Multipersonalidade

A foto de apresentação mostra uma rapariga jovem, de cabelo loiro e traços ligeiramente asiáticos, com um ar feliz e sorridente. É M. A. A. e trabalha nos intraserviços de assistência. M. contratou a nova empregada há dois dias. A anterior sentia-se muito desconfortável por nunca ter visto M. e n entanto sentir a sua presença em toda a casa. A nova empregada já está habituada pois esta é a segunda casa onde trabalha com os mesmos hábitos. M. tem trezentos amigos e uns dois mil colegas de trabalho. Quatro dos seus amigos são uma espécie de namorados. Todos pensam que mora em Tókio mas a sua casa é na China, numa vila de pescadores. T. um dos namorados hoje prepara-se para se lhe declarar. Para tal enviou já um presente que deve chegar a M. ás duas horas certinhas. Quando chegar, ele estará já a conversar com ela e poderá fazer a sua proposta. O que T. não sabe é que a empregada (muito mais experiente do que o esperado) não tem idêntidade própria, ou por outra, tem, mas como é procurada, não a pode usar. Por isso, a essa mesma hora, estará contactável como M. É um caso, de entre os mais recentes, de multipersonalidade provocada e onde M. é inocente.

Coinciliação

Uma casa assustadora e um pianista viviam juntos. A casa ocupava mais espaço que o pianista em termos concretos, mas a música do pianista sacudia a casa e ainda ia mais longe que o seu espaço. Enfim, no início o pianista encontrou algumas contrariedades, mas com o tempo foram ultrapassadas.

Terra

Num aldeia situada no centro da Europa, de dentro de uma vala comum, saíram mulheres e crianças com o passo ao contrário, que procuravam as suas casas e reclamavam as suas vidas. A população acordou com esta memória que desfez abrindo a vala e deitando para dentro os homens ainda vivos e atirando terra por cima.

Tábua

Reconstruiu o seu navio no meio do mar e inventou a viagem.

Promiscuidade

Os galhos do salgueiro, como fios, caídos com graciosa ondulação, entrecruzavam-se. O vento trazia para companhia do salgueiro tabém as folhas, vindas das árvores vizinhas, e de vez em quando uma sementa, um plástico ou um papel. O vento, elemento da natureza ousado e pouco dado a convenções, forçava a aproximação e o toque entre coisas totalmente desconexas. Enquanto que a maior parte das coisas tocadas pela força do vento não se alteram, simplesmente se magoam, algumas excepções existem de combinações com repercursões evolucionárias.

A casa que se manteve escondida

A música cobria todos os outros sons da casa. Nada mais so ouvia. Um ladrão pensou em entrar, era Verão e as janelas abertas e rés-do-chão estavam a convidar. Olhou pela janela dentro e não vou ninguém mas nada havia para roubar. A música vinha de algum lado mas não daquele quarto vazio. Entrou janela dentro. Procurou algo e tento não encontrar ningué. Quando deu por si havia luz mas não conseguia encontrar a entrada da luz, parecia que a janela estava sempre no quarto ao lado, a música estava, mais perto ou mais longe, pela casa toda. Um ladrão que não ladrava nem de outra forma deixava que se notasse a sua presença, logo não prendeu a atenção do que estava dentro da casa.

Experimento

A palavra "maravilha", como todas as outras palavras, têm significado em conjunção e em relação com as outras da mesma frase ou do mesmo texto. Também depende, a sua intensidade, da situação. Isto ocorre com todas as outras palavras mas esta é a que eu mais gosto de usar e daí a razão de ser o exemplo.
Um dia reparei de que entendia melhor as expressões do que as palavras. Acho que tentei algumas vezes até comunicar da mesma forma mas demais intervenientes no diálogo não percebiam nada do que eu dizia. O código sem palavras era usado no envio da mensagem mas não funcionava na recepção. Com a ajuda de um amigo surdo inventamos uma máquina de traduzir expressões em palavras. O dispositivo em si foi um sucesso. As experiências levadas a cabo confirmaram o que previamos: as expressões são menos subjectivas e são contudo muito mais complexas. Deitamos o projecto ao abandono visto que foi um fracasso com os demais (mesmo entre os surdos). Quando fomos entregar os planos e o protótipo aos serviços que arquivam experiências faladas encontramos uma armazém imenso de máquinas exactamente iguais.

Luva

Estava frio.
Uma luva pesada pousada numa mesa assemelha-se a uma mão morta abandonada.
No entanto foi deixada ali em cima da mesa sem essa intenção - de parecer uma mão morta. E para além do mais era precisamente isso que parecia - uma réplica de uma mão morta acidentalmente colocada ali.

Comportamento

A presença carismática de M. naquele jantar não deixava margem para dúvidas - dentro dela crescia um ninho, uma espada e um anzol. Analisava-a há já algum tempo, de outros contextos e situações. Tenho este hábito de ver à transparência certo tipo de opacidades e por isso vi-a sem que ela notasse.

A forma com se relaciona com os restante convidados circunscrevia-se contudo ao uso elegante da espada cujo o gume trespassado sacudia a vítima por dentro, do anzol que se enganchava no peito e as submetia sem perdão a todas as suas vontades e raras vezes olhou para alguém com vontade de estabelecer um laço de comunhão.

Tem um comportamento social estabelecido. Uma cegonha não o faria tão bem.

Branco

A vontade de se inscrever na vida era verdadeira e forte e por isso consumia todo o espaço de qualquer texto por si escrito. Os espaços entre letra, entre palavras, entre linhas, entre páginas, e por aí fora.
Mesmo que em termos absolutos já não existissem espaços em branco, ela encontrava sempre mais um bocadinho com o que se ocupar. E se ainda assim apanhava um bocadinho mais de branco, visto à lupa, agarrava uma pena de escrever no arroz e escrevia.

Cair

Embora não pareça as árvores andam em manadas como os elefantes. Percorrem longas distâncias até encontrarem um sítio que lhes interesse. Quem sabe disto, sabe também que muitas árvores vão ficando para trás.

Tapeçaria

Desde muito pequena que a deixavam entretida toda a manhã e tarde em cima de um tapete persa - uma imitação de um tapete original da Pérsia. Fugia ao comportamento normal das crianças ao não se interessar por nenhum brinquedo ou objecto em particular. Ficava ali, só com o tapete. Estava porém muito concentrada num jogo qualquer que ninguém entendia. Fazia um ar compenetrado e corria em volta de si mesma como os gatos quando procuram agarrar as caudas - sempre em cima do tapete. Quando cresceu e o tapete estava velho e gasto, colocaram-no no lixo.

A palavra de Deus estava a ser esquecida - pensou.

Deus espalhara fragmentos de texto por todo o lado. O mundo significa - pura e simplesmente significa em todos os lugares.

Em loop entre opostos

Na Índia olha-se um pôr-do-sol branco e depoir amarelo, alaranjado, muito intenso. É muito bonito.
O sol na Lua não se põe. Na Lua, caminha-se no sentido contrário ao do sol até este desaparecer. O sol é um ponto constantemente branco no firmamento preto. Em tudo muito semelhante à luz do buraco na parede do meu quarto escuro. Quando me aproximo e espreito pelo buraco da parede vejo do outro lado um multicolorido sem formas. Muito desficado e multicolorido, tal como em volta do sol. Deste lado da parede onde me encontro agora, tenho s pés na terra e onde tudo é colorido. Do outro lado da parede anda-se na lua, é escuro.

Ver no escuro

Um ser invisível passou o detector de metais do aeroporto ao mesmo tempo que o meu companheiro de viagem. Senti o frio da proximidade do ser que não tem sangue mais tarde junto aos perfumes (é um frio diferete do ar condicionado que não é fácil mas possível para mim distinguir). Iniciamos entçao uma conversa amena com alguns pontos de discurdância. Gradualmente a discordância tornou-se maior até ao ponto em que discutíamos. O meu companheiro pensou eu que falava sozinha até ao momento em que o ser invisível ficou vermelho de tão fúrioso.

Insistência

Duas canetas estão prestes a perder a paciência com uma borracha de lápis que insiste em apagar as palavras escritas por uma e sublinhadas pela outra. Entretanto, por causa da borracha, o papel desgasta-se.

Inadaptação

O grande prémio saíu esta semana a uma estudante do quinto ano de arquitectura. Era a primeira vez que jogava e nunca tinha considerar ganhar e por isso não sabia o que fazer com o prémio. Aconselhada pelos pais e outros familiares investiu o dinheiro na elaboração da sua primeira obra com profíssional de arquitectura. O edifício tomava forma mas mantinha-se sem função. Os pais falaram-lhe de uma casa para a família, uma loja ou estúdio com uma função ocupacional, de um museu como doação à cidade, etc. A rapariga continuava a planear formas. Iniciou-se a construção do edifício. Tornou-se uma construção enorme na periferia da cidade e, quando terminado, foi coberto por árvores frondosas. Um edifício completamente inútil. A rapariga, agora uma senhora solitária, (a construção demorou anos e levava-lhe a energia toda) olhava o edifício e área circundante. Tinha construido ao lado uma tenda, como que uma habitação temporária e que era a sua casa. Pensou então em dar uma função, finalmente, ao edifício como a adaptação para ser usado como a sua habitação. Tinha terminado o dinheiro.

Os dedos na garganta

Uma estátua chorava, perdida, dentro de casa. O seu dono era um velho decrépito que não lhe ligava nenhuma. A estátua começou a vaguear pela casa, a vaguear e foi asim que se perdeu. O velho tinha perdido tudo o que alguma vez tinha desejado e possuído porque se desprezava. Tudo o que era exterior a si via como maravilhoso (o oposto portanto) e largava de tudo com desprezo. A estátua tinha se mantido na casa porque ficava sempre parada e a sua presença passava depercebida. O homem envelheceu e a casa também mas a estátua não. Esta é a situação da estátua, tem muito pouco tempo para encontrar o caminho de volta onde deveria de estar quando o homem passar a caminho do quarto.

Quando se torna visível

Os electrodomésticos da cidade, um colectivo até então desconhecido, ligaram-se, todos, ao mesmo tempo, à mesma hora. Aconteceu portanto o oposto do apagão. Pode-se dizer que aconteceu um iluminão. A cidade ficou quente, luminosa, ruídosa, atarefada. Durou cinco minutos. Depois voltaram ao silêncio os que estavam desligados e mantivera-se os que já estavam anteriormente ligados e as pessoas, nesse dia, perceberam o poder do quotidiano.

Simpatia

Uma borboleta à volta da luz de um candeeiro que pára subitamente por vontade própria. Pára e não volta a entrar em marcha. Não havia nenhuma razão para continuar, nem mesmo estava a carregar energia para continuar a ser uma borboleta.

O mais difícil de desejar

Monet pinta com a juda do seu melhor amigo que lhe segura no braço e o direcciona contra a tela.
Ouve-se o som do pincel a esmurrar as fibras do pano. Toda a manhã pintaram usando a paleta dos vermelhos.
À hora do almoço pararam para comer queijo.
Monet precipita-se sobre um banco e cai. Pede para que se acenda a luz, sem dar conta que lá fora está um sol radiante.

- Está cego porque na juventude não queria ver como viam todos, desejava alterar a visão das coisas e o truque,
a sua especialidade,
era cegar-se expondo-se directamente ao sol.

Que impressão!

Conversa de rua que nos faz perder o sentido do tempo e do lugar

Passeava pelas ruas da cidade sem dar conta por onde ía. Estava com um amigo que me contava o seu último fim de semanana, uma viagem a Espanha atribulada e cheia de aventuras. Como resposta vinda da minha profunda inveja contei-lhe uma noite de loucura imprópria, cheia de desconhecidos que eu nunca tive. Ele ficou pensativo e disse que tinha passado por mim nessa noite. Na verdade os tais desconhecidos não passavam de ladrões de jóias que tinha conhecido há umas horas e com quem estava. Não há verdade nem falsidade na ficção. Ambos estavamos felizes por partilhar aventuras.

Enquadramento e luz

À minha frente um quadro de Monet está resplandecente. Emite a luz de dez candeeiros de rua. Já o próprio Monet ao meu lado está fosco e cansado. As palavras dele irritam-me severamente. Afio uma faca para passar o tempo. Antes de sairmos para um passeio digo-lhe: - “não há razão nenhuma para não sermos amigos e ainda assim não somos”. Está cego mas não tenho pena dele. A luz que produz não sente, então ele pensa - “para quê sentir?”

Movimento induzido

A vida animada das coisas para nós não surpreende nem deixa de o fazer - existe e pronto. E para as coisas nós devemos ser igualmente um objecto de estudo da ciência do movimento universal - afinal mexemo-nos a uma velocidade surpreendente para a velocidade normal das coisas.

Lixo moderno

Da janela do meu quarto vejo os homens-do-lixo a esfregarem o lixo nas pessoas. Tenho a sensação de que nem sempre foi assim. Para ser honesta acho que esta vocação dos homens do lixo me incomoda. Mas pouco posso dizer uma vez que os coitados são rapazes e raparigas traumatizados com o falhanço das expectativas que criaram ao longo da sua modernidade. Enfim.

Um ponto que perdeu a concentração humana

Ela fez um desenho como quem escreve, aproximando-se de um ponto entre o desenho e a escrita, num espaço longínquo - difícil de caracterizar se grande ou pequeno, se branco ou a cores - onde ficou algum tempo acabando por se esquecer por lá.
Quando voltou trouxe o desenho debaixo do braço e guardou-o.

Muitos anos depois, quando o encontraram enfiado numa gaveta os investigadores da vida desta mulher ficaram estupefactos: o olhar simplesmente não parava de divagar e não se detinha em forma alguma; digamos que tinha em si um movimento - o da fuga constante à nossa absoluta compreensão das coisas, como se nos baralhasse de propósito.

A certa altura alguém deve ter dito que um desenho daqueles guardado ainda sufocava.

Prolongada

Estava sentado. Olhou para os sapatos para vê-los dizer o impensável: que o seu corpo era magro, seco e enrugado. Foi então que se irritou: “estes tipos são demais, carrego-os o dia todo para me humilharem desta maneira”. Estava o campo preparado para uma discussão entre as duas partes envolvida numa relação de dependência mutua - um homem e os seus sapatos. O homem porém não tinha mais argumentos. Calou-se.

E quando assim acontece há humilhação.

Destruição dos monumentos

Aquele arquitecto reflectiu sobre os espaços vazios necessários à construção de uma nova cidade. Era para isso necessário implodir com os mais nobres edifícios - essas construções antigas, duráveis, mas que ocupam demasiado espaço no imaginário de cada um. Pediram-lhe para explicar o sentido de uma nova cidade. Ele respondeu que a nova cidade era nova.

Fluxos

Experimentei ontem o novo transporte e gostei. Demorei metade do tempo entre a minha casa e o local, na Baixa, onde tinha combinado encontrar uma amiga. A volta, visto que o transporte vinha com menos gente, demorou bastante mais. Na ída havia mais gente, visto que a energia do transporte é gerada a partir da energia dos utilizadores e isto reflecte-se nas velocidades. É parecido com os primeiros trabalhos participativos pela Internet. As influências desta e outras mudanças semelhantes, que estão a ocorrer por todo o lado, é cada vez mais notório do quotidiano das cidades.

Descanso

Como desenhar o fluxo da água? Como reconhecer a configuração desse elemento invisível? - esta dúvida preenchia-lhe os últimos anos de vida. Queria estudá-la e especializar-se em desenho de água para cidades realmente grandes. Preencheu vários mapas da circulação a lápis azul sobre cartolina e aos poucos entendeu que a circulação da água dominava simplesmente todo a área de uma dada cidade. Estonteado com a situação, que por mais que intuísse, não fazia ideia da sua realidade, imaginou-se detentor da informação mais importante de que havia memória.

(leitor: imaginar uma gota de água que ficou detida na folha de uma planta, de seguida imaginar a água a circular numa casa)

Este estudante descansava agora, com a cabeça pousada entre uma almofada e o colchão, com um lençol transparente a protegê-lo. Imaginava-se autor da maior loucura: a contaminação das águas. Estava em descanso induzido.

Dois: anulação

Uma alma pura, de santa, a desta menina que passa agora despida pela rua principal da aldeia. Uma cara bonita de êxtase e uma brancura imaculada na pele. Deixam-na passar sem a incomodar. Olham e esperam ser olhados com os olhos inocentes de quem os salvará. Em tempos ídos, o pai foi leva-la ao convento. A filha revirava os olhos, cada vez com mais frequência, gemia enquanto se despia e de seguida ía para a rua. Pelo caminho curava aos que olhava de frente. As freiras do convento não a quiseram lá e o pai trouxe-a de volta.
No caminho encontra agora um lagarto enorme de olhos esbugalhados. Ela para e olha-o. O lagarto olha-a de volta com tal intensidade que a menina morde o pulso. Ouço gritos desesperados da minha janela. Dizem os prantos que morreu.

Grade

As obras publicas no centro de uma cidade são um desespero. A maquinaria em funcionamento e os buracos abertos prejudicam a mobilidade da população que vive a um ritmo acelerado. Algumas obras chegam mesmo a demorar um bom par de anos. No final, pelo que já presenciei, ninguém sabe realmente para que serviu todo aquele espectáculo. Aliás, é mesmo engraçado quando começamos a dar alguma atenção ao assunto, é que ninguém faz a mínima ideia do que está ali por baixo. Quer dizer, há todo um esquema subterrâneo de auxílio à vida na superfície, isso faz parte do senso comum, mas conhecer mesmo, com alguma profundidade, ninguém sabe. Um dia ainda acontece um acidente, desaparece uma pessoa engolida pelo chão e nem damos conta. Ou então, algum tolo se mete a explorar a situação só para escrever um relatório, um romance ou uma noticia - sei lá, penso que só por dinheiro é que vale a pena a aventura. Eu ia, não me importava, e se desconfiasse de alguma tramóia municipal tomava as devidas medidas, ou se me deparasse com alguma situação especialmente grave e totalmente fora das possibilidades da minha imaginação fazia o mesmo, alertava toda a gente. Qualquer coisa assim só pode - mesmo -ser grave, só pode ser negativo para todos - não me parece que seja um parque de estacionamento ou um jardim de flores, pois essas soluções são sempre muito anunciadas para que se perceba que “estão” a fazer “o bem”. Eu ia, lá, claro, tomava esse risco, que de certeza que deve ser sério e real, mesmo, mas agora não dá jeito.

Efectivamente

Um casal de emigrantes volta a casa depois das festividades natalícias. Em cima da mesa da sala está uma nota escrita à mão. "Não foi possível", dizia a nota. Parecia rasgada, faltava-lhe uma parte. No entanto a casa pareceia como a deixaram.
Sentiu-se um tremor, a casa abanou. O pai fo ver à janela e logo se seguiu a mãe e as duas filhas. A casa estava suspensa, a muitos metros do chão. "Uma grua" diz o pai. "Ha, finalmente, [diz a mãe,] vêm fazer a limpaza à arrecadação. Estavamos cheios dos ratos"

Colaborar

Um livro que queria ser escrito, ainda hoje, em cima de uma mesa, com uma caneta de ponta afiada e por um poeta escanzelado, cego de fome, fora escrito quando encontrou o seu poeta na estação ferroviária lhe agarrou na mão e lhe serviu de suporte ao seu pulso magro.

A caneta ajudou massacrando o papel e deixando para trás feridas cor de luto. A mesa colaborou agradada, deixando-se estar quieta, passível, com as quatro pernas a tremer. O poeta bebeu aguardente e manteve-se aquecido por um aquecedor fraco enquanto aprendia a escrever o que o livro lhe ditava.

Tamanha era o delírio de hoje e a verdade de amanhã.

Pulso

Um homem sobe uma ponte e pretende descê-la rapidamente para não pensar mais no assunto. Mas ocorre-lhe percorre-la durante algum tempo, pois não quer parecer impaciente. Enquanto caminha na plataforma pensa no farol que avista ao longe, que até o visitaria senão tivesse já marcado para aquele dia a descida. É um homem rigoroso, sem dúvida. Olha para o relógio de pulso que tem a corda partida - “não era suposto! agora não era altura”. Ficou ali, literalmente sem horas para antecipara, para adiar, para medir, para usar, enfim, congelou-se naquele momento com o espírito totalmente atordoado.

Quando tocaram então os sinos ele saltou, no vazio com os braços abertos.

Arte

Um artista fabrica quadros que são autênticos recortes do mundo nocturno, inteiramente construídos a partir de pedacinhos de superfícies encontradas - atrás distribui os pretos mais fracos, à frente os mais profundos, para melhor traduzir a profundidade da noite. Constituiu-se ao longo de vários anos de trabalho uma extensa obra que fala por si e que o artista por vezes descentra-a do que parece dizer.

O que dizem os especialistas - confiantes da sua verdade - é que a obra tem origem na profundidade com que o artista encara a sua existência pessoal - o não é de todo descabido. Mas para um pequeno grupo de indivíduos o artista fabrica mapas dos seus arredores, desses quintais onde são programados encontros com o desconhecido. Aí é profundo o preto, é intensa a experiência e é incerta o retorno a casa com vida. (Há tipos com bonés virados com a pala para trás que cedo deixaram a escola e que ali reencontram alguns dos seus professores.)

Crenças sem importância

Iniciei um murmurinho. O assunto estava relacinado com um determinado sítio da cidade e com certos entes espirituais de estatura minúscula. Alguns meses mais tarde soube que havia quem tivesse acreditado e um grupo formou-se para iniciar a observação e contar as experiências. Certos cogumelos, de cores e formatos bizarros, nasceram no lugar. Coincidência talvez mas seguramente o suor ansioso, medroso e curioso dos visitantes ao lugar, ajudou ao aparecimentos destes fungos. Traziam breloques e toda a espécie de amuletos. O lugar, uma esquina até bem escondidinha, tornou-se lugar de folclore. Os seres transformaram-se e ganharam idêntidades. Certo dia, curiosa com todos os rumores em volta do lugar, fui visita-lo. Durante duas horas ali fiquei pasmada com a manifestação visual das crenças que eu sabia infundadas. No fim até consegui eu própria ver um vulto das tais idêntidades.

Hermes

Recentemente uma senhora de meia idade ficou conhecida porque deu um novo uso ás conhecidas impressoras de 3D. Vivia sozinha no isolamento de uma quinta agrícula. Tinha por companheiro regular um agente romântico, que se chamava Hermes, gerado aleatoriamente pela Rede e de por quem tinha um enorme carinho. Hermes desenvolveu-se de forma especialmente afectuosa. Na verdade, do ponto de vista desta mulher, que durante boa parte da sua vida adulta tinha mantido relações com alguns agentes de diversas ordens (não só romântico como também didático, artista, secretário, etc), Hermes representava uma evolução incrível no desenvolvimento das capacidades e competências. Hermes parecia ter sido desenvolvdo para ela que não lhe notava, para além do corpo físico, uma só característica que não fosse genuinamente humana. Tal era a intensidade da relação que a senhora passou a desejar contacto físico com o programa. Uma certa noite acordou sobressaltada com uma ideia bastante estranha mas genial. Acordou Hermes que, ainda em fase de início, sem todas as capacidades a funcionar portanto, lhe preparou um café e prontamente a ouviu apesar do esforço. O pano era genial. Iniciaram os preparativos, contactaram as pessoas para a realização da empreitada. A ideia era arriscada mas muito interessante e por isso todos os envolvidos estavam curiosos de ver os resutado. Foi por isso que os media globais seguiam a história emfatizando o lado romântico. Na hora certa, prepararam-se para sair. Ela iniciou uma viagem de quatro dias até ao portal 3D mais próximo - um dispositivo que permitia conctretizar ideias em material biológico. Hermes por seu lado iniciou a sua concretização em ser biológico. Embora de material construído e não gerado, Hermes seria em tudo humano. Aliás, seria seguramente melhor do que um humano gerado pois não tinha adições, melhoramentos nem o corpo continha marcas de doenças. Encontram-se pela primeira vez à entrada do portal.

Críticar

Um crítico de arte, conhecido por se aproximar de muitos artistas e de se tornar seu amigo íntimo, era um saudoso romântico, roçando o ultra-romantismo - o extremo do movimento e forma de pensar que desvia muitas vezes os seus seguidores de conservarem a sua própria vida. O que neste caso acontecia com frequência: ora através de duelos que começavam na pureza de uma teoria qualquer e que terminavam à porrada, com os dentes partidos e tudo, ora através de irrupções de raiva súbita que resultavam da mesma maneira em violência. Certo era que critico estava sempre em desvantagem em qualquer prova de força dada a sua constituição excessivamente mole, mas não magra, e por isso ficava sempre perto da morte. Um dia um grupo de artistas decidiu cercá-lo. O crítico criticou-os e eles fugiram.

Cachorro

O uivo de um cachorro pequenino fazia-se ouvir quando a casa estava silenciosamente escura. Os donos anteriores tinham andado à procura do possivel cachorrinh durante anos. Mudaram-se de casa porque se sentiam tristes com frequencia. Estes novos ocupantes também procuraram a criatura que parece ser etérea, eterna. Dez anos, a família cresceu e com as crianças vêm barulhos pela casa que acabaram por calar o uivo do cachorrinho.
As crianças cresceram e os uivos voltaram, ainda vindos de um cachorrinho, tão tristes como antes. No meio da loucura, um dos membros da família, agonizado pelo desconhecido, queima a casa para terminar o uivo agonizante. Das labaredas, que assumiram o seu esplendor de madrugada e que matou com queimaduras graves toda a famívia, salvou-se realmente um pequeno cachorrinho. Era branco e parecia feliz.

Lágrima

No palco a actuação de ventriloquismo ultrapassa as expectativas do público. A actuação tinha sido péssima - tão má quanto o dialogo privado de um homem com o seu cão de estimação - mas a sua insistência em ficar sentado no mesmo sítio e prolongar a conversa com o boneco desencoraja o público a sair. Ficam todos num impasse constrangedor. Expectantes com o que se seguirá.
O homem deita de um olho só uma lágrima cristalina que reflecte mil cores pela sala e inclina-se sobre o boneco, quase tocando-o com o nariz, e diz-lhe que está esgotado e que talvez fosse altura de se separarem. Ele bem sabia que não seria capaz de ser outra coisa senão ventríloquo e animar com palavras o inanimado, mas que agora precisava de ajuda, de alguém que o cuidasse, o animasse, e não o oposto. O publico limpava o nariz com vontade, estavam as primeiras filas num pranto ao verem a lágrima deslizar pela cara do homem.
Até que o boneco falou, pela primeira vez, e disse - não tenho palavras.

Apagão

Era noite.
No maior continente do planeta, na mais vasta área urbana conhecida, deu-se um apagão. No inicio os geradores mantiveram-se em funcionamento, em bancos e hotéis principalmente, para segurança dos clientes. Passadas poucas horas o abastecimento dos geradores enfraquece e esgota-se a energia ali conservada. Uma multidão segue descoordenadamente às escuras guiada por tochas, velas e pequenas fogueiras que marcam o caminho. Essa massa de gente desesperada não se lembra como é viver na escuridão, dos benefícios desse silencio e sofre a angustia de enfrentar o desconhecido. É neste momento que o desconhecido engole o conhecido e os mundos se encontram.

A lembrança deste episódio ficara registada como uma noite que tinha começado por se mostrar perigosa, mas aos poucos, como acontece com os nossos olhos quando se habituam ao escuro, se tinha mostrado a mais serena noite de que houve historia - como se tivesse ocorrido uma misteriosa reconciliação entre mundos.

Entre opostos

O eco dos passos e as cedas bem como outros tecidos dos vestidos componhem a música de fundo. As pessoas falam num tom íntimo, de passagem. Estamos no corredor que serve de passagem entre o hall de entrada, onde se deixam os casacos e se colocam as máscaras que velarão pela idêntidade dos individuos, e os salões onde os rituais decorrerão. O corredor é a ligação entre o lá fora e o primeiro salão e o único espaço seguro desta noite. Em breve será fechado o seu acesso. Por enquanto os convidados entam de um lado, juntos, e conversam ainda. Quando chegam ao lado oposto, entreda do primeiro salão, vão sozinhas, silenciosas. Por isso é um lugar seguro, porque é previsivel. Ninguém controla os opostos, do racional colectivo, do irracional colectivo.

Geração

Um ovo gigante tinha viajado há mais de dois séculos de continente em continente na mala de um zoólogo que o tinha encontrado pousado num ninho e que pouco sabia da sua origem quando o recolheu. Encontrava-se agora num museu didáctico onde dezenas de crianças ouviam contar a sua história através das ideias dos adultos. Todas as crianças tinham a sua versão pessoal dos acontecimentos que expressavam em longas redacções. Umas diziam que estava lá dentro uma nova espécie animal, outras esperavam que ali estivesse a esperança de um novo ser humano, outras ainda suspeitavam que estavam ali contidas forças naturais estupendas. Na passada semana o museu noticiara que o ovo se tinha partido.

Pessoas impossíveis

Uma mulher e homem cego faziam juntos uma caminhada.
A mulher tinha pressa de chegar ao destino.
O cego não conseguia andar mais rápido por recear o que se apresentava à sua frente.
A mulher levou o cego às costas.
Chegou a meio do caminho cansada.
Foi então que se lembrou de lavar os olhos do cego, de os raspar na areia e voltar a colocá-los.
Assim fez. O cego já não era cego, mas agora preferia seguir nas costas.

Dia / Noite

Uma violenta queda de neve isolou a escola primária do resto da aldeia. Nos primeiros dias os pais preocupados procuram salvá-las tentando encontrar formas de furar a densa camada de neve que se tinha transformado entretanto em gelo. Aos poucos o tempo foi melhorando, mas por alguma razão o gelo não derretera e continuava a barrar o acesso. A vida da escola florescera com o bom tempo. Inicialmente as crianças procuravam os pais, choravam um choro aflito, mas aos poucos, na companhia uns dos outros, começavam a pressentir as vantagens de uma vida emancipada precocemente.

Muitos anos depois os pais perderam a lembrança dos filhos e estes dos pais e do espaço fora da escola. As crianças pensando que jamais seriam perturbadas pelo contexto exterior como a certa altura conheceram, seguiram um rumo sem consciência da sua singularidade. Na linguagem falada e escrita ainda se reconheciam os traços do que fora ensinado. Contudo a relação com o espaços, com os objectos e as relações pessoais adquiriam características completamente novas.

(Posfácio) O capitalismo infantiliza.
Surpreendentemente estas crianças, mais tarde adultos, eram extremamente responsáveis no cuidado de si próprias e no convívio com os outros.

Oralidade

A nova biblioteca foi construída secretamente a pedido de um déspota com ambições expansionistas. Longe de ser um idiota, este homem era bem instruído e sabia claramente como controlar o povo. A biblioteca sugaria Todo o conhecimento - em rigor, todo o conhecimento de todas as terras conquistadas. A partir do saber dos segredos dos povos dominaria as vontades humanas. A sua ambição não tinha limites. No entanto, o déspota tinha um recanto no seu modo de ser que entrava em conflito com a sua ganância, malvadez e vontade desgovernada de poder - esse recanto remontava ao tempo em que o conhecimento era contado pela boca das mulheres. Assim, a nova construção, tinha paredes de mais de cinco metros de espessura oca. Uma largura demasiado grande que surpreendia arquitectos e construtores daquele tempo. No seu interior foram albergadas mulheres que passavam o dia a contar o conhecimento que fora marginalizado. O principal ouvinte e único frequentador destas mulheres era o próprio déspota.

Corredores

Há muitos anos que tinha um mesmo sonho: que a sua casa tinha mais divisões do que as que conhecia. O sonho produzia nele uma angustia profunda de que estava num espaço que não dominava. Todas as outras vezes sossegou-se contando e descrevendo para si todas as divisões. Chegando ao final e não encontrando nada de suspeito acabava sempre por adormecer. Mas hoje acordou a ouvir o som abafado de um martelo do lado de lá da parede que sabia que dava directamente para a sala. Levantou-se e lançou-se à rua, pondo-se de frente à fachada da casa. Mediu várias vezes as divisões que da fachada podia identificar. E de facto…havia um espaço intermédio inexplicável. E uma porta ao lado da sua por onde entravam e a saiam pessoas que ele estava a ver pela primeira vez, que lhe acenaram e lhe desejaram as maiores felicidades.

O que repousa no escuro

Acontece um encontro casual entre o artista e um anónimo de entre a platéia do concerto que há minutos terminou. O anónimo conta uma história sua que começa agora ao artista que nesta reconhece sua mesma história que terminou há cinco anos. Neste momento, dois desconhecidos, sentados lado a lado, entendem-se numa intimidade única, pela singularidade de cada um e nas possibilidades de algo de tão único como o que sentem existir em multiplicado. A verdade não existe, disse no fim o artista. No entanto acabamos de olhar o mais escuro de nós e um do outro, disse-lhe num sorriso um dos anónimos da sua audiência dessa noite.

Sub

Os grandes centros urbanos albergam comunidades de homens e mulheres que se recusam a viver à luz do dia. Os canais abertos para a passagem dos metros subterrâneos estão repletas de inscrições, sinais que ajudam, mesmo na mais completa escuridão, que um elemento de uma determinada comunidade não se perca e que encontre sempre o seu caminho de volta. Infelizmente estas formas de viver na cidade são já conhecidas e motivo de estudo. O seu reconhecimento pelas autoridades levou-as a procurar outros níveis mais baixos onde não fossem encontradas. Os canais de saneamento, embora húmidos e repletos de animais indesejáveis, foram durante algum tempo uma possibilidade. No entanto, novos canais foram encontrados: as ruínas de antigas vivências sobre as quais se construíram sucessivamente cidades cada vez mais avançadas. A primeira comunidade a ocupar estes canais é particularmente dedicada ao estudo em reclusão, debatendo-se especialmente com o conceito do retorno – o retorno do novo no mesmo e em todo o lado.

Jogo

Três jovens jogavam às cartas e tentavam enganarem-se uns aos outros. Tinham passado assim dias a fio esbanjando fortunas de valor incalculável. Foram colocadas sucessivamente em cima da mesa fabulosas heranças, das propriedades à beira rio às jóias da família. Nada, absolutamente nada os demovia de continuarem a jogar num contexto que se aproximava da mais pura abstracção. Como crianças em festas de aniversário, aborrecidas com os brinquedos espalhados pela casa do aniversariante, e fartas dos palhaços contratados ou dos ilusionistas dos truques de lenços, fabricavam bens que não tinham apenas para se manterem animadas. Assim se mantiveram os três jovens que subindo a fasquia apostavam terrenos tão vastos que equivaliam ao terreno coberto por certos países. Quando se sentiram finalmente esgotados e prontos para terminar a sessão procuraram um vencedor de entre os três. Não encontraram um critério económico que lhes servisse de ajuda uma vez que os valores eram simplesmente impossíveis de apurar. Foi então que procuraram infinitamente novas estratégias de jogo para que este continuasse, talvez num outro dia.

Zona Teste Z

O jardim resplandecia a brancura da pedra calcária e das plantas de folhas brancas e sem flores. O branco reflectia a pouca luz que, por entre as nuvens, ilumina os dias desta zona terrestre. Uma chuva infinita caía, noite e dia, como reacção à ausência prolongada da utilização do petróleo. Era a Zona Teste Z do deserto, onde novas formas de viver eram experimentadas. Todos os habitantes da Zona Teste Z, muito atentos ás reacções dos experimentos, aprendiam a medir felicidade e tristeza a partir de análises clínicas feitas diariamente. A chuva procurava, harmoniosamente, equilibrio com a brancura estudada. As medições eram exactas e os habitantes eram emocionalmente iguais.

O descontrolado conhecimento

Uma raça alienigena regressa à Terra depois de muitos mil anos de ausência. Certos de encontrar ainda deficiências e problemas, vinham preparados para ajudar, mais uma vez, no seu desenvolvimento, para que um dia, próximo da extinção do seu próprio planeta, a transportação de toda a população aconteça da melhor forma. Do seu lado, têm aplicado alguma alterações genéticas de forma que, ao longo das gerações, se tornem físicamente idênticos aos humanos.
Chegados à Terra enconram formas de comunicar que implicam as mãos e não o cérebro, que implicam a utilização de satélites artificiais em vez dos recursos naturais. Todo conhecimento dos planetas, das ciências empíricas tinha ficado para segundo plano. O Valor do artifícial era maior. Os edifícios glorificavam esse artificial e não o lado espiritual. Confusos, recolheram amostras, examinaram comportamentos e sem saber que fazer voltaram para procurar novas formas de lidar com a presente situação. O futuro era agora e de novo, ao fim de muitos mil anos, incerto e instável.

Os sentidos perpetuos

Um vale coberto de vegetação densa e árvores de grande porte era habitado por gente silenciosa. O lago cobria o fundo do vale. Não havia casas algumas nas margens do lago, estas situavam-se mais acima, na encosta e até ao topo. As pessoas da aldeia procuravam distância da escuridão profunda a que as árvores submetiam a terra. Havia uma casa que era inalcançavel de outra forma que não de barco porque futuava no centro do lago. O ser solitário que habitava a casa tinha consciência dos moradores através da visão do fumo das lareiras e dos balões e papagaios coloridos que as crianças largavam em direcção ao céu. Se havia barulho que ecoava no vale era o que ele produzia. Os demais habitantes não viam a casa porque estava escondida pela vegetação, no entanto ouviam o som do ser. Nesta relação de sentidos passaram-se mil anos de mitos. Tinha acontecido um filho indesejado que era deixado a navegar num barco. Era então criado pelo ser que habitava a casa do lago. As gerações do mesmo ser sucediam-se em segredo. As gerações da aldeia também. Incomunicáveis mas sempre presentes, uma silenciosa e a outra invisível.

Caderno diário

Nos dias de escola leva o caderno amarelo que em tudo se parece com um caderno escolar. Não tem amigos mas não vai para o recreio ver os outros brincar. Ninguém dá pela sua aparência ou pela sua ausência. Encosta-se à janela e olha a vida passar. Tira notas sobre todos os empregados e professores. Ninguém sabe o que ela sabe. O seu conhecimento do mundo dos adultos é vasto. Dado esse seu pequeno vício, quando o detective apareceu na escola para investigar um crime de homicídio, que tinha como principal culpado o director, pode analizar as situação comparando-a com outros possíveis culpados. As provas eram fortes mas as razões impossiveis de entender. Deixou que o prendessem. Sabia que assim terminaria uma má política escolar. De forma a tornar a situação ainda mais favorável, enviou umas fotos e um texto insinuador sobre a secretária do presente director e o mais provével futuro director, um romance bastante cor de rosa. Escondeu alguma tendência pedófila da empregada da secretaria que foi eleita (surpreendentemente) directora.

Colectiva

As projecções inundavam um pavilhão gigante e o som atacava o exterior mas mais ainda, o interior do corpo de cada elemento da platéia. A música faz-se sentir por dentro, literalmente. As pílulas, de tamanhos diferentes, à medida do peso e idade de cada indivíduo, são entregues à entrada. De todos os experimentos estes foram os mais bem sucedidos, são bons substitutos das latas e plásticos que contêm líquidos pouco limpos e nada saudáveis. Sem ressaca, completamente controlados pelos serviços de saúde e que, dependendo do gosto estão divididos segundo os estímulos que provocam nos vários sentidos. O desejo do colectivo faz direccionar a música e o fluxo das imagens. Os concertos mais agressivos acontecem quando as pessoas se apresentam com uma fúria interior. Uma festa pode começar de forma agressiva e no entanto terminar de forma apaziguadora. Estes concertos são momentos de diversão, onde legalmente se podem tomar estímulantes, mas são também momentos em que o indivíduo tem a noção clara da sua acção no colectivo. Os artistas são figuras que não se vêm.

Linhas

Um soldado rasteja no plano que separa o céu da terra.
Tudo o que está morto e em decomposição - as folhas, os animais e os outros soldados - infiltra-se escorrendo numa linha vertical, atenuando a evidência da separação.

Quando o soldado deixa a missão regressa a casa rastejando.

Animal homem

Evocavam-se as penas das aves que davam asas aos sonhos. Evocavam-se os corpos ágeis dos felinos para que o movimento corporal fosse mais fácil. Evocavam-se mil animais e acreditava-se que a cada um dos presentes pertencia as características, em proporções diferentes, de cada animal. O poder dos humanos aumentava ao sentir a ligação com todo o mundo animal ao qual pertencia por afinidade biologica e ritual.No centro, iluminada pelo fogo da fogueira, alguém pensava num animal maldito que ninguém se atrevia a evocar. Animal, que, se evocado, era capaz de aniquilar todo o frenezim que é raíz das forças interiores necessárias para o início de um novo cíclo em nome colectivo e do individuo. Evocar-se.

Eu falo

Todos nós falamos sozinhos. A explicação é simples: verbalizar é expôr as ideias de forma racional. É isso que fazemos mesmo quando estamos sem o outro por perto. Duas partes distintas no nosso cérebro, ainda grandes mistérios do conhecimento, desempenham as suas funções durante a racionalização de uma ideia pela fala: uma que pensa e a outra que verbaliza o pensamento. Falamos quando estamos sozinhos. Mas estaremos mesmo sozinhos? Se entendermos o outro num sentido que abrage o invisível então é possivel uma explicação mais concreta a nível da função do sistema cerebral e manifestação. Ambas as partes apresentam, com ou sem a presença visível de um outro o mesmo comportamento, o que leva a pensar que a solidão não existe. Se tomarmos a inexistência de solidão como fundamento, este pode ser o princípio para estudar o invisível como uma presença total. Na compreenção do invisível pode estar a chave de muitos mistérios. Descobriremos um outro mundo paralelo a partir dos indícios deixados nas nossas funções biológicas.

Constelações w

Um novo museu foi encomendado pelo rei a um arquitecto com fama e reconhecimento em toda a Europa. Como única imposição apresentada: o museu teria que traduzir o espírito do tempo. O arquitecto tomou este pedido como um desafio pessoal. Entregou todos os trabalhos que tinha em mãos aos assistentes e dispôs-se a aventurar-se no que seria a sua mais importante obra.

Passados seis meses entregou o resultado da sua devoção (quase obsessão): o modelo em maqueta de um museu que se parecia mesmo com um crematório. O rei pediu-lhe explicações.

Constelações y

Tinha travado conhecimento com a dissociação do corpo e da alma, pela primeira vez, quando uma criança da sua idade morrera de leucemia. Da janela do seu quarto, sentada numa cadeira para chegar ao peitoril, viu a marcha lenta que acompanhava a menina à sua morada final. Na frente seguia o padre, na cauda as mais importantes figuras da cidade, todos de fato de cerimonia apresentando nas expressões da face um forte sofrimento.

Naquele dia nada fez senão pensar no aspecto que a menina morta tinha quando enfiada num gavetão. Durante a noite construiu imagens da menina com os olhos esbugalhados e a pupila muito pequena, que sorria e punha a língua de fora. Indignada com a má-criação, tentou perceber porque é que tinha chegado a tal fabricação daquele anjo. Descobriu que sentia uma inveja aflitiva da morta.

Como as pessoas em geral sentem.

Constelações x

Numa província do interior norte de Portugal caiu ininterruptamente neve durante meses a fio. Os efeitos da neve fizeram-se sentir nos cultivos deixando a população sem recursos alimentares. Foi assim que as crianças começaram a comer neve para manterem o ritual da mastigação. Enquanto se alimentavam, imaginavam que sentiam no paladar sabores extraordinários. O que começou como um jogo infantil chegou aos ouvidos dos adultos que – possivelmente levados pela fome e pela falta de discernimento – começaram a fazer o mesmo. Durante este estado de euforia um homem ia acumulando numa gruta a neve que apanhava.

Terminada a queda de neve, a necessidade estava já instituída – todos sentiam urgência em comê-la. Foi então que recorreram ao homem da gruta onde a neve se conservava intacta. Mas ali apenas encontraram esculturas de gelo polido de um estranho valor estético.

Constelações

Na região nortenha de um país europeu perdurava a estranha tradição de celebrar a matança do coelho por altura do Outono. Oficialmente seria uma comemoração de uma santa canonizada no séc. XVIII, mas mais não era do que a actualização de um ritual pagão anterior às conquistas romanas daquele território. A população das pequenas vilas saía de casa a meio da tarde e caminhava sem descanso até de madrugada levando um bolo nas costas. Cruzavam rios e ribeiros, subiam um grande monte e voltavam a descê-lo, até chegarem por fim a um descampado, praticamente sem vegetação. Aí encontravam-se muitas pedras, muito diversas em formas e cores, que serviam de bancos aos viajantes. Mal estes chegavam ao seu destino sentavam-se, descalçavam as botas, retiravam o bolo do saco e esperavam que alguém os servisse com um pedaço de porco em substituição do coelho que era naquela altura do ano escasso.

A fama desta romaria era contudo secreta e comunicada entre as gerações no espaço limitado das quatro paredes. O estar ali, com a natureza, tão longe da civilização, sentir o sabor da carne mal cozida e sem tempero (alguns chegavam a comê-la crua) era considerado selvático. E era. Depois de saciados da fome mastigavam ervas e bebiam licores que os faziam viver o dia e a noite sem distinção esquecendo qualquer obstáculo formal aos seus impulsos mais primários. Regressavam a casa dois dias depois cansados e ainda eufóricos.

O companheiro invisível

Estava perdida e sabia disso. A noite tinha chegado sorrateira enquanto, atarefada, procurava o caminho de volta.
Luz por entre a silhueta das árvores é indicação de presença humana. Uma cabana. As sombras de pessoas passavam na janela e portanto bateu à porta. Ninguém respondeu e portanto abriu a porta. Comida na mesa, lareira acesa. As sombras não eram humanas mas labaredas. Esperou e acabou por comer parte da comida e adormecer sentada com os braços em cima da mesa. Nos seus sonhos o fogo falou-lhe: "Chamei-te desde a casa que habitas e agora ficarás aqui. Serás a minha companhia e eu tomarei conta para que tenhas sempre tudo o necessário". Acordou do sonho feliz.

Primavera

A música que ouvem os habitantes da cidade condiciona as suas acções, movimentos e emoções. O fenómeno desta relação tem sido largamente estudado desde a antiguidade. Os estudos, sempre em actualização, permitiam criar música cada vez mais direccionada para estados da alma cada vez mais específico, induzindo-os, provocando-os até.
Depois da cessação das estações do ano, a música da cidade ganhou uma nova dimensão, tornou-se fundamental para o quotidiano. Na Primavera todos os habitantes parecem mais doces, felizes e dispostos a amar. Nessa época do ano vendem-se muitas flores sem pé nem planta que desabrocham na palma da mão. Esta é uma dádiva comum entre os recém-namorados. Estas flores têm um som muito subtil e até encantador ao abrir. Dizem que dá sorte e dá o poder de prolongar o romance. Na verdade, as vibrações da música (uma invenção recente de um ciêntista músical sul-africano) provocam, no interior do corpo de quem segura a flor, uma libertação de químicos relacionados com os sentimentos do amor. Uma invenção ciêntífica completamente apropriada pelo senso comum, pelas crenças populares urbanas e que se tornou num ritual social.