Essência

Foi ao cortar o dedo que percebi que afinal era só mais um. No dia seguinte cortei outro. Afinal o que é essêncial para estar vivo? Temos potêncial para demasiado e pouco tempo para usar uma boa parte.

Composição com a disposição natural

A tempestade produz os mais inúteis gastos que a natureza é capaz. Cansada, apaziguada, resulta a bonanza. Tudo na furia da tempestado se reduz a desperdício, morte e desordem. As cupulas erguidas para proteger casas, aglomerados e pequenas vilas fica quanse subterrado durante a época das tempestades. Nessa altura, de forma a manter a claridade solar, a luz existente é gerada por uma combinação química, simples mas muito potente, e vaporizada uniformemente na cúpula. Os habitantes, dado o isolamento físico e os efeitos dos químicos, dedicam-se ao cultivo dos seus interiores. Desenvolveram-se formas, com o decorrer do tempo, de abrir os corpos e se exibir de forma composta os seus orgãos, numa mistura entre interior e exterior. Este cultivo dos interiores e da sua exibição tem um intervalo curto com a limpeza das cúpulas pelos ventos da bonanza. O verão é uma estação em que todos se sentem introspectivos e estanques.

Um vírus

Os dentes do vampiro no pescoço da sua vítima ainda virgem, unem fragilmente dois corpos pelo sangue. Este circulará em dois em vez de um só corpo. O sangue líquido, os dentes duros, sólidos. "E que sentimento é este?" - pergunta a si própria a virgem depois da mordidela.

Ver é tudo

Os fios vermelho estridente saiam da boca em todas as direcções, velozes, rectos, tensos, suspensos. A dor não largava o corpo noite e dia. As mãos e os pés eram a fonte de aglomerados viscosos amarelos e verdes. O rosto, espelho do despego, parecia que sorria.

Ameaça

Antes de termos um nome não tínhamos forma - íamos sendo, perfis de força e energia.

Sylvia

A unidade: uma escada apontada para o sol.

Acordada

Emily procurava provar a sua existência no fulminante e desmesurado amor que sentia, observando que as cores da humilhação eram mais brilhantes que as da dedicação.
- Terna a noite perto do roseiral entre sapos e grilos; avassaladora a madrugada enquanto todos dormem.

Tudo

A impaciência de Emily era querer ser tudo o que não era. Tinha como qualquer outro poeta que se ampliar e se debilitar para caber em espaço novos e ocupar novas possibilidades de ser. Nenhuma opção, ou sucessão de opções, podia ser entendida como dispersão, mas como gesto necessário e unificador da sua existência com as existências do mundo.
- “Ó Emily que pacto corajoso“.
- "Quebraria agora mesmo se esta rosa não me tivesse falado"

Cumplicidade

A cumplicidade de dois incendiários é que perderam a noção da perda.

Viver na sua cabeça

Certo artista pediu aos dedos que alcançassem o impossível para que o seu talento se ultrapassasse a si mesmo. Aos poucos os músculos cederam e romperam-se, deixando os dedos incapacitados de se moverem. Os ossos tornaram-se quebradiços e porosos e não tardaram a ficar em areia fina. A gordura ficara seca e a própria pele não podia, sozinha, manter a flexibilidade necessária. As unhas caíram. O cenário horrível de matéria apodrecida foi causa de alegria ao insano artista que felizmente conseguira fazer vingar o seu talento - puxando-o de entre as mãos fabricadoras para a sua cabeça onde a possibilidade de extensão dos limites era infinita.

Contrato de contrastes

A mulher que se tinha disponibilizado para guardar as feras durante o dia, assombrava-se à noite antes que o tédio lhe desse cabo do fígado - o temperamento habituado aos limites não tolera simpatia.

As areias e outros

A existência de algo como um núcleo ou uma parte centrar, comum à definição de tudo que é grande e de qualquer coisa pequena, era um erro, acima de tudo filosófico.

Desconhecer os contornos

Uma casa dividida em duas partes, vivia sozinha por entre muitas plantas e da parte de fora de muitos insectos. O propósito de vida destes seres (animais e plantas) não entendia de todo. Vivia portanto numa constante curiosidade pelo que a rodeava, quer por dentro como por fora. Esquecia-se constantemente de abrir as janelas no verão e por isso, quando a porta se abria, tinha um cheiro estranho. As duas divisões não se encontravam, de facto, desconheciam-se. Foi difícil quando uma família de pessoas se mudou: as crianças especialmente. As portas abertas, entre um lado e o outro ecoavam o som das corridas e das brincadeiras. Cada lado descubriu por fim a existência de um outro.

Definições inapropriadas

Emely encontrou uma amiga e ambas desafiavam as leis da atracção pela negativa. Não havia uma contradição maior. Um paradoxo, como definição, não era um exagero. Em comum com Ada, só a falta de similaridades entre ambas e as outras candidatas.

Sim e Não e tudo que geram

Eram calores e mudanças de humor acompanhadas de sérias faltas de educação, era Ada. O seu pensamento compunha futuros maravilhosos. A música de elaborar mundos compunha-se, como um qualquer Malmequer ou Margarida, de sim e não. Dançava então até o silêncio do mundo lhe comprometer a realização de um que seja desses futuros.

Quando se emigrar em larga escala

Das cidades desabitadas da superfície sobravam arestas e aberturas pontiagudas. Aos poucos a flora assimilava edifícios e procurava nestes novas formas e alimento. A fauna em breve se seguiu e novas gerações, adaptados ao meio, adaptavam-se ás formas. A Natureza era outra, onde abundavam cores metálicas, formas geométricas na micro escala das plantas e montanhas rectangulares no recorte da paisagem.
Tudo era harmonia, beleza e paz.

Um processo a preparação e o resultado

No meio do imenso vazio produziu uma fogueira e na altura certa atirou para o fogo a massa de forma redonda e de tamanho pequeno. Esta massa era o resultado de muitos anos de pesquisa e uma vida de experimentações falhadas. Esta era mais uma tentativa. A reacção mudou a cor do fumo mas os resutados demorariam meses.
Instalou-se o Inverno. Certa chuva de um dia gelado trouxe uma coloração diferente ao jardim da sua casa. Incerta de ter atingido os melhores resultados sentiu que finalmente alguma coisa tinha mudado.

Visitas

Com a cabeça pousada na mesa da cozinha e de olhar seguro num par de copos cheios de água, a jovem Emily esperava pressentir a chegada das vistas quando observasse a linha da água a ondular entre as paredes de vidro. Num evento social Emily sentia sempre que a sua presença deveria ser forte e encantadora. Para isso reinventava sozinha novos gestos - do caminhar ao piscar de olhos. Quando as portas da sala ofereceram a Emily, pela primeira vez, público, esta começou a coxear como um homem velho e a torcer a cara como se tivesse lepra. Repreende-la não fazia qualquer sentido, seria nabsurdo. Tinha agora cinquenta anos, estava com a cabeça pousada na mesa da cozinha e esperava um pequeno sinal para se reinventar.

Adaptação

Quando o rio secou e se encolheram as margens, o barqueiro vertia água na frente do barco e atirava peixes para longe para que os pudesse reencontrar mais à tarde.

O valor do establecido

Dois carros funerários seguiam pelas ruas de uma cidade. Um só carro é normal, dois não. Suspeiratam as pessoas que passaram na rua e viram os carros se algo de importante se passara para que houvesse um duplo enterro. Verificaram os jornais, as notícias televisivas e o rádio que nada de relevante relatavam nesse dia.
No dia seguinte eram quatro os carros funerários mas ninguém se perguntou nada.
Ao Terceiro dia todos vestiam de preto na rua.

O presente cíclico

Suspeitam que seja um fenómeno termoestático. As opiniões contrárias sugerem o oposto (evidentemente). Na verdade tudo pode acontecer. Os agentes dinâmicos geram as possibilidades e estas são na prática impossóveis de quantificar. Perdeu-se o controle.

Acreditar no impossivel ás vezes dá sorte

Diante do precipício uma pessoa observa as ondas que batem de encontro aos penhascos em baixo.
Olha o infinito e tudo é perfeição: a maré que sobe, o céu, tudo permanece o mesmo como se fosse um instante de qualquer época conhecida. É o infinito no tempo que se conta à frente. Ao voltar-se outra pessoa espera. É o presente que se altera constantemente. Uma paisagem, uma espécie, uma pessoa: un infinito e um momento.
- Amanhã será diferente. Precisas de coragem. Diz a primeira.
- Achas então que será possível amanhã ser diferente? Responde a segunda.

Diante da sua cabeça as ruínas riam-se ruidosamente.

Ela começava sempre por um ponto qualquer, minúsculo e escuro, que se punha em movimento na face lustrosa da folha de papel. Era um ponto confidente ao qual não receava mostrar a sua incessante intensidade pelo incerto. Quando o ponto ganhava uma força própria ela seguia-o com o olhar a ver onde a levava. Perdia horas naquilo. Ria e soluçava. Mas depois achava que era uma tolice escrever cartas que acabavam por não chegar ao seu destino.

O sentido da procura era forte

Partiu numa jangada construída à pressa com algumas sobras de madeira, deixando-se lançar à sorte que lhe estava destinada, tentando encontrar uma estética própria. O esplendor de cada momento que viveu foi repetidamente rebatido pelo sentimento de insucesso, sem afinal ter percebido (nunca) que partir dali, em primeiro lugar, tinha sido um gesto unificador de maior urgência e de evidente necessidade - logo profundamente estético.

Economia

O objectivo do ladrão é ser honesto consigo mesmo.

Porta

Estava ali explicando-se à multidão, que ao simular acções de demonstração do seu desaparecimento físico conseguia suportar melhor o mundo - esquecendo-se dele e insistindo que ele se esquecesse de si. Assim que acabou de falar saiu por uma espécie de porta não dava a lado nenhum.

A validação pública

Não se interessava pela variedade na conversa. Aliás, os poucos interesses que cultivava eram um aborrecimento para as visitas lá de casa. Não era bonita nem vistosa e sabia pouco ou nada que se relacione com a cozinha ou os trabalhos manuais. Cuidava da relva e de todas as ervas daninhas ou pouco vistosas para permanecerem no jardim. Destas sabia as que eram comestíveis, as que traziam cheiros agradáveis, isto e varias outras qualidades mais medicinais. Na verdade para nada servia o que sabia porque em geral o descrédito nas qualidades das plantas impróprias para um jardim era total.

Continuidade

Despi as calças de andar na rua e vesti o pijama de andar em casa. Andar e caminhar são sinónimos, mas só ás vezes, dependendo das acções que descrevem. Em aparente silêncio, caminhar e ouvir música transforma o mundo num filme onde me encontro como a personagem principal.

Correspondente

Era manhã fresca quando saíu porta fora, pelo jardim adentro, com uma carta na mão. Durante anos escrevera a tantos que admirava mas nenhum lhe respondeu. O jardim abraçava-a em arcos de folhas verdes. As rosas beijavam-na abrindo-se em cores amarelas, rosa, vermelho e em combinações multicolores. Hoje era primavera e os seus olhos marejavam a água contida durante todo este tempo. Abriu o portão nervosa, com pressa, para entrar logo a seguir no portão ao lado. Abraçou e beijou Susan, a sua primeira correspondente.

A montanha também é um livro aberto sob a luz amarelada

Um cheiro pestilento emanava do corpo do juiz. Era o cheiro de julgar. Esta vivência era agora impossivel. Os livros e as suas escritoras enchiam-lhe a imaginação de sonhos, lidos à luz de velas acesas toda a noite. Sabia que morreria a sua escrita se ele a aceitasse como vítima do seu julgamento. De forma que não acontecesse matou-o ali mesmo com um texto tedioso e com alusões vivas ao mundo das mulheres que tanto admirava. Ele insultou-a ao sair. Ela sorriu.

Procurasse

Emily, deu conta que o seu corpo se oferecia à leitura, pela primeira vez, quando, folheando um livro da Bronte, sujou os dedos e as unhas de tinta, desgastado as páginas de tanto as acarinhar. Mais tarde, experimentou a leitura dos seus próprios livros diante de um largo espelho - aspirava as letras, sugava-lhes o sentido, despejava o ar, fazendo caras feiíssimas para corresponder à orquestrada pontuação. Da próxima tentativa teria que conseguir escapar-se para dentro da leitura e ser ela mesma mais que uma leitora - mas uma leitura que outro corpo procurasse fazer parte.

Ser de verdade

Gostava de ser outros. Um de cada vez. Assim perdeu-se nas suas próprias possibilidades. Sabia quem era. Era todas as pessoas que alguma vez desejou ser. Depois perdeu-se no mundo porque não a reconheciam.

Desperdiçada

A destruição era o seu sentido mais desenvolvido. Todas as situações eram estado de potência que, quando se encontravam, ela motivava, em desvio permanente, o encontro com o abismo. A energia gerada em destrução constante era beleza intolerável.

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Ouvindo mal respondemos sempre, enriquecendo a existência das coisas ditas.

As cartas

Emily acende uma vela e escreve cartas querendo assim afirmar a sua existência pelas leituras que fazem delas os destinatários e os seus descendentes, por constante propagação de destinatários atentos. Sobre o que versam? “Eu escolhi…” (embora se traísse)

O bem e o mal

A rosa explica a Emily - que se encontra ajoelhada à sua frente com um bloco de notas - que todas as flores cujas pétalas e folhas se vêem, seguram-se a um caule vertical, de grande profundidade e com uma configuração irregular, que as alimenta do centro da terra. Emily aprendeu e concluiu: que a superfície é profunda e que a profundidade é superficial, de um modo equilibrado. Logo de seguida, Emily quis verificar se estava correcta puxando pelo caule da rosa. A rosa, em agonia, foi a tempo de condenar a que puxassem também o caule a Emily. Sem o alimento das raizes e expostas à luz, secaram e não sobreviveram.

Cuidados

Emily deteve-se junto das altas cercas por onde se roçavam as trepadeiras. Olhou distraidamente para fora dali, pousando com firmeza as mãos sobre a madeira. O seu amor eram as pedras que a seguravam pelos sapatos e as hastes verdes que a envolviam pelas ancas. Sem eles não era certo que voltasse à noite para jantar.

Contribuir

Na hora marcada Emily contribuiu com a sua parte no encontro social que teve lugar numa sala de jantar. No final, quando abriram as portas de saída, Emily esperou que os visitantes desaparecessem de vista para se lançar para longe. Não ficou agitada - não mais que o normal - mas pedia apenas que não a lessem tão tarde porque lhe perturbavam o descanso.

A sinfonia da destruição

Duas notas para os que se interessam pelo assunto das inesperadas pragas de insectos:
1. É o castigo da hipnose colectiva que lidera o sentido de ajuntamento (não há líder).
2. Não há objectivo individual à vista e não há destino mais fatal.
O acto compulsivo do indivíduo e da praga são a mesma coisa.