Pós-Babel

Os livros estavam doentes. Um fungo desconhecido tinha assaltado a biblioteca de surpresa. O estado da doença era crónico e fatal. A perda do conhecimento causou pânico no filósofo. Como nada podia fazer sentou-se, numa tristeza depressiva, a observar a queda do que tinham sido os seus esforços de tantos anos e que se traduziam nesta biblioteca inigualável. Permaneceu inconsolável até ao último livro. Quando este caíu podre no chão, quando mais nada existia, houve silêncio. De um salto, como quem perdeu a razão, o sábio levanta-se com um grito que se transforma aos poucos num riso medonho. Escreverá a sua versão de cada livro que tem lembraça de alguma vez ter possuído. Assim uma nova fase começa, a da biblioteca que lhe pertence, só a ele e mais ninguém!

Negar em duplo - um caso

O homem queria a todo o custo ser esquecido. Existia para criar a sua excepção, o que não existe. Preparou, por exemplo, o seu funeral de forma a que ninguém fosse convidade, a que não houvesse cerimónia, que fosse esquecido o lugar onde estariam as cinzas. Teve o azar de conceber um filho. Um dia o filho soube que o seu pai morreu. Em memória de ter tido um pai desconhecido compôs uma música que ficou famosa entre a juventude perdida de uma geração de filhos de um pai só.

O indizível

À distânica parece uma árvore: é composta por detalhes multicoloridos como que de folhas, uma rede similar a ramos que se expande a partir do centro e algo notávelmente mais colorido que em tudo se assemelham a frutos. Assim é vista pelos humanos, como árvore e desinteressados é ignorada. A natureza, desta forma, escondendo pela aparência dos códigos definidos pela história e contexto deste animal que somos, protege os que escolhe para infligir as mudanças mais radicais e profundas.

Ruído

Na hora da despedida o grande ditador organizou uma excursão às montanhas mais altas do seu país.
Estava a morrer enfermo do seu próprio veneno que tinha arrebentado no fígado e que seguia agora o curso da circulação – não duraria mais que uns dias. Era simplesmente um ser confuso, intuitivo por natureza, com boas qualidades e ao mesmo tempo com certezas diabólicas sem qualquer fundamento lógico. Sendo que as últimas imperaram durante a sua governação. Assim juntava perto de si uma comitiva heterogénia: loucos e imbecis, desesperados por seguir alguém com um forte carácter e alguns sábios com lucidez e ansiedade para estudarem o fenómeno desta figura. Chegados às montanhas o bando orientado pela figura do ditador, dirige-se às altas quedas de água que provocam um ruído ensurdecedor. Aí, o ditador discursa tendo como temas principais a ideologia politica da sua governação, os seus sentimentos mais básicos como o medo da morte, as suas mais inconfessáveis paixões por homens e mulheres, descreve depois os seus inimigos um a um, responde a provocações antigas, prevê o futuro e, por fim, ri-se – o que começou gradualmente por ser um sorriso ensaiado desenvolveu-se num ataque de gargalhadas e soluços e terminou com um suspiro.
Ele saberia certamente que nenhuma destas palavras estava a ser realmente ouvida, apenas imaginada na cabeça de cada um. No duelo final com a natureza esta tinha-lhe ganho.

Repuxos

A água faz um desenho rectilíneo quando cai da torneira e uma curva esbatida quando é vertida de um copo para outro, uma curva acentuada quando corre de uma mangueira apontada para cima, intermitente quando cai na chuva, com pressão quando há uma fuga.

Inventário de desenhos despreocupados da água numa cidade inteira.

Uma mulher levou-lhe um jarro a um tanque e retirou-lhe um pedaço. Chegada a casa bebeu-a e a restante comeu-a num cozido.

A água seguiu o seu caminho pelo organismo fora – novos desenhos se esboçaram nesta nova cidade.

A ausência

Comprei tudo aos pares. A dois parecia tudo mais simples, mesmo não havendo mais ninguém. Mesmo que nunca houvesse a outra pessoa. Aos poucos a nova casa ficou arranjada para duas pessoas. A primeira noite senti-me acompanhada. A verdade é que os objectos, comprados a dois, me faziam companhia. Eram toalhas, pratos, talheres, almofadas, etc, e todos realmente me faziam companhia. Acreditei mesmo existir a dois e do escritório ligava por vezes para casa. Nunca ninguém atendeu porque estava concerteza também no escritório. Levei muitas vezes flores, pedi para sair mais cedo para ir com ela ao médico, para encontros românticos. Passamos anos felizes. Mas a vida tem destas coisas e um dia um terramoto partiu tantas das coisas que lhe pertenciam deixando as minhas intactas. Descontinuada a nossa hostória.

Interpretação tola

Um monge plantava as mais belas e fortes árvores para conversar com a obra de Deus.
Num inverno rigoroso foi chamado à parte por outro monge que, munido de um machado e prestes a abastecer-se, lhe perguntou se comia o que plantava, se vestia e se abrigava com alguma daquelas árvores. Ele respondeu que não era esse o seu objectivo - nem estar gordo, nem mais quente, nem mais cómodo. O outro monge foi-se embora com um encolher de ombros. Talvez, entre os monges, o Deus não seja o mesmo, nem as mãos iguais.

Frinchas

Um monge dedicou-se à beleza da terra plantando graciosas árvores de espécies exóticas num terreno cedido pela ordem a que pertencia. A terra fazia vingar as árvores, as árvores faziam crescer os ramos, os ramos suportavam alegremente os frutos e as flores. A população defendia a terra que o monge plantava e orgulhosamente mostrava-a aos estrangeiros, os estrangeiros falavam desta alegre porção de terra com enternecimento e inveja de não pertencerem a uma igual. O monge era assim gratificado, mas não tardou a ser repreendido por se agarrar demasiado à terra e foi destituído da parte que lhe tinha sido cedida.

Assim o monge não teve outro remédio e meteu-se num buraco.

Luz que parte espadas

Um monge recluso numa floresta já tinha visto uma luz tão forte que partia espadas, já tinha falado com os mais ferozes lobos, já tinha escutado os lamento de uma rã, faltavam-lhe ainda algumas surpresas. Correu então para um abrigo numa cova e contemplou a escuridão. Mal os olhos se tinham habituado não havia ali paz – todas as sombras o distraiam. O monge estava exausto e fechou os olhos, começou a observar o seu interior e ficou ainda menos tranquilo – os intestinos falavam-lhe com grunhidos que não entendia, a circulação era ruidosa, uma tortura. Saiu do abrigo bem disposto e aliviado.

ABCD...

Um escritor puxa os cabelos de uma máquina de escrever.
A máquina arrepia-se a cada puxão e murmurava poemas nocturnos muito tristes.

A cauda da Estrela

Um faquir contempla uma bela mulher iluminada que lhe diz:
“ se tu soubesse para que lado está a luz não eras um faquir.”
O faquir sabe que a mulher tem razão e vira-se para o outro lado.
A mulher comenta consigo mesma:
“ o faquir é um tolo, a luz está atrás de mim”.

Luz brilhante

Um faquir sofria horrores quando se aproxima uma mulher que lhe propõe trocar de posição. E disse-lhe para o convencer: - “Nem os teus caminhos são penosos, nem os meus os mais correctos”

O faquir aceitou. Travada a experiência viu a mulher num mercado sentada em picos e propôs-lhe reverter a troca.
Disse-lhe então: - “Nem os teus caminhos são os certos, nem os meus penosos, assim como assim, cada um segue o seu”

Liderança

O velho capitão de um navio experiente no mar e a liderar a sua tripulação saltou para um mastro e subiu ao topo. Gritou bem alto: “que o mais tolo de vos me indique o caminho para dispersar da minha ideia o fim que eu tão bem conheço”.

Brilhos

Um comboio seguia de noite o seu caminho habitual. Os passageiros estavam acostumados à viagem e confiavam no comboio. E este fiava-se que sabia onde ia, pois o seu caminho estava há muito traçado pelo suor de muito homens que por ele tinham sacrificado a sua vida e a das suas famílias. Assim os homens confiavam o seu destino a outros homens por intermédio das suas construções.

Este comboio era eléctrico, bastante moderno e os passageiros estavam tranquilizados pela modernidade do engenho. Quando o sistema eléctrico sofreu uma avaria, deixaram de ver as estações onde apeavam e assim os homens confusos perguntaram-se uns aos outros qual a sua estação para saberem onde sair - mas nenhum sabia. Então perguntaram ao comboio. E este manteve-se em silêncio.

Rocha

Um homem estava sentado numa rocha que se despedaçou e que se fez ao mar.
A rocha entrou pelo mar dentro à deriva aguentando a influência do temperamento da água agitada. Descansou quando viu corais e a eles se juntou. Quando chegou a hora de partir verteram lágrimas que se confundiram em sal. Voltou ao seu caminho anexando não só com um homem como também uma mulher, peixes, moluscos e algas variadas. Ainda se agarrou aos destroços de um navio. Mas fora em vão.

Séculos passados, quando chegou à costa era uma grande rocha onde estavam fundidas as marcas da viagem. Era agora sólida, incorporando muitas vidas, mas jamais dali saiu. Um dia um homem sentou-se na rocha e uma parte dela fez-se ao mar.

Criar memória

Aconteceu de novo, cada um separava-se e prosseguia o seu caminho até à próxima reúnião daqui a dez anos. Tudo o um tem, carrega-o. São as capacidades de utilizar modelos orgânicos. Os orgânicos crescem e aprendem com as pessoas ainda crianças. Abrigos e outros dispositivos para trabalho, lazer e subsitência transformam-se, adaptam-se e acompanham cada individuo durante a sua vida. Desde o Grande Gelo que os abrigos são sempre individuais embora possiveis de partilhar mementâneamente. Cada um tem consigo o necessário, o resto está disponível, sempre que preciso, à disposição de todos. O mesmo se aplica para o conhecimento. Estes que se separam agora pertencem a uma grande família dos que vieram do mesmo lugar de criação. A sua vida é viajar e depois de um cicli de dez anos voltam para não se esquecerem de quem cada um é na sua forma física.

Desistir do que é inevitável

O passado surgia em pormenores deixados pelo desleixo da remodelação urbana. Eram todos velhos naquele lugar. Todos menos o espectro, que era nova, jovial, quase uma criança. Houve quem desse de comer aos pássaros em tempos em que os havia. A população insiste em não largar a vida e a única que por acidente a conseguiu largar tornou-se este espectro. Nestes dias não se dá comida aos pássaros, dá-se conversa ao espectro.

De novo

Despertava já de um sono induzido por processos hipnóticos. Foram vários dias seguidos e eu sentia a distância da realidade. O meu problema foi não dormir e depois não conseguir dormir e a seguir deixar de pensar no assunto. A causa era simples, observava o nascimento, crescimento e maturação do que seria o meu companheiro de trabalho, guardião dos meus documentos, ligação com o mundo virtual e muito mais. O que eu quisesse este seria. Então precisava de o cuidar. Esta era a segunda tentativa. Na primeira, era eu jovem imatura, adormeci. Resultou um companheiro desleixado e lento. Distraía-se com qualquer outro, companheiro também desleixado de qualquer amigo. Este será diferente, os progenitores, três categorias diferentes combinadas, foram companheiros de vidas inteiras de um espírita, de uma viajante e de um escritor. O companheiro está ao meu lado e dorme ainda. Hoje iniciamos a caminhada.

Um mundo induzido

A textura era tão descritiva que sentia um impulso forte em tocar. Ouvia o murmuro texturado dentro de si, a origem da textura era sonora. Virou-se rapidamente e deu uma volta sobre si de forma a apreciar toda a beleza do mundo que criara ainda agora como envolvência daquela textura. O som compunha uma paisagem utilizando os volumes da paisagem real - a apreendida com os outros. O som, motivado pela imaginação, e que ás vezes era quase silêncio, descrevia tudo que somente os olhos viam.

Opostos negros

O gelo cobria a água do lago e através da sua translucidez viam-se as plantas e alguns peixes congelados.
Estes, os que foram feitos para serem congelados, ainda assim vivos, observavam também os seres que estavam para além da superfície, do outro lado da translucidez. Navegavam até ás profundidades mais escuras e voltavam à superfície para ficarem quase cegos de luminosidade. Quando olhei com atenção para as algas que flutuavam abaixo do gelo encontrei dois olhos que retribuiam o meu olhar. Em espanto por ser observadora observada olhei ainda com mais curiosidade em confirmação. Espelho de mim não era. Outro concerteza e talvez um oposto. De tão incrível movi-me e o outro seguiu-me. Movendo o corpo não movi os olhos. Durante dias congelei na miragem de um outro, oposto negro de mim.

Convicção profunda

Um corte profundo marcou a pele com uma linha de sangue. Uma faixa muito recta abriu-se, como uma boca de baton vermelho à espera de receber. Dentro colocou, com a ponta do dedo, um fio de cabelo e com dois dedos da outra mão, como pinças, fechou os dois lados da abertura. Fechou os olhos e em dor pediu o desejo.

Mapa de um processo perdido

Cada desenho significa uma etapa do seu caminho. Deixa os desenhos como rastos da sua passagem como posts nos prefiles dos seus amigos. Não havia aparenteente razão não havia comentários posteriores. As datas marcavam as etapas. O progreeso era lento e o fim tardava deasiado.

Incondicionalmente

De mochila, com mantimentos para um mês duro de Inverno pela frente, caminhava em direcção ao sinistro escurecer da floresta de um país muito frio e pouco habitado. Não trazia qualquer elemento que a indentificasse e sabia que as entidades locais não tinham as técnologias necessárias para a seguirem por satélite. Precisava de desaparecer por uns tempos. A sua idêntidade virtual era demasiadamente bem conhecida pela população do mundo inteiro. Qualquer forma de idêntificação poderia ser reconhecida por um qualquer dispositivo móvel. Regularmente anónimos aproximavam-se para lhe fala da sua vida pessoal ou somente tocar as suas roupas. Muitos insistiam em ser seus amigos sem perceber que a idêntidade que conheciam era um outro lado dela que não aquele que estava ali no mesmo espaço físico. Muitos escreviam-lhe amores incondicionais e prometiam noites muito criativas, obscenas, impossiveis até. Escondia-se agora para ser esquecida.
O som do escritório interrompe perturbadoramente. Uma chamada entra. Ser secretária tem disto. O jogo das celebridades terá que ficar para mais logo quando terminar o expediente. Hoje o objectivo é esconder-se. Um passo no plano para voltar em glória maior e sair da floresta levada por uma multidão de fãns que a querem a todo o custo.

Em aventuras

Na despedida um sapato olha para o pé num vislumbre de saudades de ser útil o seu tempo. Beija-o por todo enquanto se afasta. O outro sapato do mesmo par faz o mesmo. Vêm os pés num afastamento que parece a eternidade.
Ambos tentam ainda e mais uma vez prolongar o evidente. Fica o calor e o cheiro que os atormenta e conforta ao mesmo tempo. Os pés continuam novas aventuras pelo chão, texturas, temperaturas e materiais desconhecidos.

os riscos da natureza

Jamais deixou o vulcão constantemente a ameaçar erupção. Nunca de lá saíu. A cada minuto corria perigo de morte. Mas sabia que a vida já em si era um risco. Sim, literalmente um risco, visto o artista era um ponto. Um dia, a artista que morava no vulcão, pensou demais no propósito de ser um ponto e resolveu fazer riscos em círculos (até então fazia riscos em direcções aleatórias). As primeiras tentativas foram inúteis. Muitos meses depois conseguia fazer circulos em volta da cratera. Muito em breve investigadores e ciêntistas de vulcões encontraram as marcas deixadas mas nunca a artista (porque ser um ponto é ser invisível). Também não procuravam ninguém. De tal forma estavam concentrados no que viam como um fenómeno único que não equacionavam a sua construção a outro senão à própria natureza das coisas. A artista morreu na invisibilidade da sua vida sempre à beira do abismo.

A vida virtual dos animais embalsamados

Uma avestruz, à janela, tira o seu chapéu a quem passa na rua. Estava embalsama há uns anos e disponível para visita das dez da manhã ás sei da tarde. À hora certa abria-se a janela e ela lá lá estava. Sofria de entorces por não poder dobrar o pescoço de vez em quando para o enfiar na terra. No entanto os musculos e penas das asas, de tanto retirar e pôr chapéu, gastavam-se mas em nada melhoravam. O rítmo contínuo, a actividade regular era mecânica. Valia-se contudo de uma habilidade de comunicar com sons inaudiveis com o mundo dos embalsamados. Este é um mundo que existe numa dimensão oculta (entre muitas) e que se desenvolveu entre as multidões de animais que insistem em não largar os seus corpos mesmo depois da transformação que sofrem. Embora aborecidissima da sua vida, o que vemos dela se espreitarmos pela janela, a avestruz estava contente e tinha até um namorado lagarto que morava dois andares acima.

Inflamações

O tampo da mesa era de mármore onde a mãe cortava um pedaço de carne.
Tampo e carne tinham a mesma textura: o conjunto parecia homogéneo: mármore e carne, ambas as superfícies raiadas de branco.
Assim que o rapazito fazia a associação desligava-se daquela realidade e transportava-se para a infinidade de paisagens possíveis de ver riscadas com o branco gravado nas duas superfícies.
Paisagens campestres com árvores bem recortadas e montanhas aguçadas, caminhos desbravados e por vezes um ou outro animal. Outras vezes calhava de ver paisagens marítimas: mares revoltados a espumarem-se de tão zangados que estavam, barcos encalhados e um céu carregadíssimo de nuvens cerradas.
Quando lhes tocava desfalecia caindo de um falésia ou de um gigantesco abismo.

Barragem

Uma parede intransponível abre-se ao meio para fazer verter umas águas que o corpo continha. A água foge-lhe. Com os braços de betão tenta segurá-la. Incapaz de o conseguir, fecha-se de novo. Ninguém podia dizer que não tentou porque ninguém lhe sobreviveu.

Natural dispersão

Uma vez uma estrela do mar foi ao encontro de um rochedo e partiu a simetria - arrependida, deixa-se levar pelas ondas até à areia - pois, sabe que o seu maior desgosto será a nascença de outra estrela a partir da parte que deixou para trás - sem que tivesse tempo sequer de solidificar como estrela que era.

Marcar o tempo

Começou a caminhada nesse dia de Inverno. Pelo caminho encontramos ambos muitos animais, entre gatos e cães, vacas e cavalos, com quem partilhamos a comida e a dormida. Enconramos muita gente, uns mais importantes, outros mais simpáticos e outros menos. Anos depois chegamos. Tinhamos marcado o tempo da caminhada, a direcção mas não o lugar. Marcamos justamente a meio e assim foi.

O esforço dos dias

Na janela pendrava-se um senhor de peito ao léu que chamava por alguém. Um minuto e meio mais tarde apareceu alguém a olhar para a janela mas o senhor já não estava. Do desencontro não há resultados a declarar. Se encontro houvesse haveria concerteza. É nestas incertezas das possibilidades que descançam os Domingos, feriados o outros dias solarengos. O calor é um luxo de meio ano, quem sabe improvisá-lo aprendeu por insistência e essa não é coincidência.

Ser - vivo

Um livro dá nojo a quem acaba de lhe coser a barriga.
Passada a convalescença torna-se num lindo ser vivo.

Situação

Quando os cães ladraram, acendera-se uma luz dentro de casa. Pensando que se tratava de um gatuno o dono disparara uns tiros para o ar.
Não havia motivos para preocupações - na cama a filha mais nova começara a ler um escritor árabe e este tinha aparecido entre fumaças para com ela se encontrar.

Sono

Chegados, ainda que atrasados, ao jantar literário, desculparam-se dizendo: “...e se não fosse aquele rato da biblioteca não sei quando é que despertávamos da estante”. Vejam só há quanto tempo ninguém lhes tocava.
Felizmente iam a tempo porque o jantar que nunca tinha terminado.

Sol

Estava um dia de sol maravilhoso.
Acabava de saltar de uma gaivota – um daqueles barcos pequenos de rio – e socorrer-me de N(ie) para dar o salto corajoso para terra.
Sacudindo as mãos para limpar a sujidade e activar a circulação olhei para P(rou) para saber quantas horas ainda podíamos ficar. Ele disse-me que o dia ainda ia a meio. Aos três ali reunidos faltavam-nos aventuras – N(ie) e P(rou), ambos debruçados na margem do rio reflectiam sobre a transparência das águas: um na vontade da natureza se transformar em diversidade e o outro a senti-la até à ponta dos cabelos, por isto, naturalmente que não estavam muito faladores. Foi então que pensei em chamar M(us) para nos entreter – se bem que ele seja extraordinariamente mal disposto – e senti-me entre as pedras a ler um dos livros, duas ou três linhas bastavam, e lá veio ele. Todo ele estava envolvido em sensualidade e esta dava-lhe para divagar. Se bem que o tivesse imaginado mais feio estava encantada e deixei-me ficar. Quando anoiteceu os outros já tinham partido. M(us) também se abanava com frio. Procurei na mochila de viagem quem mais tinha trazido, mas sem luz, não despertei mais ninguém.

Jasmin

Mulheres-criança de cabelos longos, pele branca e roupas pretas, ainda que magras, decoram o café de juventude. Os demais são senhoras velhas de cabelo branco, unhas vermelhas e senhores de nariz vermelho e fato preto. O café é velho e os empregados estão vestidos de branco. A luz é fraca e amarelada para manter à distância as modas e os gostos estridentes. O pianista chega ás 7 da tarde. Entra pela porta da cozinha e vai directo à mesa do canto onde se senta desde sempre com a avó. É tão velho quanto ela. Tomam chá juntos. De seguida vai se sentar ao piano e confessa-se tímidamente, no seu papel de Chopin de café, ao rapaz de cabelos loiros (pintado) encaracolados, que se senta com os amigos nas mesas do meio e que graceja e se ri ainda mais alto quando o piano toca. Quando este homem, mais novo do que a idade que tem, se ri, o piano quase se cala para o ouvir.
Um dia, igual aos outros. O piano toca. A avó escuta. O rapaz loiro não está - excepcionalmente. O piano sentiu-se alto e de voz forte elevou-se do chão e saíu, junto com o banco e com o pianista, janela fora e para a rua na direcção do céu, como acontece com os balões cheios de hélio.
Mas o nome dele era Jasmin.

Boutique

Uma montra como uma moldura, enquadra formas.
Diante de uma montra pude assistir como se representava a figura humana - coisa que apenas muito lentamente acompanhava nos Museus.
Nesta montra, diante da qual parei, assisti à diferença do “olhar para nós mesmos”.

A menina que apareceu na montra vestiu uma manequim como que veste um morto passados dias. Experimentou de seguida tirar a peruca da cabeça para voltar a colocá-la. Estava colada, mas saiu com facilidade.
Percebeu então que o cabelo estava seco. Embora não se percebesse se era verdadeiro ou artificial, era certo que estava irremediavelmente perdido dada a secura e a rigidez dos fios dos cabelos dando uma má impressão ao conjunto.
Pousou então a peruca para pensar enquanto articulava mais uma vez os membros do manequim.

No final a manequim ainda estava careca. Era preciso remediar esse aspecto. Então agarrou num cachecol e envolveu-o à volta do pescoço e com uma das pontas deu mais uma volta à cabeça. No final destapou uma pequena franja de tecido que cobria a testa.

A manequim tinha um cachecol verde a fazer de cabelo.
E ao mesmo tempo um agasalho para o pescoço. A menina estava satisfeita porque o resultado era moderno.

O que a menina fez a esta manequim repetiu, se seguida, às restantes.

Voltas

Na época festiva é natural as saídas apressadas à rua. Não calha de ser sempre para fazer compras. Muitas vezes é só para observar a magia das luzes que brilham mais forte que a luz do dia e mais ainda que a luz abatida da noite.

Às vezes parece-me que quanto mais gente sai à rua mais a luz brilha. De cima, segundo a vista de um pássaro ou do interior de um avião, tenho a certeza que esta cidade, nesta altura, parece um grande retalho de tecido dourado cheio de reflexos provocados pela gente que passeia de um lado para o outro.

E quem sabe, se não é este movimento, esta fricção de pessoas que levam consigo objectos, que produz, afinal, toda a energia e a luz que ao mesmo tempo a excita nas primeiras saídas desta época festiva?

Tempo

O professor termina a sua aulas e todos sabem que não haverá uma próxima. É a última da sua carreira.
Os alunos sabem disso tão bem como o professor. Não é que, na sua maior parte, gostem dele especialmente. Tem sido concerteza um bom professor mas não excepcional. Os alunos levantam-se, dirigem-se à saida. O professor pede para esperarem um minuto, tem uma última coisa a dizer. Os alunos sentam-se, o professor enche o peito de ar, os alunos esperam as suas palavras, o professor abre a boca. O tempo suspendeu-se.

Os Alus

Os estados alucinatórios há muito que são induzidos pelas cores e sons. As drogas ingeridas, de uma forma ou de outra deixaram de ter interesse há mais de duas décadas. O sistema imersivo provoca uma experiência muito mais enriquecedora. A indução e o seu efeito são a mesma coisa. Os programadores destas experiências, na maior parte mulheres, fazem-no pelo gosto de controlar e pela popularidade entre os Alus associada ao nome. Os Alus são os que se perderam no sonho, vivem-no e não saem de lá, afinal o mundo cá fora pede esforço e constante comunicação com os outros. Estas mulheres têm um poder incrível junto dos Alus. Este fenomeno tem sido vastamente estudado por especialistas em estados psíquicos. Pensa-se que será tão vinculativo do que é a sociedade no futuro como foi no passado o LSD.

Na margem entre antes e o depois

No limite onde tudo é incerteza, encontrou-se um homem e um cão mítico.
Uma história antiga conta que um canino, maior e mais feroz que um urso polar circunda a região alimentando-se de padaços dos que vivem sem interesse. Come de pé, o corpo sustentado nas patas traseiras e vomita enquanto come com qualquer pedaço de mau sentimento.
Neva e o homem tem pressa de chegar a casa. Para prosseguir tem que passar pelo cão. Este por sua vez quer a mulher que cheira chegará a ele, por aquele mesmo caminho, em alguns minutos.
O cão é um mito e sabe disso, e portanto pedir passagem ou deixar passar está fora de questão.

Paciência

A luz estava fraca. Mas foi suficiente para que ele desse conta que alguém tinha entrado no quarto e que se tinha colocado atrás de si. Deu então uns abanões no ar com o tronco para trás e para adiante a ver se intersectava o gatuno, mas nada. Ainda assobiou com força a ver se o ar o gelava e o tipo soltava um ai. Mas também não funcionou. Definitivamente não queria dirigir-lhe a palavra. Não se humilharia assim para falar com um desconhecido que não teve o senso de o saudar. Também não lhe queria mexer muito porque não sabia de onde vinha, de que é que era feito a sua matéria (carne, osso?), nem a sua natureza relativamente à possibilidade de se mostrar vingativo. E depois, não sabia se tinha ido até ali simplesmente de boa fé. Assim sendo melhor era deixá-lo. Então começou a fazer de conta que estava sozinho a ver se outro se cansava. E parece que ficaram os dois juntos durante muitos anos, até que um teve que ganhar ao outro em termos de paciência.

299

Duas raparigas estavam sentadas na mesma mesa com os seus cadernos abertos.
Abriram-nos e folharam-lhes as páginas.
A superfície destas estava preenchida quase por completo com texto escrito a lápis.
As duas raparigas começaram a comparar quem tinha escrito mais e quem o tinha feito melhor. De repente assobiaram-lhes da janela que estava aberta e ao sentirem-se assustadas com o assobio deram conta que tinham estado a dormir.
Cheias de medo pousaram os cadernos e foram para baixo de uma árvore esconderem-se - uma da outra e de si mesmas.

O texto dos cadernos fez o mesmo, só teve vontade de subir uma linha e fugir com elas.
Escreverão nos troncos de madeira fresca?

Quando passamos por aquela rua lembrei-me perfeitamente de ter ali estado.
Continuei a segui-la com o olhar através dos vidros do carro, até que viramos numa curva e perdi-a de vista. Depois seguimos em frente, apanhamos mais adiante outra curva, demos uma volta e voltei a vê-la, a rua dos meus pensamentos. Depois perdia-a de vista. De seguida, sai do carro para procurá-la a pé. E assim foi.

Pensar colectivo

Destemida, a água entrava na sala, pela porta que vinha do corredor. Estava lá reúnida toda a família a almoçar. A água apanhou todos de boca cheia. Num instante inundou tudo e partiu as janelas. Para a rua saiu a água e levou consigo as cadeiras e tudo o mais que encontrou. As pessoas tinham, cada uma por si, encontrado alguma coisa à qual se segurar. Qualquer coisa ou alguém. Os que quase saíram janela fora com a água eram nessa altura agarrados por alguém. Não havia mulheres primeiro nem crianças perdidas. Todos se mantiveram dentro da sala, agora vazia, por si.

Culpa

O desejo mata. Sabendo disso, M. contava-se um momento passado todos os dias de manhã para o transformar. Podemos transformar o passado de facto. Está provado que construimos as nossas memórias e por isso M. aos poucos conseguiu realmente acreditar naquele momento sem desejo. O momento não a matou (aliás, morreu feliz e de idade avançada) de facto.

Aragem

Estava escondido atrás de uma cortina vermelha e acabou por relatar a aparência do sucedido. Ele contou que viu um pássaro solto a voar pela sala, que a cada esvoaçar de asas crescia. Pensou que este se queria libertar. Mas as portas estavam todas abertas. Foi então que o pássaro, já com uma escala assustadora para a sala se tinha entalado numa janela. Tinha finalmente tentado sair, arriscando a vida tarde de mais.

A única dúvida que a todos os que ouvimos ficou foi esta: onde estava a gaiola que o prendia?

As ervas daninhas não nascem sozinhas

A mais bela estampa que para ela, algum dia, tinha merecido a pena ser rasgada de um livro da biblioteca tinha sido a menina a comer um pássaro de Magritte. A boca ensanguentada lembrava-lhe qualquer coisa de muito delicado. Lembrou-se de copiá-la e de a passar para uma pintura sua e dizia a toda a gente que era dela a ideia de toda aquela pose, desenho, associação de cores e luz. E de facto ela acreditava tão profundamente que era já uma jovem pintora de reconhecido nome, com pinturas reproduzidas em todos os livros de arte existentes nas bibliotecas de todo o mundo que quando não acreditaram nela, pela primeira vez, ela ficou muito abatida, como se lhe estivessem a magoá-la com força. Nunca mais acreditou e nenhum pombal, gaiola ou ninho foi suficiente para se esconder.

Exemplar prudência

As férias à beira da praia naquela instância balnear sempre foram inesquecíveis. Ela lia livros como quem quer viver tudo o que lhe é devido e ainda mais do que isso, queria explorar os limites da própria vida não se contentado com uma existência confinada à sua simplicidade. Assim sendo, cada verão vivia um tempo, um espírito, um cenário e todos os personagens de um novela. Era muito feliz e contagiava-nos. Era impossível ficar-lhe indiferente, tal era a crença que ela tinha no que era e agia. Até que um dia houve boatos, coisas que se diziam que ela tinha feito. Deixei de a ver e, claro, o nosso grupo deixou de frequentar aquele sítio. Ela era o nosso elo de ligação, a nossa razão para lá voltar e fingir que também acreditávamo-nos em qualquer conto por ela interpretado. Quando voltei a ver as fotografias, através de slides, numa daquelas pequenas máquinas com uma lâmpada por trás, retirada do fundo de um baú empoeirado, percebi que tínhamos vivido muito mais do que eu suspeitava. Na nossa inocência tínhamos revisitado a mais decadente cultura e percebido a relação desta com todas as proibições sociais. A nossa amiga tinha sido prematuramente eleita para nos dar o exemplo.

União secreta

Um contracto secreto tinha sido deixado desavergonhadamente em cima de uma mesa. Todos os membros da família passaram pelo papel e nem repararam na sua existência. O contracto ali se manteve à espera de atenção. Aos poucos toda a família assinou o papel sem ler o que estava escrito. O rapazinho, membro mais novo também. No final o contracto desapareceu e todos o procuraram.

No escuro encontra-se variedade

Contamplava demoradamente cada detalhe do seu sentimento. Assim, tão intensamente absorta, passava dias. O sentimento oposto atacou-a, de repente, numa certa noite, ainda cedo. Na manhã seguinte, quando o dia nasceu, o mundo era cheio de nuances sentimentais.

Retoque

Os iluminados ardem na própria chama.

Central

Os iluminados aquecem-se na chama das próprias cabeças.

Rosas murchas

Cada cabeça é uma paisagem.
Haverá paisagens menos naturais, menos terríveis, sombrias, obscuras que outras?
Em cada sítio chove, neva e faz sol, tais são as condições das estações do ano.

Por isso nego-me a julgá-los quando as cabeças estiverem prestes a cair.

Vontade

Nas dunas, as flores morrem sempre duas vezes, antes de morrerem de vez. A primeira é quando eu quero, a segunda quando não quero.

Um grupo de pessoas encontraram-se num porto marítimo para auscultar o mar. Se eu lhes apontar com o dedo a direcção para onde querem ir elas atiram-se para se afogarem. Se eu não o fizer elas morrem mesmo.

Energias

Algumas pessoas ainda sabem escrever. Vagamente, lembram-se dos desenhos cujo significado é o seu nome. Algumas pessoas, em maior número, sabem desenhar. Especialistas tentam manter intactas as cores e os desenhos da escrita. Os documentos em formatos digitais também são complicados de manter. Sistemas electricos foram implementados em casas que ainda existem com as estruturas necessárias. Como será no futuro quando iniciarem a implementação dos sistemas de comunicação baseados em energias internas do corpo? Deixaremos de existir como uma mente colectiva, como agora, enquanto utilizamos dispositivos movidos a energias externas e comuns?