Juro

Um grupo de seis escuteiros separou-se numa clareira para ultrapassar uma prova de sobrevivência.
A prova consistia em atravessa a floresta e ir até ao centro da cidade, demorando no máximo vinte dias.
Todas as necessidades básicas seriam satisfeitas fazendo uso dos recursos naturais da floresta. Ao final de dez dias tinham aparecido quatro, dois depois apareceram os outros dias. A recepção foi feita com entusiasmo, pois nunca antes se tinha encontrado o caminho em tão curto espaço de tempo. O grupo de jovens escuteiros iria ser galardoado em cerimonia publica para a qual seriam convidados toda a população.

No momento da recepção, o pequeno escuteiro, um anão que fazia de mascote, foi encarregue de falar pelos escuteiros. Ele comunicou o seguinte: “ A floresta e os seus ensinamentos maravilhosos deu-nos a possibilidade de provarmos a todos vós que somos capazes de ser indivíduos autónomos, agradecemos por isso esta oportunidade”. Depois dos aplausos, nesse momento, conta-se que toda a população foi exterminada por vinte pessoas disfarçadas de escuteiros.

Sorte

A senhoria passou-lhes para a mão três chaves que abriam as portas do novo apartamento.
Tratando-se de uma situação especial, da lua de mel do casal, traria sorte se acertassem com as três chaves nas fechaduras correspondentes de uma só vez. E assim foi.
Quem as seleccionou foi a noiva. O noivo desconfiado de algum truque suspeito perguntou-lhe como tinha adivinhado a que fechaduras pertencias as chaves. A resposta foi enigmática, mas ele acreditou.

Propriedade natural

Durante o conflito entre os proprietários de terras vizinhas, um deles fugiu acreditando levar com ele toda a terra que lhe pertencia metida nos bolsos. À medida que se afastava, notava que ia mais leve. A terra tinha-lhe caído pelo caminho. Parou então para retirar o que sobrara dos bolsos virando-os do avesso e juntou tudo numa só mão. Começou a correr de novo com a mão fechada. Chegado a um sitio muito escuro e sem ninguém, abriu a mão. A pouca terra que sobrou misturou-se com o suor e dali crescia já um rebento. Pensou que deveria relativizar as coisas de que era proprietário, por isso, deitou-se ao comprido e espalhou o bocadinho de terra feita lama sobre todo o corpo e deixou que esta fina camada desse frutos. A sua única propriedade era ele mesmo.

Opostos

Despida, presa a um par de óculos que forçosamente fixa em frente aos olhos com as duas mãos, entra dentro da água gelada do lago que é, junto com o ceu, a paisagem vista das janelas de sua casa. Imersa até ao nariz, segurando ainda os óculos, ali fica, gradualmnete perdendo controle sobre o corpo até passar as tremuras e não o sentir mais. Já foram as forças para gritar, para sair sequer. Não morrerá mas o seu estado não terá retorno, nunca mais será são.
Sente uma corda que a enlaça, a prende e a puxa para a margem. Não se sente e não larga os óculos. Não se senta também porque deixou de lhe pertencer o corpo que vê. A pessoa que a retirou é um total desconhecido que passou por ali, admirando a paisagem se deteve e a encontrou. Assim aconteceu. A impossibilidade de se sentirem.

Cobra de água

Fora acusada de amamentar os animais no Zoo como se fossem as suas crias, por entre as grades, e cumprira por isso uma pena elevada. No entanto, o que se podia pensar como sendo uma história do passado, voltou-lhe a acontecer quando um elefante adoeceu e a foram buscar a casa. O tratador implorou-lhe que lhe desse um pouco de afecto maternal. Ela recusou, estava no direito de se proteger uma vez que tinha alguns animais domésticos por sua conta e desta vez não havia ninguém por perto para a substituir. Dias depois o elefante matou-se, enforcando-se com uma corda. Desesperada, com sentimentos de culpa avassaladores, voltou ao Zoo para amamentar e acarinhar. A certa altura, apercebeu-se que seria impossível manter-se naquela situação, preferiu pôr um fim ao jardim - que no fundo tanto odiava como espaço de enclausuramento, prisão e tortura - e distribuiu entre todos pastilhas de efeito imediato. Os animais estenderam as patas por entre as grades com ansiedade, agradeceram-lhe, e cada um, em sua consciência, tomou a pastilha quando sentiu que estava na sua hora partir. A senhora, mudou-se para a selva onde comungou com a natureza em igualdade de circunstâncias, vindo a terminar como cobra de água - ilesa e escorregadia.

1991

Estava de viagem pelo deserto em turismo e acabei por repousar numa pousada, que fora indicada por uma criança que brincava na rua. Enquanto esperava para sair, quando a temperatura fosse mais baixa, preparei uma toalha molhada para colocar na fronte, coloquei um copo de água gelada na cabeceira da cama, despi a roupa deixando a camisa branca e liguei o rádio. Deitei-me então, tendo o cuidado de acomodar a minha cabeça no travesseiro cilíndrico e imaculado, e fechei os olhos. Estava relaxado a ouvir o som indefinido do rádio e só aos poucos me aventurei a prestar-lhe um pouco mais de atenção.
“Houve uma mudança na programação” - anunciou uma voz feminina que deu lugar a um locutor que se apresentou como sendo o Samuel. A sua voz era grave, falava pausadamente e manteve-se segura até ao final. Samuel começou por dizer: “Gravei uma K7 em 1991 que ninguém ouviu, continha canções originais compostas por mim”. De seguida ouviram-se vozes, uma discussão e depois instalou-se silêncio. Tentei adormecer, mas a temperatura não baixou, subiu e eu senti-me descontrolado, um pouco nervoso. Samuel voltou à emissão. “ Chamo-me Samuel, gravei uma K7 em 1991 e todas as canções eram de minha autoria…sou…”. “Samuel” - pensei intensamente -“ Samuel, eu sou Samuel.” Incapaz de saber o que fazer com a informação que acabava de receber voltei-me para o outro lado.

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Um gato preto entrou no meu quarto enquanto eu dormia profundamente. Deu um salto da janela para os meus pés e daí levantou-se aos poucos ganhando uma nova dimensão. Ergueu-se então como um humano e dirigiu-se à minha cabeça que estava preta, chamuscada, completamente perdida no incêndio que deflagrou durante o meu sono. Segurou a cabeça com as duas patas e viu que estava perdida, já não servia para nada. Avistou uma tesoura que se encontrava em cima do toucador, agarrou-a e com uma das partes, a mais fina e pontiaguda, e com ela desenhou e escavou cada um dos elementos do meu rosto. Começou pelos olhos, e terminou na boca. Quando a abriu, tendo o cuidado de fazer saltar-me a língua, eu disse-lhe: “pena que não me tenhas conhecido antes, pois saberias que o meu nariz não é assim.”

3669

Na noite passada tinha sonhado vivamente com o número 3669 de forma insistente. Andei toda a manhã com o número na cabeça. Pela hora do almoço sabia que alguma coisa tinha que fazer. Tentei ligar vários números alterando os indicativos. À terceira tentativa atendeu uma senhora com uma voz muito calma - ¨Estava à sua espera¨. À minha espera? ¨Sim. Sonhou comigo não foi? Devo de confessar que o nosso encontro de ontem também me perturbou ao ponto de não conseguir dormir¨. Estará enganada concerteza, pensa que fala com uma amante. Sem saber bem o que fazer, continuei pensando que mais cedo ou mais tarde tudo faria algum sentido. Marcamos encontro para essa. Eu, claro sem saber quem ela era. Sentei-me no café ao balcão. ¨Acho perfeita a cor da sua saia, fica-lhe mesmo bem¨. A voz era a mesma. Era ela. Apresentei-me, disse-lhe que combinamos este encontro ao telefone e esperei uma reacção. Um grande sorriso foi a sua resposta. ¨Tenho muita sorte por me ter ligado naquele momento. Os Transportadores usam as linhas telefonicas mas só é possivel comunicar quando a linha está a ser usada, quando me ligam. Ou seja, quando atendi o telefone, falava consigo e com os meus Transportadores. Pois vou então partir para um planeta distante muito em breve (mais precisamente, dentro de uma hora). Está aqui a chave de minha casa. ¨

Opostos e outras versões

Duas irmãs moravam num prédio tão velho que não tinha idade - tal qual como elas. As duas moravam sozinhas com muitas gatas que alimentavam e acarinhavam, todas pretas. Quando tinham crias e se fossem gatos (que é o que a maioria das pessoas prefere) ofereciam-os. Na sua casa tinham muitas visitas e por isso não estavam isoladas. As visitas eram raparigas de várias idades, gostos diversos e estratos sociais. Era uma casa grande e as visitas demoravam-se horas e ás vezes dias. Para os vizinhos, estas senhoras eram um verdadeiro enigma pois presenciavam o movimento, sem nada de repreendedor é certo, mas invulgar.
Um dia de Outono uma das senhoras atravessava a rua e por infortunio foi atropelada mesmo em frente à porta de casa. Não se tratava de um acidente, um acaso, pois o condutor parecia conhecer muito bem a senhora e, depois de gritar ameaças, fugiu. Muita gente, atraída pelo acidente, juntou-se em volta da senhora. Alguns dos vizinhos aproveitaram a oportunidde de ajudar para ver uma das estranhas vizinhas de perto. Nada de especial, uma velhota. com as visitas, no entanto,a reacção foi diferente. Reagindo ao barulho, em minutos estavam à porta e vieram à rua. Eram muitas e, agora que estavam todas juntas e podiam ser observadas à proximidade do detalhe dos poros da pele, notava-se que eram tods surpreendentemente iguais, como que a mesma em vários estados de crescimento.

O silêncio

Na planície, no topo de uma montanha da Espanha interior, ficava a biblioteca das traduções. Nela não havia um só livro, texto ou aviso aos visitantes que não tivesse sido previamente traduzido da língua em que fora escrito. Cada livro tinha várias versões. Todos os empregados falavam várias línguas e com os anos esqueceram até a sua língua mãe visto que nunca a usavam. Os visitantes, raríssimos, procuravam em todo o género de textos a peculiaridade da realidade descrita em cada palavra. Em cada palavra procuravam a sua composição históriaca e ligavam umas palavras ás outras, muitas das vezes para encontrar outras palavras ainda em comum. Aqui não se chegava ne de carro nem em nenhum meio de transporte ruidoso. As rosas eram um gesto subtil de encantar os visitantes com os olhos e o olfacto e desta forma não dizerem uma paravra. AS subtilezas do silêncio, dos sentidos que não são a fala nem implicam a leitura são muito apreciados pelos empregados nos seus tempos livres.

Viagem a Paris

Ligaram-se as luzes e desnudou-se à sua frente a realidade das paredes brancas. Passara vinte dias na superfície de um planeta com uma atmosfera mortífera an exploração de mundos desconhecidos, conheceu outros humanos e seres alienigenas. Em geral, as fichas produzem efeitos cada vez mais reais mas acima de tudo proporcionam uma experiência segura. Esta tinha sido especialmente cara, estava acima das fichas da moda, a maioria ainda estava interessada em experimentar o paraíso na terra representado por praias de água transparente e clima quente. Lembrava-se da avó dizer por brincadeira que sempre se podia fechar as janelas, ficar em casa e dizer que se tinha ído a Paris. Sorria. Afinal, é isso mesmo. As suas férias tinham podem ser resumidas a vinte dias sem sair de casa. Mais ou menos.
Durante a sua viagem, numa encosta de pedras quentes e azuladas, conheceu um alienigena interessante, capaz de descrever uns vinte planetas onde tinha estado. Ambos gostavam portanto das experiências radicais proporcionadas pelas fichas. Talvez tivesse encontrado alguém à altura com quem viajar. Ou talvez fosse um empregado da empresa anunciando, de forma pessoal, as mais recentes fichas. A verdade é que algumas delas lhe eram totalmnete desconhecidas.
Assim que lhe foi possivel investigou a personagem. Resultados surpreendentes: dada a falta de informação ofícial disponível. Teria encontrado, na simulação, uma espécie de mito digital, relatado por alguns com tom assustador?

Biografia de um músico inevitável

Um músico pede, junto ao altar da virgem Maria, para que esta lhe conceda, no espectáculo dessa noite, o dom de tocar maravilhosamente como não há igual na história da música. No momento em que se levanta para sair torce o pé, está em dor atroz e assim é levado ao hospital onde fica em observação até ao dia seguinte. Ter perdido o concerto levou-lhe a fé, a fama e a auto estima. Não tem nada. O seu substituto, um músico em ascenção, fez um papel maravilhoso e fica com o seu lugar mais cedo em vez de mais tarde.
No dia seguinte volta para casa, onde mora sozinho. Rápidamente se desfaz dos bens e procura o isolamento de uma casa junto a um rio - única via de comunicação com a população mais próxima. No seu isolamento toca e aos poucos esquece-se das notas e das melodias por isso improvisa.
Anos depois ainda se lembra, ainda que vagamente, o que é uma nota. No entanto toca todos os dias, é uma das muitas tarefas. Entre outras, trata da horta (e as suas músicas são sobre as colheitas e sementeiras) e trata dos animais (e as suas músicas são sobre a sua relação com o gato, o porco e as galinhas, as cobras no verão e as raposas no Inverno).
O artista não é feliz mas nunca foi. Só não espera receber nada a ninguém porque tem sempre consigo o que precisa.

Multiplicidade da unidade

Sistemas seguros e fiáveis para armazenamento de informação são muito bem pagos. Hoje em dia, com o problema crescente da mudança constante de idêntidade, quem vende uma história de vida com factos comprovados e ficha médica legal está rico. A situação é alarmante mas não existe lei que regule de alguma forma a troca de idêntidade quando mudar é um processo tão simples quanto actualizar um ficheiro de texto. Quando a ligação entre um ficheiro individual e os demais, oficiais, aos quais este está ligado, podem ser manipulados, as possibilidades são infinitas. Os ganhos, para os traficantes, ultrapassam de longe os do tráfico de químicos ilegais. Mariana, uma jovem Tailandesa, iniciou-se no tráfico de informação aos 15 anos vendendo a sua própria idêntidade. Os casamentos polígamos são, na Tailândia, legais entre os portadores de passaporte nacionais. Os compradores da sua idêntidde, um casal das suas relações, procuravam desesperadamente uma nova idêntidade para uma rapariga mexicana de forma a oficializar uma relação de longa data. Com o dinheiro da venda Mariana comprou uma idêntidade superfícial, isto é, que não tinha história mas, por contrapartida, tinha um excelente registo médico. Viveu-a durante uma semana de forma a dar à idêntidade um bom contexto, as boas notas escolares foram trunfos excelentes. Vendeu-a logo a seguir. Um ano depois de ter iniciado, Mariana tinha encontrado e adquirido um raro sistema de armazenamento exterior ao corpo, num formato muito antigo, e no entanto compativel com os formatos mais actuais. A idade de manufactura fazia deste um sistema ignorado e sem interese para os demais traficantes. Aí depositou a sua última e definitiva idênidade, a de uma velha senhora compositora de jardins privados. Mariana, agora rica para além do que conseguia gastar, com uma idêntidade intocável, dedicou-se ao estudo do comportamento social como reacção ao clima na zona mais populacional da Cidade, a capital da coligação dos estados continentais.

Os escolhidos

O poço fica no centro deste lugar escondido da multidão e do barulho. A população é mínima e as crianças são entregues a amas para serem criadas na cidade aos 2 meses. É um hábito com muito tempo, versão modernizada de um ritual cujar origens perderam-se de tão antigo e pouco estudado pelas ciências. A população mantém-se mínima por opção. Só os chamados pelo poço voltam ao lugar onde nasceram, quando adultos, com a família que entretanto construíram. O que pertence a esta lugar por nascimento, retorna a este lugar a tempo de se preparar para a sua entrega que acontece no mesmo dia do nascimento, no dia em que o cíclo do crescimento se fecha, a partir do qual a carne decai e morre lentamente. Os que voltam fazem-no porque instintivamente sabem que não nasceram para morrer lentamente. O poço, como disse, fica no centro deste lugar. Foi aqui, encostada a este poço, que a mãe viu o filho ou a filha nascer das suas entranhas e com suas dores. É ao poço que o homem ou mulher adulta se entregam. A entrega é um ritual muito antigo, actualização de outro ritual muito mais antigo e semelhante. No início deste ritual o adulto conta a sua vida desde que se lembra de existir a quem passa por perto. Há quem se sente a ouvir a sua história durante horas, ás vezes, quando apela aos ouvidos da população, esta para tudo que tem a fazer e vem-se sentar junto ao poço. De seguida bebe uma bebida fermentada feita de água de um cacto que cresce nas redondezas com chá de uma flôr azul e vermelha. À medida que agradece a sua vida aos que ficam, a quem ama e maldiz os que lhe dificultaram a vida, os que odeia, a bebida, gradualmente, leva o adulto a um estado em que se sente transcender a realidade do seu corpo, a um estado de felicidade individual. Neste estado, aninhado na beira do poço, amarra os pés ao corpo para cair em posição fetal. Assim acaba a sua vida, o poço não tem fundo que se veja ou ouça. O adulto deixa-se cair, feliz, atraído pelo conforto do escuro. A vida continua, a família, vinda da cidade, procura-o sem sucesso. Acabam por ficar, porque sentem o apoio e amizade da restante pupolação, afinal, todos passaram pelo mesmo,

Encontro

Esperava porque sabia que viriam. Esperava. Olhava o céu todas as noites e esperava. Cada vez mais calmamente e sempre pronto. Despedia-se de todos todos os dias como se fosse a última despedida. Vivia intensamente pensando que saboreava cada momento como se fosse irrepetível, cada lugar sem futuro.
Uma tarde torrida, há dois anos atrás, num café de uma avenida barulhenta e puluída do Cairo, aconteceu partihar a mesa com um velho de pele muito enrugada e escura que aparentava uma tranquilidade para além do humano. Trocaram palavras sem entenderes o código do outro. Aparentemente a conversa era agradável pois ambos sorriam. Com as vozes como som de fundo, comunicavam telepáticamente, sobre crenças antigas e povos distantes que habitavam cavernas no centro da terra e em outros planetas. O velho, um poderoso e sábio guardião da história dos mundos, tinha encontrado um depositário para a sua sabedoria. E assim, telepáticamente a depositava em alguém que a guardasse e que esperasse a chegada dos que ligariam histórias de outros mundos e para, através da energia gerada pelo conjunto, telepáticamente, partilharem esta sabediria com toda a gente que habita a Terra. Há relatos de encontros semelhantes acontecidos no nosso planeta em tempos ídos, antes das pinturas nas cavernas.

Europa Central

Certo dia, um antropólogo encontra uma tribo africana perdida no centro da Europa.
No dia seguinte envia uma carta à família onde explica porque não voltará, mesmo que esteja a uns 3000 km de casa, e porque não concebe sequer a ideia de sair do seio daquela tribo.

A razão pela qual estavam ali era simples: um outro antropólogo tinha-os até à Europa como material de estudo, mas abandonou-os mal se apercebeu que fora do seu contexto eles não revelavam qualquer singularidade.

O bom antropólogo, o último, foi então seduzido pela missão de lhes ensinar as tradições, recriando-as à sua imagem, dando por terminado qualquer estudo e fazendo-se acreditar que era o deus do progresso.

Pedras coloridas

Cansado da viagem, um homem, que por profissão revestia de desenhos feitos com pedrinhas coloridas as paredes de certos edifícios, encostou-se à berma da estrada, num abrigo de arbustos, e aí adormeceu. Tão cansado, sonhou que era um veado e que saciava a sede nas águas de um ribeiro límpido de uma floresta verde. Sonhou que chegava a noite e se deitava numa clareira que ficava no centro da floresta. No sonho do homem a floresta era a única coisa que existia no planeta e ele, como veado, estava no centro. A afinidade com o veado era estranha - ele era o veado mas observava de longe o veado. Percebeu que era ele, homem, que via o veado na floresta e era também ele o veado. Dentro de si, como veado, existia a frescura da água que bebera e que corria dentro dele como se fosse o ribeiro e sentia todos os ribeiros da floresta dentro dele.
Acordou do sonho já era noite. Levantou-se e pensou nos desenhos que tinha planeado fazer no edifício onde a sua viagem o levava. Era uma encomenda importante para um edifício de oração de uma qualquer religião. Desenhava padrões que se intercruzam cou outros padrões num emaranhado geométrico colorido.

Uma casa feliz

Cada casa está dependente do seu habitante. São feitas de materiais com propriedades orgânicas, por exemplo, algumas mantêm-se muito pequenas, de tons sóbrios (que se transformam em cores vivas caso o dono mude com regularidade de parceiro sexual) e simples porque o dono é em solitário e não recebe muitas vizitas. O N.36 é habitado por uma mulher em tudo o oposto deste exemplo. Habita sozinha mas nunca está sozinha em casa. Crianças, adultos e idosos são regularmente recebidos. A casa em si é feliz, cresce e encolhe e é a mais versátil que conheço. É também a que tem a vegetação mais luminosa e luxuriante. Quando está sozinha, a Sra do N.36 senta-se cá fora e a casa quase que se torna invisível. As necessidades exteriores são mínimas para si e muitas quando está com os outros. Os demais (sempre pensei que eram amigos, mas não) são pessoas que encontra e que querem concretizar um projecto qualquer projecto. Os encontros são então conversas sobre os tais projectos, muitas delas totalmente absurdas e irrealizaveis.

Penas

Uma notícia, capa de um jornal internacional, dava conta do mais espantoso roubo ocorrido num Museu de História Natural – o roubo de uma colecção de pássaros, apenas machos, cujas penas continham os mais surpreendentes e raros padrões cromáticos para seduzir as suas parceiras. As gavetas que continham estes pássaros, de cerca de 0.50 cm a 2 metros, foram desorganizadas supostamente para despistar a polícia e fazê-la acreditar que se trataria de um roubo vulgar. A notícia tem seguimento dois dias mais tarde: a polícia denuncia um clube de pescadores, cujos membros usariam as penas como isco para caçar peixes tropicais que, recolhidos, seriam vendidos a Oceanários espalhados pelo mundo.

Anos mais tarde os pássaros reapareceram em excelente estado precisamente no mesmo sítio de onde tinham desaparecido. Não apresentavam qualquer sinal de deterioração.

A investigação, levada a cabo por um delegado insistente em descobrir o mistério, chega ao final quando foi anunciada o verdadeiro culpado:

- um ornitólogo descendente de um marginal injustamente expulso do Europa no Séc. XV, que habitou uma ilha deserta até à morte, que tinha como obsessão passar o tempo a criar um alfabeto a partir dos padrões das penas dos pássaros da ilha – os únicos habitantes para além dele. De seguida, reorganizou os padrões dos próprios pássaros para que, quando capturados expusessem a sua história ao resto do mundo e assim se fizesse justiça.

Casa de Praia

(Outono)
Saímos a meio da tarde para uma caminhada entre as rochas. À medida que nos aproximávamo-nos do mar sentíamos uma aragem fresca, mas suportável. Avançamos com a intenção de chegar perto da água, como se tivéssemos proposto secretamente este desafio uma à outra. Prestes a tocar no limite das rochas, encontramos uma superfície relativamente horizontal onde nos sentamos um pouco. Puxei de um cigarro que trazia num bolsinho dos calções e acendi. Disse serenamente: “podia-te atirar agora e deixar-te afogar”. Ela respondeu: “pensei no mesmo, mas sei que te sairias melhor porque sabes nadar”.

Sorrimos e descemos até ao sítio onde terminavam as rochas - que fica a mais de três metros de altura da água. Uma vez que tínhamos pensado as duas no mesmo, e o comunicamos, não havia outra solução senão esta: íamo-nos empurrar até que uma caísse. A que ficasse na rocha podia redimir-se do seu mau pensamento se se atirasse para salvar a vida da outra.

Subitamente uma onda engoliu-nos, mas ela não soube nadar.

No sentido de Yogtaill

As mulheres começavam a ficar desorientadas e com medo de se perderem na areia do deserto. Estava um vento que fazia tudo desfocado e que lhes tirava qualquer vantagem na orientação pelas referências visuais e dos odores. O deserto, mais habitado do que nunca na hisória, era terra dos foragidos que se misturavam com as tribos ancestrais. Este vento era uma variante do vento do eixo interno, mais difícil e suportar, trazia consigo os pólens das plantas gigantes da zona Interior. Opaco o suficiente para despistar perseguidores mas muito difícil para esta gente porque tem um cheiro próprio que anula os outros e a cor amarela dos pós que traz nã deixam vislumbrar as tendas dos nómadas - tudo se parece com areia. Os homens já assustados querem agora voltar à rua principal. Já não pensam na liberdade para onde caminham da tribo dos Yogtaill Uma tribo secreta, nómada, sem crianças, onde a linguagem oral foi abulida para a paz de todos.

Remetente/Destinatário

O Sr carteiro tocou à campainha para eu assinar um papel. Era uma carta sem remetente endereçada à minha pessoa. Assinei, entrei de novo em casa e fechei a porta. Olhei para o envelope. No espaço designado para abertura havia um autocolante. Dizia - Não abrir!

Paraíso pedra

Descidas as escadas ao fim do tunel que atravessa a montanha o viajante sente-se descer a um paraíso verde escondido do mundo. Nada mais do que aparência. A natureza criou este vale muito pequeno entre três montanhas altas e íngremes. Aqui chegaram alguns engenheiros interessados no estudo dos minerais que ao descubrir este vale logo lhe construiram um acesso. A camuflagem da vegetação é fundamental para aí desenvolverem um projecto deveras voluptuoso. De vez em quando aparece um viajante. Turistas nenhuns, não se atreveriam pois a zona envolvente é deserta e desprovida de actividades e encantos.
Os viajantes são bem vindos mas infelizmente não chegam a sair. O corpo suado e a mente atenta aos degraus da descida é sentida por um morador muito controverso deste local. Mito local, aclamado semi-deus em tempos ídos, o Mororo é uma pedra que se alimenta de suor e cujo desenvolvimento se manifestas de várias formas dependendo do sentimento do individuo que se aproxima. Mororo é o deus disforme mas imóvel da antiguidade que aniquilava os caçadores excitados pela caça. Para os engenheiros que estudam esta pedra, da felicidade que sentem têm colhido esta vegetação que cresce, se alimenta da pedra e esconde os seus propósitos mas os viajantes, temerosos, cautelosos, são mortos e absorvidos. Destes a pedra retribui com ouro e pedras preciosas de tamanhos inimagináveis.

Desigualdade

A piscina estava rodeada de areia e nela se juntaram centenas de corpos nus mergulhados no forte sol de verão. Um homem bem vestido boiava na água. Era o proprietário da casa – uma enorme mansão – e estava morto. No final do dia o homem tinha vagueado pelos extremos da piscina sem que ninguém se importasse. As pessoas foram para casa e voltaram à piscina pelo menos mais cinco dias até aparecer a polícia. O interrogatório demorou horas. Até que um polícia desconfiou de suicídio assistido – que outra razão podia tornar aquelas pessoas tão indiferentes à morte de um amigo? Outra hipótese foi não o terem visto, simplesmente – muito embora o volume do corpo inchado não o tornasse propriamente invisível. A última explicação, a mais provável, foi que todos desejavam vê-lo morto e todos celebrariam infinitamente a sua morte se fosse possível – por isso o mataram e ali ficaram.
Ao contrário do que se pensou estavam a vê-lo e até lhe devem ter mexido – deslocaram-no para que o sol não o queimasse, porque não queriam vê-lo muito deteriorado. “Sente-se culpada?” – perguntou um dos polícias à esposa. “Dada a situação, observe e diga-me, quem é que tem culpa? Estas centenas de pessoas ou o meu marido?”

Progresso

Ao final da tarde, no cimo da rua, perto de um pequeno jardim, um grupo de rapazes brincam com berlindes. De repente um deles fica paralisado com o olhar em direcção ao vidro redondo.
- Consegues ver o futuro? - Perguntou-lhe um dos rapazes.
- Não sei se o que vejo é o futuro porque nunca o vi antes. Dentro do vidro há uma escadaria e formas brancas.
- Se abanares o que acontece?
- Perde-se a nitidez desta visão e as escadas invertem-se - já não sobem, mas descem.
- Mexe de novo, e conta-nos.
- Agora as escadas sobem e descem, sem princípio nem fim.
As crianças deixaram o berlinde para trás porque eram supersticiosas e não tolerariam abandonar a ideia de um futuro cheio de Progresso.

gATO pUZZLE

A certa altura da minha vida sentia-me mais confiante para sair e conhecer pessoas. Cuidava-me com rigor e todos os colegas notavam como estava bem feita a barba e aparado o bigode, como o meu corpo cheirava bem, como me vestia com um estilo moderno, enfim, como não deixava nada ao acaso. Mas, por azar, a minha companheira deixou-me. Ficamos amigos, mas ainda assim fiquei abalado. Procurei ajuda e acabei a tomar comprimidos. O efeito dos comprimidos não se fazia notar até hoje. Mal me levantei para dar de comer ao meu gato este desfez-se em pecinhas de um puzzle. Nem queria acreditar, tentei chamá-lo pelo nome para ver se se COMPUNHA, mas ele não obedeceu. Quando tentei sair à rua, ainda no corredor do prédio encontrei uma mulher que me cumprimentou, quando olhei para trás já ela se desfazia em peças, de um puzzle, cada vez mais pequenas. Pensei - “Será possível que os seres vivos se tenham transformado para mim num puzzle infinito e inesgotável?”
- “Na sua opinião o que tenho, doutor? Que problema é este?”
- “Penso que está DESPEDAÇADO!”

Carregamento

Era meio dia.
Nós estávamos deitados na areia da praia quando chegou um enorme camião amarelo. Éramos cinco no nosso grupo e a praia não teria mais que dez pessoas espalhadas por cerca de 20 km. Tínhamos ouvido falar dos “carregamentos” na televisão, no entanto desconhecíamos a que horas se efectuariam. Estava tanta luz que o camião se eclipsou no meio das dunas. Protegemos os olhos com as mãos e ficamos atentos. Os “carregamentos” estavam a suscitar muita atenção da comunicação social e a maioria dos cidadãos suspeitava desta decisão do governo.
No entanto, ali, não nos pareceu que alguém desse muita importância.
Subitamente, ao passar de uma nuvem, a sombra que caiu sobre o camião permitiu vê-lo melhor. Este colocou-se com as traseiras viradas para o mar e perto do rebentar das ondas fizeram-se descarregar pessoas, vestidas de fato de banho, de sandálias, morenas, com todos os acessórios necessários para passarem um dia na praia.
A praia ficou cheia de modelos de pessoas atarefadas a subir e a descer a praia a caminho da água para um mergulho e crianças com baldes e pás.

Ouro

Um puzzle gigante de 1.000.000 de peças estava em cima de uma mesa prestes a ser completado.
A dúvida chegou precisamente no momento final quando restavam três peças.
Como se selecciona a peça certa?
Com que critérios?
Mas porquê duvidar agora?
Porque em 1.000.000 peças apenas três podem provocar dúvidas.
E porque o ouro só se descobre depois de retirada a areia da peneira.
Os jogadores desistiram e saíram da sala.

Cruzeiro

Um corpo deu à costa ontem de madrugada arrastado pelos tentáculos espessos das algas.
Quando foi resgatado, ainda se podia ver ao longe o cruzeiro onde viajava.
Era um jovem, que aparentava trinta e cinco anos. No bolso do casaco foi encontrada uma carta de jogar e um maço volumoso de notas. A autopsia revelou marcas de cigarros na língua e nos braços.
A policia concluiu o relatório e deu por encerrado o processo culpando um outro jovem da mesma idade que acompanhava a vitima. A investigação independente acrescenta ao relatório uma possível associação de dados: a embriaguez e o jogo fizeram-no perder o juízo, acreditando no azar da carta que lhe saiu acendeu um cigarro, queimando-se, saltou para a piscina, na qual, sem que ninguém entendesse como, afogou-se. A tripulação e principalmente o responsável pela embarcação, sentiram-se todos culpados e em conjunto deitaram-no ao mar para que parecesse um acidente.

Mais tarde, o jovem acompanhante faz novo depoimento perante a lei.
Ele afirmou não conhecer sequer a pessoa que morreu, apenas lhe emprestou dinheiro para jogar e para lhe fazer companhia por uns instantes no bar do cruzeiro. Algumas bebidas mais tarde a vitima caiu imóvel, pálido, e todos os turistas que por ali estavam, tentaram reanimá-lo queimando-o com cigarros debaixo da língua e nos braços. Como não resultou meteram-no na piscina. A morte dera-se no bar, logo no início da noite. Foram os sentimentos de culpa que os levaram a atirá-lo ao mar. Não poderiam viver com o seu falhanço, nem com a sua mortalidade, tão perto.

O gigante veste-se de verde

Nos subúrbios de uma grande cidade, duas crianças brincavam no jardim do prédio onde viviam.
Uma tinha seis anos e a outra dez - eram vizinhas. A mais nova arrancou um rebento de um cacto e picou-se. Escorreu-lhe muito sangue das mãos picadas.
A mais velha tentou protegê-la, para evitar que se voltasse a picar, e contou-lhe uma mentira. Disse-lhe que cada vez que se cortava um pedaço de uma árvore, uma planta ou flor, desse sítio saía um gigante - um gigante vegetal! A criança acreditou sem reservas.

Desde então esperou descobrir que a Natureza se assemelhava a uma tribo de gigantes que se revoltaria com mãos criminosas.

Certo dia, observou a mão da mãe a cortar um pepino que em tudo se assemelhava a um cacto. Pensou que não ia a tempo de lhe explicar as consequências e achou melhor esconder-se com uma faca na mão à espera de proteger a mãe do ataque do gigante.

O desenho mortal

Num solar foi deixado abandonado um jardim incompleto.

No início, o arquitecto do solar tinha planeado um jardim tropical a ser colocado no pátio interior, debaixo da cobertura de vidro pintado. Mas os proprietários, depois da má experiência que tiveram na floresto tropical da Guatemala - febres e diarreias devido à agua dos charcos e aos insectos - , preferiram cactos, que apenas lhes lembrava terras exóticas ainda por conhecer. A construção dos canteiros tinha já começado e os cactos foram encomendados - uma série de espécies por cada deserto do mundo -, quando a senhora faleceu de fraqueza pulmonar e a seguir o marido de desgaste ósseo. Como os carregadores não foram avisados do sucedido carregaram o jardim de cactos e acabaram de construir os canteiros.

Anos mais tarde foi reclamado o solar por um sobrinho. Assinados os papeis o herdeiro entrou no solar para aí habitar. Encontrou todo o interior coberto por uma espessa camada de vapor e nenhum pó. Perto do pátio interior reparou que os vidros que o separavam da restante casa estavam ressoados, cheios de enormes gotas de água, como se alguém ainda ali habitasse. Ao abrir a porta deparou-se com um labirinto de cactos, bem organizado, cujos picos impediam a circulação.

O herdeiro voltou para trás e pediu ajuda. Em vez de bombeiros chegaram os melhores biólogos e botânicos. estes disseram-lhe que o último desenho do jardim era obra de um assassino, pois o cactos eram carnivoros e o labirinto uma armadilha.

Munluxor

Faço a contabilidade de uma pequena empresa há um mês. O ano passado aconteceu-me o pior que se pode imaginar. Fora sempre contabilista. Prestava serviços para a Munluxor - a maior empresa de revenda de matérias primas.

Um dia, recebi um papel escrito, que retirei de um envelope. Mas não consegui ler porque desconfiava o que me esperava - “o seu crime fraudulento custar-lhe-á a vida”; “sentença de vinte anos de prisão por fraude”; “…”. Com o medo, larguei o papel e sai porta fora. Corri como um desgraçado e quando parei, escondi-me no vão de uma escadaria.

Esta empresa com a qual trabalho - aliás, coopero - deixa-me muito aliviado. O nosso slogan é: destruímos secretamente todos os papeis confidenciais. O que é faço é desfazer-me da papelada do meu próprio passado. Mas não trato só de mim, felizmente no meu posto, destruo toda a burocracia acumulada por várias empresas.

MATÉRIA SÓLIDA

Dizem que aos 42 graus aumenta a possibilidade de um indíviduo se tornar num criminoso.
Há algum tempo verifico que quando se chega a esta temperatura há já um número de mortes naturais considerável que dispensam a mão de um criminoso. No entanto há quem se aproveite e esconda os corpos semi-cadáveres nos tapetes derretidos de alcatrão. Aliás o alcatrão engole tudo como se fosse a lava de um vulcão a descer uma encosta.

Penso que nestas alturas toda a matéria se torna potencialmente criminosa.

Quando a temperatura desce toda a matéria solidifica e já não há perigo.