão também.

200

Esta noite a história é simples, passa-se na biblioteca de uma importante cidade universitária onde um conceituado professor procura um livro. A única pista que tem é que esse livro não está catalogado, está entre prateleiras, entre pisos, entre secções, entre campos do saber, etc. Porque este professor era verdadeiramente comprometido com a sua profissão e amava o ensino como recriação e não como repetição de palavras alheias. Este livro, talvez um compendio escolar, concluiria que há todo um conhecimento a ser travado com o desconhecido, do qual seria apenas uma prova.

A história termina com o professor a arrastar os móveis da biblioteca em vão.

O livro contudo, existia, estava precisamente a ser escrito e constava já com duzentos pequenos capítulos.

FOME

Um deles disse - “Aqui há fome”
Os outros três, sentados no chão, encostados às paredes, fitavam embasbacados, como se fora um milagre, a fina linha de luz que entrava naquele exíguo compartimento. Há já alguns dias se tinham selado com tábuas e tijolos numa casa da montanha para discutirem assuntos que lhes pareciam serem de séria envergadura. A conferência fora organizada tendo em vista o entendimento entre todos nas suas diferenças ideológicas.
O resultado era aquele: tinham esgotados as palavras, a garganta e a saúde em geral provocando-lhes ardores no estômago e chagas no fígado; tinham-se debatido não só com a linguagem mas com o físico também. Enfim, tinham-se debilitado por todo aquele circo que os tinha transformado em menos humanos, transpondo mesmo a fronteira para o animal - estavam sujos e a pele já tinha crostas

Uma voz rouca respondeu – “...há fome e há cães lá fora, na entrada da porta, à espera de se saciarem. Haverá sempre fome e caras com fome.”
Um outro disse – “referes-te à história escrita da humanidade?”

Três minutos

Entraram ambos, ela na frente, pelo portão metáloco, dentro do roseiral. Poderia ser um qualquer mas calhou que este tinha sido programado por ela com base num outro existente numa outra cidade onde se tinham conhecido. Ao desenho deste acrescentou coelhos brancos e andorinhas a contrastar e arranjou um problema com o som de fundo que no outro, dada a sua falta de experiência, tinha ficado demasiado confuso. Sentaram-se no bando vermelho de frente para o lago feito de perdra. Olharam-se demoradamente. Toca a campainha. Tudo se desintegra - escape button e de volta à realidade. Tem vido a reconstruir esta cena de três minutos, no tempo em que está só em casa, durante os últimos dez anos. Um bonito passatempo que os demais desconhecem.

O drama

O coro entoava os tons iniciais do Magnificat de Arvo Part enquanto que o conjunto de cantores caminhava para o centro do palco. A platéia assistia imóvel porque o momento era sagrado. Enquando as vozes prosseguem e se levantam em tons mais intensos, de entre a paltéia um homem se isola ficando em pé. Aos poucos, de todos os seus bolsos tira papéis, flores, laços vermelhos e lenços de papel usados e amachucados. Dos bolsos do interior do casaco tira papés escritos à mão e o suor deixa-lhe tinta azul nas mãos. A boca estã cobera de baton vermelho de um beijo apagado. Não chora. O coro prossegue, mais calmo, mais silêncioso agora. Aproxima-se o final. No final da música o homem cai como se desmaiasse e assim desaparece no chão. Ficam todos os resídios da sua passagem.

Nenúfares

No palácio, o lago de nenúfares que existia agora entre o roseiral e o labirinto de sebes, foi mandado construir para apagar as marcas no chão das botas dos soldados que por ali passaram em direcção ao campo inimigo e para impedir que outras ali voltassem.

Mas não passou de uma intenção, porque a guerra tinha voltado e o inimigo usou os nenúfares para suportar os pés, atravessar o lago e atacar o palácio.

Plástico

Desenha flores todos os dias, a começar à mesma hora, em todas as estações do ano, com intervalos frequentes para comer uma maçã, rabiscar um recado, fazer um telefonema ou olhar as mutações das nuvens no céu. Ainda não pode sair do quarto. Porque se saísse tinha um desgosto ao ver que as flores que desenha não existem.

Ao contrário do que se desconfiaria ela não acredita na imaginação – isso é coisa dos tolos. Ela apenas concebe a existência da realidade e esta tem, para ela, flores que podem ser desenhadas. E ela desenha-as com fidelidade a partir do seu quarto. Ela diz conhecer todos os pêlos dos caules das flores, os veios principais e toda a circulação, diz que não lhe escapam as configurações exteriores e a morfologia interna, que sabe bem como se reproduzem e que não é nada ingénua nesta matéria. Nenhuma informação lhe escapa e quase se poderá pensar que engoliu um herbário. Os desenhos são provas disso: sublinha tudo a preto puxado para convencer toda a gente que só tem certezas na sua cabeça – e nada de ilusões.

As únicas flores que não existem são as de plástico que estão em cima da mesa de cabeceira e as únicas que ela vê.

Hotel

A princesa egípcia veio visitar-nos na Primavera passada para se recolher com a jovem actriz húngara no quarto. Partiu três meses depois para acompanhar a actriz que fora contratada para participar num ballet moderno, dos que passam nos casinos. Este ano a princesa egípcia apareceu-nos à porta - era inverno - com as malas na mão, mais abatida que antes, cheia de febre e expectoração ensanguentada. Foi para o seu quarto privado e lá permaneceu sozinha.

Apareceu-nos um dia, com toda a elegância de uma princesa verdadeira, das antigas, educada a distinguir um grão de arroz apanhado ao luar ou em pleno dia, vestida cerimoniosamente para o lanche. Ficamos tão radiantes que mal lhe falamos – queríamos contar-lhe as novidades e, em retorno, saber o que tinha feito nos últimos meses. Ela apenas sorria, num sorriso que não se desmanchava com os tragos de chá.
Estávamos embasbacados a observá-la. No final, retirou-se até ao quarto. Seguimo-la com o olhar e mal a perdemos de vista comentamos que uma princesa assim merecia melhor sorte que andar por aí tristonha e abatida por bailarinas medíocres.

Depois de toda a excitação daquele dia, a princesa não voltara a sair do quarto.
A pedido de uma mulher egípcia que ali se encontrava connosco, mandaram chamar a família.

Eu vi a princesa mais uma vez vestida com a elegância merecida de um fato metálico, pintado de cores fortes, onde foi depositada a sua múmia.

FAROL

Há mais de vinte anos que vivia isolado numa ilha não identificada em nenhum mapa ilustrativo da região, tendo por companhia uma velha pedra castanha, bastante polida, que ele guardava embrulhada na palma da mão.
Existiam animais, plantas, e outros seres vivos não classificados como pertencentes a uma ou outro espécie, mas este homem escolhera uma pedra para conviver e mais nenhum outro.

Quando foi encontrado por um barco de pesca que, fugindo da rota oficialmente traçada, e acidentado por uma tempestade não prevista, foi ancorar ali numa das margens da ilha, pediu aos seus tripulantes que o levassem. Assim aconteceu.

Durante a viagem, a meio da trajectória, do caminho de volta, o homem abre a mão e diz à pedra “vamos ver a Europa, um pão, um copo,...”. A pedra estava vermelha da temperatura tão elevada da palma da mão e imanava um luz singular. Os pescadores olhavam o homem como se desconfiassem pela primeira vez dele e atreveram-se a perguntar a razão de ser da pedra. O homem sentiu-se intimidado e com enorme resistência respondeu: saí da civilização com um fim e esse não seria cumprido senão em diálogo com esta pedra que imana a luz da minha própria presença.

Laçaram-no ao mar, não por discordarem, porque não ousariam fazê-lo, mas por medo das palavras do desconhecido que não representavam nada de concreto. O homem estendeu-se de barriga para cima com a pedra ao peito e tornou-se num farol.

Pausa

Um dia inteiro em plena imobilidade é um dia perfeito. A imobilidade mental e física é uma actividade aconselhada pelo conselho de ministros das vidas. O ministério regula a catalogação e historial das idêntidades e vidas multiplas e paralelas dos individuos. Este é o único país onde é legal e portanto há regulamentação para se ser, no presente, e ter sido, no passado biologico, várias pessoas. Contudo não é, de todo, um país avançado, muito pelo contrário. Este é um país onde as pessoas, tal como M., se preocupam com os métodos de fazer o que todos fazem mas de forma consciente e legal. Hoje é um dia perfeito para M. que se entrega à contemplação enquanto olha as imagens projectadas na sua retina enquanto flutua numa espécie de tanque de águra tépida. Vai ficar assim todo o di,a imóvel. A imobilidade aprende-se. Não e fácil nem induzida de forma artificial. A meditação ajuda à imobilidade. A meditação aprende-se por consequencia, também não é fácil mas é necessária ao equilibrio. M. pratica a multipersonalidade há várias décadas e este é o seu terceiro involucro de carne. O segundo era homem. O primeiro e o terceiro mulher. Não gosta da diversidade do sexo: ou homem ou mulher e deixa que a imaginação e a construção da idêntidade faça o resto.

A pesada continuidade do acto de escapar

Um pastor tinha um filho muito descontente com o seu futuro. O filho do pastor não queria guardar ovelhas. Foi para a cidade e tirou um curso superior. Por ser uma pessoa estranha; nada cosmopolita e até bizarra, em breve se tornou uma figura enigmática, respeitada. Oor ser um rapaz aplicado era venerado por alguns colegas.
Os sonhos estranhos começaram numa noite específica em que o filho sonhou com o verde dos campos e com as ovelhas e pareceu-lhe tudo aquilo se passava num lugar muito distante e ao mesmo tempo tão perto sentia o som da brisa na relva e o seu cheiro. Depois deste sonho, noutra noite, sonhou com combinações entre impossiveis e entre opostos. Todas elas faziam sentido mas nenhuma podia ser explicada de forma racional. Passaram então estes sonhos a ser mais regulares e cada vez mais estranhos. Ás vezes encontrava pessoas que nunca vira e com quem conversava, sentado numa pedra, enquanto olhava as ovelhas. Parecia que, fugindo dos campos, estava agora a voltar a eles. No último sonho, e a razão pela qual resolveu ser pescador, sonhou com o pai.

O real em duas rectas que se encontram um pouco antes do infinito e por acaso

Ele diz-me, há dois anos escrevi o teu nome e desenhei-te, tal como eras, no meu caderno de pensamentos.
Conhecemos-nos há três dias. Mostrou-me o caderno. Na verdade o desenho é quase uma cópia de uma foto que tirei um dia que estava sozinha em casa. Nela me represento com todos os desejos do que queria ser mas não tinha a coragem. A foto, o desenho, mostravam alguém que fazia parte das nossas vidas desde há anos.

Propriedade privada

O professor começa a apresentação da sua investigação. Está sentada uma multidão de alunos e colaboradores que acompanhanhou as suas ideias e hipóteses desde o início. O momento é de muita ansiadade. O Professor passou os últimos dias sozinho no seu escritório a finalizar os pormenores da investigação. Não tem comido nada. É certo que esta nervoso. Inicia a apreentação do problema que deu origem à invesigação. É um probema deveras complexo muito ousado e controverso. Quinze minutos decorridos e o Professor sai, precisa de ir à casa de banho e não voltou. Mais tarde algumas pessoas vão tentar perceber o que se passa. O Professor passa um bilhete por baixo da porta do compartimento onde se meteu. impossibilitado de terminar a sua própria vida, recusa o encontro físico com qualquer outro ser humano. Recusa a apresentação ou partilha dos resultados da sua pesquisa que são fruto do seu trabalho. Não os pretende nem partilhar nem aplicar. O problema manter-se-á somente um problema. A solução existe e é suficiente saber que esta existe porque é motivo de esperança no futuro. A sua solução é irelevante. Os dias passam. Para sobreviver come o papel que tem o seu trabalho impresso mas não empurra com nenhum líquido. Morre por asfixia. Um homem incompreendido.

Designer social

Os designers sociais são uma classe em ascenção. A solidão social, associada com esta ascenção, é no entanto uma maldição. Esta actividade Iniciara-se na clandestinidade. O individuao, ou colectivo, designer ou designers, profíssional multidisciplinar e conhecedor dos comportamentos sociais, da cultura, dos materiais, é no princípio chamado a ajudar secretamente amigos próximos. Em conjunto desenham Alguns dos pequenos governos autónomos das ilhas isoladas do pacífico. Estas ilhas, propriedade privada, graduamente, por desinteresse dos governos maiores, transformam-se em países independentes. Este fenómeno acontece de novo em regiões de frio extremo. Ultimamente estas forças menores são inúmeras, diversas e marcam uma alternativo ás estruturas tradicionais de governação, obsoletas e infrutiferas. Para muitos estes novos países de governação muito diversificada, são o que a realidade conseguiu de mais próximo das suas utopias. Os designers sociais ouvem o ideal pretendido, coordenam a constituição dos sistemas e acompanham os primeiros passos da sua implementação. Vivem cad vez mais no isolamento e exclusão social. Não é permitido a um designer viver uma zona/reino/país que ajudou a constituir. Prescinde desse direito no momento em que assina o contracto de aceitação do projecto. Protege assim todos os futuros habitantes porque não concede a si ou à sua classe favores maiores. Por outro lado o designer é o que outrora foi o cowboy. Um solitário que habita as estepes de um país sem regras nem lugar fixo.

Fatalidades

A vizinha do lado ouvia insistentemente ópera todo o dia. O gato da vizinha sentava-se no parapeito da janela e miava para a cantorado rádio num dueto que poderia ter piada como podia ser um drama, dependendo da disposição. Acontece que do outro lado da rua havia um homem alto que morava no mesmo andar. Como não tinha mais que fazer fumava cigarros e desafiva o gato para chamar a atenção da dona. Morria de curiosidade de ver a bella donna (era Italiana porque chamava o gato em Italiano). Na rua passava a ex-mulher do homem alto que o perseguia obcecada.
Um destes dias o homem apareceu à janela, logo de manhã, com dois amigos. Desafiavam a vizinha a aperecer e estavam bêbados. Dada a insistecia a mulher veio buscar o gato à janela e dizer buon giorno. Os homens empalideceram e desapareceram.
Do lado de cá continuou a voz da cantora de ópera.
Há dois dias atrás deram com o senhor alto morto à porta da vizinha do lado. Tinha tinta azul na boca e estava descalço. O gato lambia-lhe os pés. Os amigos dizem nada saber. A ex-mulher está louca. abri a porta e falei com o policia. Disse-lhe que ali morava uma senhora, a quem o gato pertencia. Que nunca a tinha visto mas sabia que ouvia ópera todo o dia. Nunca ninguém no prédio ouviu ópera no apartamento ao lado, ouviu falar da bella donna nem tinha visto o gato.

Motivo

Naquela madrugada, do grupo que seguia na caminhada organizada pela enfermeira voluntaria Sra. K, energética e bem disposta, separaram-se dois rapazes que se distraíram com um mocho que ainda não se tinha retirado. Os dois companheiros caminhavam sem pressa, pois não estavam habituados a acordar àquelas horas e mantinham-se bastante sonolentos, e aos poucos esqueceram-se do animal que seguiam. A diferença de idade entre eles e o restante grupo era grande e por isso não era de estranhar que se se sentissem aborrecidos. Estavam ali porque eram os netos órfãos do Sr. W que não tinha onde os deixar.

Quando perderam de vista todos os conhecidos sentaram-se num grande rochedo revestido de musgo. Foi então que se soltou o sangue a Edgar, o mais novo, que, em estado de grande aflição, agarrou numa folha amarela, molhada do orvalho, e a levou ao nariz. Foi então que os dois perceberam que o sangue não era tão fino e liso como tinham imaginado – saía como uma fita de amarrar o cabelo das raparigas. Talvez nunca tivessem visto sangue antes, concluíram. A discussão que tiveram à volta deste assunto levou-os à morte, a matarem-se um ao outro por asfixia derivada de estrangulamento. Talvez se possa pensar que o motivo não era suficientemente forte, mas para as duas crianças foi.

Silêncio

Um peregrino seguia pela margem de uma estrada alcatroada. Era talvez um homem, pelo recorte do corpo, largo nos ombros, estreito na cintura. Vestia-se totalmente de preto e tinha a cabeça coberta de um lenço da mesma cor. À noite, este peregrino era invisível.

Quando foi visto certa noite, através dos faróis de nevoeiro de um carro, tapou a cara com as mãos e encolheu-se aos poucos até se reduzir a uma espécie de bola de pano. Quando dois homens saíram do carro e lhe perguntaram com simpatia quem era e para onde ia, e se precisava de ajuda, o peregrino gritou um som horrível. Os homens, após muitas tentativas, perderam a paciência e empurraram-no. Empurraram-no várias vezes, até começarem a esmurrá-lo com força em todas as partes do corpo aleatoriamente.

Quando a bola de pano ficou molhada de sangue, os homens desistiram e deixaram-no em paz. Assim ficou imóvel, aquela bola que tinha agora como mancha de sombra um tapete vermelho de sangue. Quando a população da aldeia onde se encontrava acordou e viu aquela bola negra destaparam-no e viram um corpo nu, de um homem, certamente peregrino, que fizera votos de pobreza e de simplicidade absoluta. Conseguiram acordá-lo e pegando-lhe pelas axilas levaram-no até a um quarto para o tratarem. Ao recuperar os sentidos o homem mostrou-lhes o silêncio.

Estima animal

Antes de entrar no prédio respiro fundo até desacelerar a respiração. Fica então mais lenta e eu fico aos poucos mais e mais invisível. Entro no prédio e subo as escadas calmamente. A respiração não se altera. Não há barulho. Entro em casa muito silenciosamente. Tenho oleado a porta todos os dias muito disfarçadamente.
Há duas semanas que uso esta técnica para entrar em casa em silêncio.
Tudo começou quando um dia fiquei com a impressão que os meus gatos falavam entre eles. Estes últimos dias, em que a minha técnica para a invisibilidade começa a funcionar cada vez mais próximo da perfeição, consigo os apanhar em grande flagrante. Uma vez falavam sobre elaborados esquemas que planeavam em conjunto para comerem mais e só o que queriam.
A minha perspectiva dos gatos, que tenho por amigos e companheiros, está em mudança. Aos poucos compreendo-os como seres que ultrapassam o meu entendimento em planeamento e pratica de estratégia. Utilizam técnicas de acção colectiva e comunicação supra-sensorial muito mais avançadas do que qualquer humano.
Quando entro na sala, nos últimos dias, calam-se. Sento-me entre eles, ligo a televisão. Um deles vem se deitar no meu colo. Aparentemente mantemos o comportamento aceitavel nas relações dona com animais de estimação.

O estranho

Acertei as indicações no painel de controlo, dei indicações para estar tudo a postos para quando chegar e depois adormeci. Esta é uma viagem de visita à colonia lunar. Para a habitar foram enviados todos os que por vontade própria desejaram ir. A minha curiosidade e razão desta visita é saber o que levou esta enorme quantidade de gente a querer vir habitar a lua.
Ao fim de alguns anos duas facções, quase como que duas culturas, se distinguem entre os habitante da Nova Terra. Em nada são distintas à primeira vista, no entento, através da observação atenta das mãos no manuseamento dos utensílios consegue-se distinguir algumas diferenças. Uma prefere tecnologias com formatos cilindricos, onde os dedos têm pouca utilidade e os braços são importantes. A outra prefere tecnologias matrixiais, em superfícies planas, verticais ou horizontais, em que cada dedo tem uma função na elaboração de uma tarefa. Ambas partilham o mesmo espaço físico e os recursos pacíficamente. estas diferenças são só aparentes, na verdade a forma como pensam e a atitude perante a vida é muito diferente.
Cheguei. Uma rapariga vem me receber à porta do hangar para me acompanhar aos serviços de recepção que tratarão dos pormenores da minha estadia. O hangar é um lugar silencioso, confortável e de luz difusa mas ténue. Quase me sinto ser abraçado pelo edifício. Em tudo este é um lugar impossivel de existir noutra parte senão na Nova Terra, uma terra não conquistada pela violência a ninguém e onde todos estão por vontade própria e sem agenda religiosa.

As regras da evolução não são aplicáveis a esta colonia. Estes habitantes estão longe do seu sistema natural evolucional. Aqui tudo é cultura e quase nada é natureza. São máquinas programadas, programando-se. Não há bacterias nem ervas daninhas que não sejam de imediato detectadas e eliminadas. Em menos de duas horas sinto a asfixia e tenho medo de ceder ao sono que se apodera do meu corpo.

irmãs devotas ao conhecimento transcendental

Ao pequenos almoço duas irmãs sentaram-se na nossa mesa. Havia falta de lugares à hora do pequeno almoço ser servido porque toda a estância queria guardar a vez nos tratamentos livres – não prescritos pelo médico. As duas irmãs não tinham no entanto pressa, estavam bastante calmas e comiam de modo exageradamente vagaroso. Podíamos ter passado bem sem nos cumprimentarmos ou trocarmos uma palavra que fosse, mas acabamos por perguntar há quanto tempo estavam ali. A resposta delas foi pausada mas directa, depois da qual nos levantamos para acabar de fazer as malas e partir - sem nunca dali partirmos de facto ou nos separarmos delas.

Investigação Vita

O cheiro a podridão inundava o espaço: entrava pelas narinas, afectava o raciocínio e matava a vontade. Fazia-se sentir, gradualmente, desde a primeira das três portas do edifício, alinhadas no corredor esguio, que ligavam o exterior à sala de espera. Chegada à sala, dois corredores, um para a direita e outro para a esquerda, longos, com portas brancas de ambos os lados das paredes. Ouvem-se passos, ouve-se água que é despejada, que corre em jactos e enche recipientes e o murmurinho de gente por todo o lado.
A missão é descubrir o segredo da extracção de sumos vitais por métodos de destilação sem provocar a morte dos pacientes. Curas pelos benefícios termais é uma excelente desculpa para fazer despir todos os idosos que saem daqui sem memórias, porque estas são extraídas de forma secreta e milenar. Esperei trinta anos até ter a idade para fazer esta investigação. Até aqui podia somente ler e informar-me. Enviei muitos amigos para fazer as experiências mas todas elas foram frustrantes esperanças. Venho eu finalmente, em pele, osso e cheia de memórias. Salvaguardei tudo o que me lembro de ter vivido para que possa ser recuperado. levei anos a documentar a minha própria vida. Vou. Espera-me uma senhora ainda mais velhota muito baixinha e de roupa branca.

Utopias particulares

Muitas das vezes uma utopia é um lugar tão pequeno, pequenino que não o vemos com os olhos. No entanto existe no mundo.
Inventei muitos mundos debaixo de água e no topo da montanha porque aí teria a distância necessária e o isolamento próprio qpara a concretização de uma utopia. Uma utopia é onde sou eu, para mim e para mais ninguém, onde são sou o que devo ser ou sou o que devo parecer ser. Gradualmente esses lugares, da montanha ao subsolo, passado pelas profundidades das águas, foram ficando populados por vários mundos de fantasia. Por vezes, no caminho para um lugar em específico, confundia as direcções de um lugar com as de outro e acabava no lugar errado. Os grandes lugares tradicionais do isolamento tornaram-se um problema sobrepopulacional sério. Foi aqui que começei a repensar as minhas próprias ideias sobre quem sou. Olhei as cavidades dos meus ohos e pensei neles como um bom lugar para um mundo só meu, em mim mesmo. O mesmo me aconteceu com a planta dos pés, com as palmas das mãos, os sovacos (são os meus lugares favoritos).

Travessia

Uma carrinha atravessa uma aldeia durante a noite e descarrega uns panfletos promocionais. Uma rapariga atravessa-se em frente da carrinha em movimento e pede boleia. O destino é seguir até à auto-estrada mais próxima. O condutor avisa-a que a meio do caminho havia uma ponte para atravessar. Os dois chegam à auto estrada quinze anos mais tarde, quando estão já cansados, sem nunca terem atravessado a ponte.

Prémios

Era o dia em que iam anunciar o prémio mais ambicionado por todos os poetas. Ela já sabia que o ia receber, mas negou convictamente até ao último minuto que continha essa informação. Estava de tal modo habituada a que todos os seus dias fossem uma negação que ela realmente sabia, mas ao mesmo tempo, não sabia que o prémio era dela.

Quero dizer que foi honesta e muito verdadeira quando a chamaram e ela olhou para trás, olhou para os lados e ninguém se levantou; só quando sentiu a cotovelada da amiga do seu lado direito, é que percebeu que todos lhe olhavam estupefactos. Foi receber o prémio à mesa do júri, sorriu e sentou-se. Não pronunciou uma palavra. O prémio constava de dinheiro e de uma lembrança. Levou o prémio pela rua metido na carteira à vista de toda a gente. Quando a tentaram assaltar não ofereceu resistências. Espancaram-na e deixaram-na semi-inconsciente. Quando despertou ficou muito contente.

Cada um por si

Perdi vinte kilos na primeira semana e entre a segunda e a terceira já não era mais a mesma. Uma operação plástica, de forma a retirar a pele em excesso, remodelou a minha forma e o meu rosto. A foto dos documentos de idêntificação estava obsoleta. Fiz novos documentos com o mesmo nome.
Perdi demasiado tempo no mesmo lugar, a ver as mesmas caras na televisão. Perdi demasiadas horas a sentir pena de mim e a adoçar a minha amargura com gomas doces e gelatinosas em forma de ursinhos.
O terramoto que abalhou a casa, que me deixou sem dinheiro para mais ursinhos, sem tecto para o sofá e a televisão. O terramoto foi a benção, a maldição necessária. Ser promovida a estrela multimedia, por ser a única sobrevivente, trouxe-me as vantagens monetárias dos que querem ajudar os desfavorecidos para aliviar a culpa e garantir o lugar no céu.

Uma forma de colectivo

Quando nos formulamos a proposta para a participação, assumimos o que instintivamente sempre soubemos, por mais frágil que seja tal afirmação, que a razão da existência de cada individuo é ser agente activo na evolução da espécie. O individuo não tem valor. Ou por outra, o sei valos como individuo é nocivo, será sempre hierarquizante e com tendência para controlar os demais. Valorizando o colectivo humano, cada vez mais reduzido em número de elementos, podemos conscientemente definir de que forma queremos evoluir. Em outras épocas os gostos teriam existido como forma de aparentemente definir cada individuo, diferenciando-o, por comparação com os outros humanos. A maior parte dos gostos eram superfíciais e na verdade, quanto mais se aprofundava o que era o pensar íntimo de cada um, mais clara era a igualdade entre todos. Os gostos então foram transformados em preferências, que cada um tinha e que resolviam certas fraquezas biológicas, ainda não controladas através da manipulação. Hoje somos, todos nós, saudáveis. Tomamos conta do nosso destino.
Asseguramos a eternidade a cada nova geração.
Encontramos-nos num novo estado de mudança, pela primeira vez, invisível na aparência, mas abrangente a toda a humanidade. Será uma mudança imediata, sem causas precedentes, sem revoluções ou guerras - evolução consciente e colectiva.

A Enciclopédia do Mundo Invisível

No negro da noite dificilmente se dintinguem as silhuetas, e esta é especialmente escura porque é a de lua nova. A partir desta noite intensifica-se a luz que ilumina os viajantes que preferem a solidão, resultante do sono dos demais. Há uma flôr que se abre para se alimentar de animais de porte médio, como galinhas e coelhos. A sua beleza é invisível porque se abre no escuro. Há uma rapariga que lança um grito tempestuoso, mas não premeditado, nesta mesma noite. Como é escuro ninguém vê que com o grito sai da boca dela pedaços de carvão, pretos, que em contacto com o ar se desfazem num pó extremamente fino. Há também toda uma aldeia, perdida num vale profundo, que, no centro de todas as casas se encontra, em transe, e celebra orgiasticamente a tradição da escuridão.
A planta perpetua-se, a rapariga cura-se dos seus males e a aldeia perpetua a comunidade concebendo, ás escuras, novos seres. Estes são os exemplos mais simples de compreender de entre os muitos descritos na enciclopédia do mundo invisível.

Cuco

Um homem solitário tinha um grande relógio de cuco muito particular ao canto da sala. A senhora que ia fazer as limpezas, ao final de cada dia, parava sempre diante do relógio a tentar entender afinal o que este tinha de tão singular. Acontecia o mesmo ao médico e à enfermeira que iam medir a tensão. E à senhora que lhe levava a sopa. E à padeira que lhe deixava o pão. E ao vendedor de enciclopédias. Menos ao carteiro. Este raramente ficava mais que cinco minutos e saia sem que nada o surpreendesse. Quando todos os outros se cruzaram e confirmaram que o carteiro era o único a não se deter diante do relógio, correram para o apanhar – queriam-lhe perguntar se sabia o que aquele relógio tinha. O carteiro disse que sabia e explicou: - como viajo muito a pé pelas redondezas e há muitos anos, sei que um caixão é uma bonita peça de mobiliário; foi uma moda que nos passou de saber aproveitar o tempo com um caixão diante dos olhos.

Náuseas da memória

Aprendeu a viver com a memória bastante debilitada. Saia de casa sem as chaves, esquecia-se de pagar a conta do café, deixava a porta do carro aberto, enfim, uma lista de ocorrências que lhe sucediam com grande regularidade. Aconselhou-se junto de alguns amigos que lhe disseram que era normal – “isso acontece a todos, por igual e sem excepções!”. Mas um dia, considerando que já tinha uma certa idade, decidiu consultar um médico para lhe falar de certos lapsos de memória, no meio de outros queixumes. O médico após examiná-lo confirmou que a sua saúde era perfeita. No entanto, caso se achasse mais esquecido que o normal, que tomasse uma ampola das que iam referidas na receita médica. Das ampolas nunca mais se interessou, mas ao ler um jornal diário ficou a saber que estavam a fazer um teste a um novo método de estimular as células a funcionarem no processamento da memória e logo se voluntariou. Depois do simples procedimento a que se sujeitou, achou-se melhor, tudo lhe aparecia na imaginação com naturalidade, com grande definição, com detalhes, a cores...aliás, como se tudo o que viveu fosse acontecer agora. Não tardou a segurar-se na parede formada de tijolos e a vomitar tudo o que continha no estômago. Tornou-se amargo, desconfiado, feio com uma cara desgostosa com tudo o que existia. Sabia que estava desequilibrado e para compensar soube logo o que podia fazer ou “cortar com esta memória aguçada ou fugir para um sítio onde a relação com os humanos seja doce”. Assim o fez.

Uma aparência genuina

Perseguiu-o pela rua fora e aos gritos: seu cão, seu dando, desvairado, e a lista continua a certa altura repete-se. O perseguido era um homem aparentemente calmo, seguia em frente sem de todo aparentar ficara afectado pelo rasto de insultos e palavrões. Curiosa e cheia de tempo para gastar, segui a cena de longe. O homem entra numa loja de livros e ela não, fica à porta, a olhar muito curiosa para dentro, seguido-o atentamente. Entro na loja, sigo em frente, enquanto os olhos fazem a procura bilateralmente. Encontro-o na secção dos romances. Chora enquanto lê. Sorrio para ele como quem amavelmente quer acalmar uma dama abandonada pelo seu amante. Ele sorri-me de vota e pergunta se já li o livro que segura na mão: Não, ainda não li, respondo. Chama-se As Sombras. Foi escrito pelo meu avô, uma pessoa, como muitas outras aliás, que eu não conheci. Vivo o livro com a minha vida, todo o livro, palavra a palavra. É para me conhecer. O fantasma do meu avô falava ao meu pai e fala-me também. Penso que somente ler o romance não chega para sumprir o seu destino, é preciso realiza-lo. Foi uma ideia da minha Senhora.

Dormência

Uma mulher de dedos compridos e elegantes em ambas as mãos, perdia a circulação sanguínea nas extremidades sempre que entrava em pânico. Estes ataques aconteciam inesperadamente e podiam ser até despertados por pensamentos e não por situações reais. Certo dia, foi convidada para uma festa em casa de uns amigos. Saiu de casa preparada com uma combinação de peças de roupa elegantíssima à qual juntou um par de luvas brancas. Na festa conheceu pessoas muito interessantes com as quais passou grande parte do tempo a conversar. A certa altura a animação de alguns convivas leva-os a formarem uma pista de dança provisória. A mulher foi a primeira a ser convidada a dançar por um homem que desconhecia e que se tinha deslocado até ela do canto oposto da sala. Ela aceitou e agarrada ao homem pelo pescoço dançou maravilhosamente várias musicas seguidas. Não lhe prestou muita atenção, excepto que era alto e que vestia preto, pois estava enterrada com a cara no seu peito. Quando se distanciou para se despedir e o ver melhor apercebeu-se quem ele era. As mãos começaram a gelar. Um formigueiro irritante invadia-lhe progressivamente o corpo e em particular os dedos, que ia de debaixo das unhas até aos pulsos. As mãos caíram como se desistissem. A mulher estupefacta tinha o olhar fixo no homem e sentia que pouco podia fazer senão balançar com os braços de modo a que estes, ao agitarem-se, produzissem algum efeito nos dedos e nas mãos que em breve ficaram totalmente imobilizadas. Consciente do seu estado e da sua figura ridícula, antecipou o momento seguinte: que todos se iriam rir dela. Provocando ainda maior pânico, a mulher não conseguia interromper os seus pensamentos e caiu desmaiada.

Desaparecer

Uma gripe ou uma constipação são enfermidades relativamente simples de curar. No entanto, no início, quando surgem os primeiros sintomas, causam-nos muito transtorno – interrompem a nosso plano da semana, atrasam a nossa lista de afazeres e destroem as nossas prioridades. Este “estrago” é mal visto para qualquer espírito fortalecido, convencido que os seus compromissos para consigo e para a sociedade são de extrema importância e que por isso não se podem adiar. Para muito outros, estas enfermidades tornam-se na perfeita justificação para o seu corpo desaparecer – dando continuação a um processo anterior, silencioso, que ainda ninguém, nem o próprio tinha dado conta. E começou onde? Na demissão do emprego, com a justificação de precisar de mais tempo para si e para os outros; na dispensa da esposa para poder estar mais tempo nos seus pensamentos e poder reflectir na sua existência individual; na venda do carro para corrigir as despesas; na venda da casa para ter lucro; na entrega dos animais domésticos para que sejam tratados com mais cuidado pelos amigos; etc. Volta assim para casa dos pais alguém que quer desaparecer, para o primeiro quarto, de onde pensa que nunca devia ter saído. A constipação, que se deteriorou em gripe, e desta em pneumonia, trata de fazer desaparecer o corpo por completo.

Numa história sem acasos nem acidentes

Das paredes em frente uma da outra. Três pessoas, médicos, olham de frente, outras três pessoas, os grupos encostados a paredes opostas.
- Dois de vocês vão morrer. Não se deve a qualquer registo de doenças fatais em nenhum dos vossos relatórios, esta é simplesmente a melhor solução para todos. Não há preferência por qual de vocês deixar vivo.
Os médicos eram pessoas sérias e o seu poder é legítimo para avaliar as condições de saúde do conjunto de toda a humanidade.
Uma das pessoas que não era da equipa médica perguntou se podia ao menos se despedir da família.
- Não vamos ser sentimentais quando se trata de terminar uma vida. Se for seleccionado para morrer, os outros que deixa não lhe serão de valor algum e por isso não temos nós, nem o senhor nem eu, que ser juizes dos sentimentos de quem cá fica. Além da morte não há nada. O fim é o fim, é dar lugar aos outros que são mais aptos e assim prepetuar a espécie humana, em constante evoluão.
(Serei morto porque fiz uma pergunta?)
-Vamos fazer a escolha de forma justa. Quem tem preferência por morrer. Voluntários? Não?
(Será que ganho o jogo e fico vivo se me mostrar pronto a largar da minha vida?)
- Senhor Doutor, tenho família: mulher e três filhos.
- Saiba o senhor que pelo menos está consciente neste momento da situação vida ou morte. Imagine que um dia encontrava a morte por acidente. Sinta este momento como um previlégio. A sua família e os seus amigos sabem que um dia se perderão, ou irão perder alguém das suas relações, inesperadamente. Todos sabemos disso. A sua mulher seguirá a vida, os seus filhos serão adultos um dia.
Os médicos, como sabemos, são desprovidos de sentimentos, clinicamente falando. Detectam as doenças, curam as que podem. São clinicamente capazer de dar vida e matar.

Observação do tempo na sua passagem

O comércio e todas as instituições tinham um horário regular. Em qualquer lado e o tempo de todos era formatado e, consequentemente, os dias e as acções de cada um. Havia as alturas certas para tratar de um papel ou para comer.
Achou muito estranha esta regulação a princípio mas não havia outra opção, teria que se adaptar. As vidas eram regulamentadas, não só nos horários diários mas também no tempo de vida: as coisas tinha uma altura certa para se aprender e a aprendizagem era segmentada, compartimentada e estruturada. Veio a esta cidade com uma missão. Chegou faz dez dias. Sentada num jardim, considerava certas partes da sua existência que nunca antes tinha questionado. O lugar de onde vinha, onde tinha se desenvolvido até à idade adulta, era muito diferente. Também lá o tempo era regulado, o que se relaciona com o ciclo da vida e o outro que está relacionado com o ciclo dos dias. A regulação era contudo diferente, não havia um consenso a menos que acordado, caso a caso, momentâneo, entre duas ou mais pessoas. Aqui parecia que se corria para apanhar o tempo a tempo que fosse tarde e tomavam-se atitudes até de certa forma ridiculas, como por exemplo correr à chuva para chegar na altura exacta a algum lado. Eram mais serenos os dias na sua terra e as atitudes menos obcecadas com a exactidão. Levou uns dias a perceber certas palavras como atraso, erro e falha, entre outras que descreviam momentos, acções ou comportamentos desviantes da norma establecida. Este era um estudo sociológico de observação. Tirava notas constantemente e apontava os seus sentimentos e reacções. Procurava entender a vantagem primeira desta forma de organização que em tudo parece ser uma forma de estar sempre em conflito consigo e com os outros.