Alexandria

O arquivista chamava-se Alexandria. Mudava de nome durante o ritual de passagem entre arquivistas: quando um morria, outro tomava o seu lugar. Assim, através da palavra, guardada por uma pessoa, a biblioteca e o conhecimento foi atravessando gerações e culturas. Tentou-se desde sempre preservar mais do que uma palavra mas tudo é material e todo este se gasta.

Infinito

Uma linha enche de vida quem a inscreve, multiplicando-lhe as células.

O amor é desordem

Todo o roseiral fora exposto a um forte temporal ficando completamente devastado. Sobrevivera uma rosa, que se levantou da sua roseira, alisou a roupagem e limpou-a da poeira, para chamar a atenção de Emily quando esta passasse. Contudo Emily não a viu - nem ao roseiral - porque mais uma vez, de coração partido, as lágrimas tomaram conta dos seus olhos. A rosa sentindo-se injustiçada, deu-se ao vento.

Temporalidade

Uma manhã, ainda cedo, a caminho do trabalho, encontrei eu mesmo a caminho de casa, cansado e com cheiro a um perfume desconhecido. Cumprimentamos-nos. Inacreditávelmente surpreendo-me sem limites. Não conheço ninguém e sou a minha maior surpresa.

Companhia

Se eu desse mais atenção aos charcos, aos pântanos, às gotas de orvalho e a todas as formas da água e a elas me dedicasse fazendo justiça à sua beleza, como poderia sentir a falta de alguém?

Verso roubado

Acordei sem querer a Emily que dormia esticada no pátio entre a casa e o roseiral. Estava assim há muito tempo sem que ninguém desse por ela. Subiam-lhe caracóis pelas saias e a blusa tinha alargado de tal maneira que já não se notavam os belos seios que haviam atraído tantos amantes. Foi por causa da leitura de um verso que eu lhe roubei, uma folha rasgada de um livro seu, publicado sem autorização.
- Ó Emily, que susto, pensava que tinhas perdido o teu orgulho.

Voltas

Um cavalo anda às voltas, preso por uma linha em tensão, agarrada à mão de um homem. Se a linha desaparecesse, caíam com facilidade as expectativas do homem sobre o sucesso do jogo, mas não as do cavalo para o qual seria apenas um jogo.

Uma questão de energia

Entre um tesauros e um romance o segundo é obcessivo, trata do erro clássico, altruísta, hereditário e nunca resolvido. O autor do primeiro nunca será figura pública.

Erro

Um navio oficial de uma corte europeia naufragou perto da costa de uma ilha deserta. A tripulação que se salvara, em dias recolheu os destroços e construiu um navio mais pequeno. Nessa primeira tentativa de evasão o navio voltou a naufragar e a tripulação sobrevivente empenhou-se na construção de um navio ainda mais pequeno. Que naufragou também. E desse não sobraram destroços para recomeçar a construção de um novo navio, provavelmente muito mais pequeno. O capitão ficara contudo imortalizado nas palavras do rei - não pelas conquistas que fizera se tivesse conduzido com sucesso o navio ao seu destino, mas pela vontade de se jogar no erro.

Introdução à história da montanha

Subiram à montanha, para lá morar, muitas mais pessoas do que alguma vez se estava à espera. O estudo sobre a qualidade de vida e as condições cada vez mais degradadas das zonas litorais foram o grande início. A montanha, um espaço que todas as culturas dedicam ao retiro, à intropecção e à espiritualidade perdeu-se. No meio das construções de habitação e comércio encontra-se de vez em quando um mosteiro, uma gruta ou um pedaço de terra sagrados. Conservam-se estes reservados por uma barreira de metal ou pedra, etiquetados, catalogados. Vivem os novos habitantes das montanhas com os antigos, com os passados e antepassados dos antigos. As histórias de como estes novos moradores foram recebidos e mais tarde possuidos pelo espírito da montanha em muitas formas (todas elas invisíveis) são muitas e serão contadas um dia.

Amarelo e roxo

A flor do amor-perfeito, de largos folhos vistosos e de cores amargas, na mão do vagabundo, revela a frescura da errância amorosa no caminho do erro.

Embrulho

Uma alergia mortal desligava uma pessoa de todos os outros animais. Por consequencia não exercitava o entendimento da sua essência, o que faz desta a pessoa é.

Fora

Um estrangeiro estava sentado nas margens de um pequeno parque expondo-se ao tempo Primaveril e servindo de charneira à aragem quente, quando um outro estrangeiro se aproximou e lhe perguntou qual era o seu destino esperando encontrar nele companhia para a viagem. Indeciso sobre a resposta que devia dar, o primeiro estrangeiro fixou-o longamente e de seguida encolheu-se a tremer como um animal assustado. Pois, ainda que ambos fossem estrangeiros ali, eram-no também um ao outro.

O esperado

O meu inimigo abraça-me para se refrescar no meu suor

Desmesura

Não havia limites na procura da sua vocação: o poeta desvia-se do seu curso nocturno por uma viela onde sabia que ia encontrar todo o tipo de insurrectos. De manhã acordou na sua cama com a pele da cor das pérolas e os olhos sombreados com sangue seco. Entrara numa espécie de delírio nervoso. Da boca saiam-lhe as mais maravilhosas palavras do mundo roubadas aos únicos seres humanos com tempo para serem criativos.

Sombra

Uma sombra sobrevivia todos os dias ao apagar das luzes da biblioteca, escondendo-se no espaço vazio de uma mesa de leitura. Quando o último funcionário saía, e se encontrava só, escrevia e pintava poemas obscuros sobre as páginas dos livros. Fazia o que só as crianças eram capaz de fazer: encontrar em tudo uma possibilidade de contacto desconhecendo que a isso se chamaria transgressão.

Clássicos da literatura inclassificável

A biblioteca dos clássicos da literatura inclassificável não dispensa: os jornais de nome que sugerem sexo, escândalo e morte, as poesias dos bandidos e bêbados, fotocopiadas, trocadas por um cigarro, as orações das velhinhas, as choradeiras amorosas das cigarras, os posters dos aleijados, feitos à mão, e encontrados nas paragens de autocarro e os flyers das jovenzinhas místicas.
Os clássicos da literatura aqui apresentados (outros haverá, mas limitamos-nos, para o fim desta pequena apresentação, aos acima descritos) são um meio de comunicação e educação pública fundamental.

O leitor

O leitor, viajante nas marés tempestuosas dos livros, amante da textura doce de cada folha, ao ler uma obra mata o seu autor, retirando-lhe a autoria quando a recria-a.
O autor morre, de uma doce agonia mil vezes, e outras mil morreria. Com este fim se lhe consomem os olhos, os pensamentos e vive com a ansiedade dessa morte no olhar.
Os misericordiosos, os que não matam, por compaixão, ou amor maior ao autor do que ao livro, não merecem o nome que têm, o de leitor.

O que é simples?

A sua escrita era muito simples mas clara. Em palavras descreviam-se emoções para lém do que é possivel. Ao ler o texto as ideias nele contidas revelavam-se ilimitadas, arrebatadoras. O texto alterava o sistema circulatório dos leitores bem como a regulação hormonal. Há coisas que não podem ser eloquentes nem estudadas na forma, para nelas viva mais livremente o espírito do seu autor. A fórmula contida no texto era tão intensa que este foi arquivado na tentativa de ser esquecido.

Revisitados

As viagens no tempo aconteciam com mais frequencia a cada ano que passava. O viajante ausentava-se durante longos períodos e ao olhar para trás, para o lugar de onde tinha partido, observava, documentava para relatar depois. Sabia que outros viriam depois dele. Em poucos anos as condições estariam reunidas para que os viajantes vindouros podessem voltar ao passado, ao lugar que observava e poderiam actuar de facto sobre a realidade. Essas acções seriam fundamentais para o actual equilíbrio do sistema, numa operação de estética histórica.

História de amor

Todos os Domingos um anúncio no jornal exprimia a sua vontade de estar romanticamente com alguém. O anúncio mudava ligeiramente embora o assunto fosse sempre o mesmo: procura-se. Encontrava os candidatos ao Sábado à tarde sentada na confeitaria de uma rua próxima. Se sentia a empatia necessária acompanhava-os a jantar. Testava então as formulas mortíferas que compunha, feitas com extractos de plantas e insectos. procurava um corpo que não fosse afactado pelos químicos, tal como o dela.

Inevitável

Agradeceu a luz gerada pelo calor humano na sala. Aos poucos íam adormecendo. A luz precisava de ser mantida para que no quarto houvesse segurança. Era seguro o quarto, contra o que estava fora, somente enquanto houvesse alguém acordado (devido à temperatura do corpo que desce durante o sono). Agradeceu também poder confiar que outro ficaria responsavelmente (acordado portanto) pela luz quando precisasse de dormir. Concerteza, dominava o seu destino.

Outra coisa

Como exercício segurava gotas entre os dedos, perdia o equilíbrio e os dedos voltavam-se a encontrar - ainda que a gota se mantivesse ali, estendida numa fina camada prestes a se evaporar. Concluiu então que nem tudo é sólido e portanto, estabeleceu como regra que nada é realmente concreto - tudo foi.

Um triângulo

Numa foto, quando duas pessoas são representadas, existe sempre uma terceira. Esta terceira pessoa é o compositor, o que escolhe o enquadramento e o momento a presenvar.
Um número é uma combinação simbólica.
Uma foto é um documento.

Arrastão

Quando cheguei à estação central, em frente à linha de ferro, vi que um comboio se dirigia a mim. Com ele se aproximava uma multidão que queria à pressa meter-se num vagão e atrás dela a mobília que antes tinha sido usada. Os bilhetes rodopiavam no ar juntamente com os jornais do dia, dos cartazes e de panfletos - um alvoroço fora do comum para aquela hora do dia. Por momentos o relógio também nos seguiu. Quando eu já não conseguia encontrar justificação para o que estava a acontecer, perguntei-lhes porque me seguiam. A pergunta virou-se contra mim, da mesma forma, sem explicação. E enquanto tentava responder suportei o comboio com as duas mãos inclinando-me no solo e gastando os sapatos quase até chegar à pele, e ainda aguentando todo aquele peso que em camadas de sobrepunha ao comboio. Esgotada encontrei a resposta - sair do mesmo sítio.

Equilíbrio e simetria

Na secção de calçado, entre dois sapatos pretos deixou ficar um seu, de cor azul. Era no entanto as montras que mais a interessavam. Conseguia deixar um sapato azul em qualquer lado: tanto numa montra como numa prateleira, numa secção de sapatos das lojas de roupa. O formato era o mesmo, azul, um só (e não o par) e feito de cartão moldado ao formato do sapato que tinha a variante homem e senhora.
Esta acção pretendia questionar a evidência posta na dualidade e no equilíbrio provocado pela sua existência.

Inevitável

Sonhei que uma musa se encontrava a um canto do meu quarto, encolhida sobre si própria, apavorada com o conhecimento da sua condição. Tinha os cabelos soltos, claros e ligeiramente ondulados que a cobriam como fios de luz. Parecia esgotada, como se tivesse feito uma longa caminhada e por algum motivo tivesse decidido encostar-se ali. Sabendo que já não me acordava, e que eu a observava com alguma estupefacção, falou-me, assim como pôde, entre soluços e com a voz quase apagada, que tinha feito obras extraordinárias nunca sendo reconhecida por nenhuma delas. Não desacreditei no que me dizia pois, conheço bem as musas, as suas obras e os seus legítimos queixumes, mas não tive escolha - acendi o fogareiro, fechei a porta e sai a correr para muito longe procurando uma pá.

O inexplicável acontece

Suspeita-se que nunca tenha nascido. Conhece-se contudo diversas mutações, em cores, formas e em diversos lugares. O retorno é imprevisto no entanto intuído na aragem de verão, na húmidade das paredes musgosas, nas folhas castanhas, nas flores a nascer. Ansiosamente se espera. Perdem-se os corações em angústias e visões de um minuto resplandecente.

Rotina

Os encontros nas estradas por onde passou sobrepuseram-se deixando marcas profundas no poço do esquecimento. Esquecia-se ao mesmo tempo que se ia esquecendo de si mesmo e quase que pedia: “esqueçam-me, simplesmente”.

Antecipação

Goethe encontrava-se deitado entre a vegetação rasteira da montanha apanhando sol e ajustando a sua respiração ao ritmo da terra quando, ao escutar o vento com atenção, começou a rectificar a imagem que tinha de si próprio - contrastando certos aspectos e esbatendo outros. Pressentiu que se aproximava uma tempestade e que esta coincidiria com o seu processo de descoberta. Animado com a singularidade da situação, estende o seu olhar para longe esforçando-se por prolongar a sensação de prazer adquirido pelo maior conhecimento do seu corpo e do seu eu resgatado do desconhecido. Goethe abraça então o seu destino de querer ser um todo imenso metamorfoseando-se com a vegetação à sua volta, mas também aquela gota de chuva que simplesmente anuncia o início da tempestade.

Castração

Cortou-se a ligação com o passado e com o futuro. O corte é doloroso e raros são os que o fazem e permanecem vivos. O corte é tão delicado e tão refinado que os que o sofrem sentem-se deuses. Tornaram-se ilegais estes momentos, visto impossibilitarem a igualdade entre humanos.

Fio

O jovem Goethe quer deixar para trás a angustia sustentava por um amor proibido ao visitar Newton, esperando desse encontro trazer alguma tranquilidade à sua alma devastada. Nesse momento Newton está em casa e segue um fio de luz branca arrastando-se por todas as superfícies e contornando objectos. Não tarda a descobrir a refracção da luz ali mesmo quando o fio intersecta ao acaso uma gota de água cristalina que se precipita sobre um lavatório. Goethe assiste incrédulo à revelação de todas as cores, como à revelação de si mesmo e dos seus limites - a linha de luz de Newton não está na origem da ciência, mas na consagração da poesia. Escolheu nesse dia o seu mentor e o seu rival.

Em toda a parte

O grande livro de todas as combinações possíveis, escrito por um grupo de dedicados iluminados, subtraídos do mundo por desejo de espiritualidade, fora oferecido a um estimado soberano que ficara assim a saber que não existiriam mais desejos de ordem para além dos que ali estavam escritos. Aterrorizado com o conhecimento que possuía decidiu apagá-lo, ele mesmo, deixando apenas algumas palavras e umas poucas imagens sugestivas. Esperava assim que se voltasse a desejar e a reinventa outras combinações num processo sem fim. O livro nunca voltou a ser um livro completo, mas com este gesto foi dada a possibilidade de se escreverem um número infinito de outros livros que encheram as bibliotecas em toda a parte.

Duas senhoras caminham na mesma direcção de Goethe. O tempo histórico não é o mesmo.

O menino estudava e pelo estudo exercitava a mente e o corpo. Ganhava o poder de encantar qualquer criatura, quer num baile de máscaras como numa conversa entre mancebos. Morava na cidade onde o cheiro é pestilento, resultado da mistura de carne por cozinhar e alimentos cozinhados há muitos dias, com alimentos que foram digeridos e depois expelidos pelos diversos animais.
É nesta cidade que uma manhã excepcional encontra o menino Goethe na rua, caminhando na direcção da casa do seu tutor. No caminho deparou-se com duas figuras que seguiam à sua frente. Eram duas senhoras de cabelo solto, roupas estranhas em formato, mínimas em proporções, em meias como os mancebos. Falavam numa língua que era aparentada com o latim que ele conhecia. Curioso como só ele, abrandou o passo e manteve-se mesmo atrás para escutar a conversa. Estas falavam da natureza, falavam do seu nome e de nomes que conhecia, como Kant, Descartes e outros de quem nunca ouvira falar. Rodopiava a conversa à volta da natureza, das cores, de literatura. Subitamente, através das duas senhoras, viu um homem correr na sua direcção. Embateram ou dois com força e caíram um para seu lado. Tonto, sentado no chão, o pequeno Goethe, sem saber que lhe tinha acontecido, demorou a distinguir realidade da ficção.

A base como incerteza

Partilho do meu espanto: a terra que habito é de lama. Encontrei ontem prova irrefutável aquando da escavação de um buraco maciço onde tencionava depositar o conhecimento, manifesto em livro, de uma vida inteira. A terra que habita a minha casa, as minhas vacas, o meu carro, toda ela é feita de lama. Neste terreno tão incerto, móvel e moldável, como posso assegurar o enterro de tudo o que sei? Como posso ser algo novo?

Ignorância

Numa noite, horas antes do despertar, um sonho levou-me à floresta onde uma mulher me mostrou um saco suspenso no braço.
Reconheci que era uma águia encapuçada.
Quando foi destapada o animal aproximou-se do meu ouvido e contou-me como fora violada a sua força.
Imprudentemente apressei-me a arrastar-me para longe.

Fora de horas

Chamavam-lhe a um poeta de hermético. Mas ele achava-se sempre disponível para com todos se encontrar. Pensou: “estarei enganado no tempo?”

Resgate

Um barco arrasta pelas águas a primeira mulher que o agarrou.
O fundo do rio aguenta-se a esse corpo enroscado nos cabelos para não vazar.
O resgate demorou uma eternidade.

Entendimento

Retirou-se. O jantar continuava e os convivas estavam cada vez mais alegres e descontraídos. De volta a casa, caminhava sem perceber a direcção que tomava. Perdeu-se num caminho que conhecia bem. Perdida andou, na cidade onde sempre morara, até de manhã, quando por fim entrou num café que acabara de abrir. Com caneta e papel emprestados fez listas e listas das coisas que a agradavam sobre a sua cidade procurando desta forma encontrar o caminho perdido.

Os que nos guardam os sonhos

Esperaram o novo dia, que chega, cada dia mais cedo que o anterior. Desta vez a noite permaneceu por duas horas e durante este tempo o grupo adormeceu. As ausências de luz, nestas épocas do ano, nestes lugares, é causa de muitos acontecimentos inexplicáveis e este é mais um deles. Será a condição única que o sono, de duração curta, seja compensado em profundidade. Talvez que estes estados mais profundos desvelem nos seres lados perdidos ou desconhecidos. O grupo acordou com o sol da manhã e notaram, primeiro nos outros e depois, por reacção em si também, mudanças físicas. Eram, cada um, uma nova forma: ele uma cabeça de águia, outro uma cabeça de lobo em corpo humano, ela uma vaca enorme. Outros mais foram encontrados à medida que acordavam.

Conhecer

No início escrevia eloquenemente sobre a natureza, as plantas e os animais que a habitavam, e sobre o seu estado mais virgem e inalterado. Descreveu todas as variantes e em breve iniciou a criação de novas possibilidades para outras naturezas que não existiam. Com o tempo passou a desenhar essas possibilidades. Numa fase final da sua vida, incapaz de qualquer construção com as mãos, pensava essas naturezas em que habitava e nesta actividade passava a maior parte do tempo. Um dia a sua imaginação foi longe demais. Nesse dia a esposa chamou-o para o almoço sem receber resposta. Todo ele estava agora e finalmente na natureza que era a sua.

Fito

Protegia as folhinhas verdes da geada, salvava os malmequeres das coroas das crianças na primavera e recolhia os grandes frutos rosados nas altas temperaturas para que não caíssem maduros em vão. Era um observador atento da natureza em mutação, esforçando-se por acompanhá-la nos seus momentos mais preciosos. Admitia perante amigos e colegas a satisfação pelo seu modo de vida - trocá-lo-ia por nada! Pois, já era aproximadamente igual em cor, em matéria e em forma à sua natural paixão.

Objectos calados

Todos os objectos perdidos têm um único destino: libertarem-se dos seus fins.

Hesitação

Uma lâmpada que se apaga entre dois dedos traz sombra ao diálogo.

Humanizar

As aulas terminaram mas as duas alunas continuaram a comparecer na mesma sala à hora prevista para início da aula de anatomia botânica. Dissecar e catalogar, conhecer o lado morto e mecânico de cada planta, a sua composição e as regras e a química. Medir, escrever e desenhar, destas plantas, o que as define. Este ano o Verão era verde e colorido. As alunas esperavam pela insistencia desfazer a solidez da porta para assim se dedicarem ao prazer da análise.

Cartas de Amor

Escrevia ao editor muitas vezes cartas a pedir que lhe editasse e publicasse os seus textos.
O editor não tinha a certeza de gostar da qualidade dos textos entregues em manuscritos mal cuidados, rasurados e sebentos, mas estava certo da qualidade das cartas. As mais belas cartas que já lera eram estas: as que reflectiam o tormento de quem quer proteger o seu trabalho a todo o custo.

Sonho do pulmão direito

Num sanatório vejo um intruso que salta entre varandas. É de baixa estatura, magro, semelhante a uma criança desengonçada mas com o rosto marcado dos adultos. Procura qualquer coisa. Roupas, objectos pessoais, mas principalmente relógios e termómetros. Parece-me contudo familiar, já o vi nos passeios, durante a madrugada, nas camas das consultas regulares,nos jogos, etc. Mas quando ele chega e abre a janela para subi-la já nada do que leva é de grande utilidade ao proprietário.

Reclusa

As faces estavam bem vermelhas e as mãos inchadas seguravam a própria papa de sujidade. Os olhos pousavam sobre as labaredas. O fogo não saia diante dela: estava imobilizado pela sua presença receando não arranjar outro motivo para existir.

A imaginação como um jogo

A decisão de mudar a disposição das paredes foi tomada pela sociedade secreta. Esta sociedade é constituída pelos habitantes mais ilustres da casa, pelos que não se submetes à lei da física. Considerados todos os pontos negativos de tal acção, chegou-se à conclusão que a mudança só por si seria o único ponto positivo, e contudo este era forte o suficiente para se proceder de imediato com o plano. Todos os pontos negativos existiriam de qualquer forma, com ou sem mudanças, uma vez que foram pensados. O pensamento da imaterialidade é, nesta casa, já realidade.

Ouro

O sentido da existência era a questão motriz para que ele descobrisse o ouro no seu riacho.
O ouro era raro, mas quando pensava que morreria numa risada ou caindo de um banco a compor uma lâmpada, este multiplicava-se infinitas vezes. “- quereis ver que sou afinal tragicamente rico?” .
“Mais rico é o homem cujo o ouro que tem, em si descobre” - falou-lhe um sonho com nervosismo humano.

Sem necessidade a novidade não tem interesse

Uma rapariga encontra-se desempregada, sem namorado, nem amigos, nem família. A vida da fábrica e o pão, sopa e novela à noite, antes de deitar, que aiás a satisfaziam o suficiente, terminara.
Um desses primeiros dias da sua nova vida acorda tarde. Pela janela do quarto ainda escuro vê que a vizinha se levanta e se veste. A rapariga acompanha os movimentos da sua vizinha da frente no quarto e depois na cozinha. É mais uma mulher sozinha. O seu levantar e vestir condicionou-se desde então com o vestir e o pequeno almoço da outra e os dias passaram a ter um sentido de novo rotineiro, na rotina da outra. A outra, igual a si no passado. A outra espelho de si na rotina, na pertença a outros. Incansáveis as duas na procura de hábitos longe dos maus pensamentos de quem quer o que não tem.

A ilusão

Essa luz que conduz as cores aos objectos brilhava lentamente por ali dentro. Eu não escolheria nenhuma das cores possíveis, nem mesmo pensaria em fazê-lo. Nem a pretexto de estudar a variedade das luzes pouco usadas.

Dois amigos

O diálogo que principiamos continua, na sua intensa ambiguidade, para além da nossa presença. E é na nossa ausência que se mantém mais interessante. Quando o retomamos decepcionamo-nos pela nossa incapacidade de lhe dar continuidade. Talvez porque não acreditamos nesse diálogo para além dos meios e dos fins. Se, por momentos, acreditarmos nessa capacidade dialogante, talvez nos tomem por tolos, mas sabemo-nos acompanhados.

Neve litoral

Quando essa vontade maior faz com a neve caía lá de cima, ela cai determinada a subjugar o chão à sua brancura. No entanto interpretamo-la nos seus ciclos com toda a nossa ciência, como se a simplicidade fosse de menor importância para a utilidade dos nossos dias e por isso menosprezável.

Culturas em mudança

Ofereceram-se subsídios estatais a pessoas do Norte da Europa par vir povoar o Sul. Desta for pretende-se ensinar os povos do Sul a arte de viver o frio.

Zebra ou águia?

O poder de um animal é invocado num ritual de passagem. A virilidade é celebrada em volta deste jovem e, desta forma, de novo se celebra as capacidades da natureza para a diversidade infinita.
O golpe na pele é a marca da promessa e símbolo da educação.

Juventude

Debaixo dos cobertores acendia e fumava cigarros à toa criando uma atmosfera assustadora. Enquanto isso aproximava-se do mar ou escrevia uma carta. Não se chegou a queimar, mas tossia bastante, passando um som grave para os quartos alugados. Chegou à água que o levou para muito longe deixando-o sem tempo para escrever a carta. Puxou dos lençóis e abriu-se ao ar. Voltou à margem, estavam à sua espera. Reconheceu então o conteúdo da carta que o levara a fechar-se no quarto e a configuração de todo o fumo expelido.

Voracidade

Todos os clássico foram reunidos para serem manuseados com uma sensualidade tão fervente que parecia que queimava as mãos e os olhos. Ali, numa mesa de leitura, passaram-se séculos e segundos, continentes e províncias, tempestades e chuvas miúdas; indumentárias foram vestidas dignas de reis como foram também postos sobre o corpo uns trapos miseráveis; o dinheiro chegou a jorrar de uma fonte assim como se comeram ratazanas para afastar a fome.

Os leitores abeiraram-se da mesa para devoraram os livros como a si mesmos –liam-se e assim se desejavam.

Conversas

Habitamos os campos as florestas e as margens do rio e partilhamos a nossa vida com plantas anónimas a quem nunca perguntamos o nome ou o que fazem de útil na vida. Consciente desta lacuna no desenvolvimento de mim como ser vivo iniciei o diálogo com muitas destas plantas. Durante meses aprendi imenso sobre as mais diversas características de cada planta e elas mostraram-se generosas e ofereciam partes de si, mimos em forma de folha, de pétala, etc. Pretendo tentar o mesmo também com as pedras e cristais para saber das suas vidas.

Metades

Chovia muita gente por aqui e por ali em gotas grossas. Duas acabaram por se juntar.
Era da natureza da mulher ser um riacho e a do homem ser um granizo. Enquanto caiam juntas abraçaram-se muito e quando encontraram o chão metade foi absorvida pela terra, metade resistiu solidamente. Quando chegou o verão escorriam as duas livres entre as mãos e entre as pedras, quando regressou o frio tornaram-se geada a queimar os campos. A natureza intrínseca de cada uma era só uma natureza organizada, abstractização de quem a pensa.

Original

Levantou-se das pedras onde estava sentada e levantou os braços ao céu. Depois subiu as escadas e ofereceu-se ao sacerdote. Decapita-me e jorra o sangue pelas escadas e que todos os inicados o bebam e o que sobra que les salpique a cara e as mãos e as roupas. O sacerdote chamou todos os jovens, já iniciados e ainda não casados e assim aconteceu.
A vítima não era já a sacrificada. O sacerdote não tinha o poder de decisão. A mulher, lavada pelas águas límpidas do rio, que continuam a jorrar depois do sacrifício, é livre. Os jovens, que um dia serão pais, maridos, caçadores não pensam mas cumprem. Um deles será o chefe um dia. A mulher fica no seu sangue.

Gatos

Os gatos passeiam e enroscam-se ali entre flores frescas cortadas hoje, flores de cores extravagantes artificiais e flores de pedra. Conservam todas a falsa memória de terem sido previamente flores verdadeiras e os gatos parecem ter feitio para estarem ali a acordá-las e a lembrar-lhes que têm que agir como flores quando passa mais um carro apenas com três pessoas a lamentarem terem perdido uma sombra.

Suspenção

De todos os cantos surgiam pontinhos pretos que cresciam ao aproximar-se do centro onde se encontrava o livro. O quarto não tinha mais livros só roupas, panos e panos e panos. Os pontos, tomavam conta das cores dos panos e ganhavam volumes disformes. Os primeiros pontos a chegar ao livro pararam. depois num movimento contagioso todos os pontinhos pararam também.
O livro manteve-se imóvel e os pontos também numa tensão infinita.

Escrever

Devia escrever de manhã cedo ou à noite muito tarde. Porque estas são as horas em que o sangue não sabe para onde fluir. Não tem pressa nem destino. Mantém-se na corrente para o funcionamento mínimo do que deve ser mantido desperto. Assim tudo em nós tem vagar e paciência; se nós nos permitirmos amolecer, reduzir ao essencial, então estamos prontos para seguir um novo caminho que é sempre traçado pela escrita ou pela escrita desenho ou desenho escrito, como uma dádiva do pensamento que por vezes prefere não ser totalmente proprietário de si mesmo.

Oportunidade

Deixaram para trás a cidade a arder e partiram de madrugada. Quando pararam para descansar viram ao longe a altura das chamas e sentiram-se envergonhados – “há já quanto não vivíamos? Quem nos segurou ali?”

“Quem foi este caridoso inimigo que nos arrancou do passado e nos proporcionou em vida uma outra oportunidade?”

Novo

Já não se pintavam paisagens quando um artista decidiu fazê-lo.
Estava desfasado do seu tempo, como estava do tempo em que se pintavam paisagens. A vaidade do artista era afinal menor que a da natureza que se queria ver representada. Assim acudia o pintor a esta vontade maior.

Talvez seja como se diz, que quem faz uma obra com valor fá-lo sem saber, pois é empurrado pela urgência do passado regressar (outra vez).

Re-volta

Preparado para travar uma batalha avança com passos incertos num descampado.
A espada erguida avançava contra o inimigo quando caiu uma densa cortina de nevoeiro. A espada empalideceu e hesitou porque vira reflectido no nevoeiro o seu portador e o seu exercito. Foi então que se voltou e travou aquela batalha sozinha.

Baile

Um mocho passou por uma princesa e disse:
“Que fazes neste baile de máscaras?”

"Procuro um abutre."

Necessário

Os pés, com os pés, por baixo dos pés, morrem ruidosamente desenhos feitos de combinações infinitamente únicas de partículas de gelo. O silêncio apaga qualquer coisa e qualquer cor e nada ficou que não formas e volumes.
Saíu para uma caminhada e levou uma corda vermelha para que encontrasse o caminho de volta. Por baixo da brancura uma qualquer criatura branca lhe apanhou o corpo. Este ofereceu ao branco uma nova cor que se espalhou no sentido contrário da cor dos gelados de gelo quando se lhes chupa todo o sabor. Aqui o sabor foi dado ao gelo que o sugou ávido de sabor e saudoso de cor. A corda vermelha caíu com o movimento do corpo e perdeu-se no vermelho do sangue. Tudo se mistura (opostos e o mesmo consigo). Tudo o que é oposto é o mesmo e afinal nada desaparece por baixo da aprência que é característica da imediata temporalidade.

Em história, os ciclos

A alameda feitas de gravilha e árvores cobria-se de verde e branco rosado. A primavera floria finalmente. A duas atravessavam diariamente a alameda, da casa ao portão de saída da propriedade, sem trocar uma palavra. Falava uma ou as duas sómente quando apropriado e necessário. A arte é a abstracção do quotidiano pela linguagem e só alguns estão interessados nesta actividade. Das poucas vezes que se falava o momento abria o pensamento de ambas a combinações e variantes. As palavras, momento abstracto, devolvia a arte ao quotidiano em futuras acções.

A impossibilidade de andar nas nuvens

Pela janela de um avião um homem, em visões e divagações entre nuvens, vê o seu futuro. Uma janela era, naquele momento, uma abertura para uma outra dimensão onde o branco, o sol e o azul formavam uma paisagem de fundo para os desenhos da imaginação. Sorriu. Dirigindo-se de seguida à senhora desconhecida sentada ao seu lado, contou-lhe todos os seus planos futuros. A senhora sorriu e achou-o idiota.

Absracto

A artista trabalha noite e dia nas suas obras. Ao fim do dia, cansada, senta-se à mesa a jantar e não se lembra como foi o seu dia. No entanto sabe que esteve sempre ocupada. A artista é uma pessoa feliz quando vive o momento mas extremamente infeliz e insatisfeita quando pensa no momento passado. Uma tarde, num encontro casual, pediram à artista para descrever a sua obra. Ela não sabia o que dizer porque não havia nada que se lembrasse de alguma vez ter feito. A artista é a sua obra ou sera que nem obra nem artista existem porque não há discurso?

Escolhas

Fazia o caminho para o seu emprego de táxi. Sempre o fizera desde que ocupara este novo cargo na empresa. Pois, era-lhe exigido um outro estilo de vida ao qual parecia habituar-se facilmente. A verdade é que ele estava cansado de falar com os motoristas, que tinham sempre os mesmos assuntos para lhe falar e que assumiam as mesmas posturas populistas nas discussões - embora fisicamente fossem todos bastante diferentes. Também não sentia nenhuma excitação em ser-se guiado pelos mesmos caminhos desde o primeiro dia que apanhou um táxi naquela praça, aliás irritava-lhe estas duas coisas muito em particular: estar limitado por outra pessoa e que lhe falassem quanto ele achava que não havia razões para isso. Claro que pensava muitas vezes em ir simplesmente a pé – e assim o fazia, mas com receio de abusar da flexibilidade do horário que lhe tinha sido concedido, acabava por mais adiante apanhar outro táxi para terminar o percurso.
Cedo concluiu que não tinha outra hipótese senão deixar o emprego.

Medo

Costumava sair à noite para vaguear um pouco. Chegava a caminhar uma noite inteira até depois das primeiras luzes da manhã. Caminhava sem programa definido e esperava não ser interrompido por ninguém ou acabaria mesmo por se desconcentrar.
Esta rotina tinha uma finalidade: servia-lhe para entender os seus medos. Tinha medo infinito de tudo o que lhe era estranho ou seja, tudo o que não era ele próprio, e à noite piorava com a escuridão.
Assim ia explicando a si próprio o significado dos seus medos, um a um, recitando uma lista que escrevera.
Quando chegava a casa estava exausto mas aliviado. Era então que lhe ocorria o que um amigo lhe dissera em tempos: “ os medos são-nos úteis na medida em que nos impedem de seguirmos pelo abismo fora”. Mas ele, naquele momento, também não tinha medo do amigo.

Trilho

Caminhava há já umas horas no mesmo trilho aberto na neve.
Estava ali para ouvir com atenção o som dos cristais de gelo ao serem esmagados pelas botas que trazia. Sabia que os cristais emitem sons diferentes devido à configuração geométrica que assumem consoante a temperatura que está, às vezes são formas simples, outras vezes complexas. Os sons são agudos nas baixas temperaturas e graves nas moderadas. “Que fenómeno!” pensou ele. “Poderia compor, isto é se me apetecesse!”

Do gelo emerge

Repousa debaixo do gelo, no seu retiro anual de inverno, a grande criatura. A única da sua espécie que se conhece e que não nasceu com a capacidade de procriar. Na primavera emergirá das águas ainda gélidas do lago para procurar parceiro. Procura vâ. Já passou a idade, já não tem o ar fresco da inocência juvenil de quem procura sem saber bem o quê. Uma fêmea que não tem macho e que não tem crias despertará de novo. As suas energias são diferentes e o seu propósito é peculiar, teve de o procurar (não lhe foi ensinado). As excepções na natureza servem para demonstrar a falibilidade das regras.