Pós-Babel

Os livros estavam doentes. Um fungo desconhecido tinha assaltado a biblioteca de surpresa. O estado da doença era crónico e fatal. A perda do conhecimento causou pânico no filósofo. Como nada podia fazer sentou-se, numa tristeza depressiva, a observar a queda do que tinham sido os seus esforços de tantos anos e que se traduziam nesta biblioteca inigualável. Permaneceu inconsolável até ao último livro. Quando este caíu podre no chão, quando mais nada existia, houve silêncio. De um salto, como quem perdeu a razão, o sábio levanta-se com um grito que se transforma aos poucos num riso medonho. Escreverá a sua versão de cada livro que tem lembraça de alguma vez ter possuído. Assim uma nova fase começa, a da biblioteca que lhe pertence, só a ele e mais ninguém!

Negar em duplo - um caso

O homem queria a todo o custo ser esquecido. Existia para criar a sua excepção, o que não existe. Preparou, por exemplo, o seu funeral de forma a que ninguém fosse convidade, a que não houvesse cerimónia, que fosse esquecido o lugar onde estariam as cinzas. Teve o azar de conceber um filho. Um dia o filho soube que o seu pai morreu. Em memória de ter tido um pai desconhecido compôs uma música que ficou famosa entre a juventude perdida de uma geração de filhos de um pai só.

O indizível

À distânica parece uma árvore: é composta por detalhes multicoloridos como que de folhas, uma rede similar a ramos que se expande a partir do centro e algo notávelmente mais colorido que em tudo se assemelham a frutos. Assim é vista pelos humanos, como árvore e desinteressados é ignorada. A natureza, desta forma, escondendo pela aparência dos códigos definidos pela história e contexto deste animal que somos, protege os que escolhe para infligir as mudanças mais radicais e profundas.

Ruído

Na hora da despedida o grande ditador organizou uma excursão às montanhas mais altas do seu país.
Estava a morrer enfermo do seu próprio veneno que tinha arrebentado no fígado e que seguia agora o curso da circulação – não duraria mais que uns dias. Era simplesmente um ser confuso, intuitivo por natureza, com boas qualidades e ao mesmo tempo com certezas diabólicas sem qualquer fundamento lógico. Sendo que as últimas imperaram durante a sua governação. Assim juntava perto de si uma comitiva heterogénia: loucos e imbecis, desesperados por seguir alguém com um forte carácter e alguns sábios com lucidez e ansiedade para estudarem o fenómeno desta figura. Chegados às montanhas o bando orientado pela figura do ditador, dirige-se às altas quedas de água que provocam um ruído ensurdecedor. Aí, o ditador discursa tendo como temas principais a ideologia politica da sua governação, os seus sentimentos mais básicos como o medo da morte, as suas mais inconfessáveis paixões por homens e mulheres, descreve depois os seus inimigos um a um, responde a provocações antigas, prevê o futuro e, por fim, ri-se – o que começou gradualmente por ser um sorriso ensaiado desenvolveu-se num ataque de gargalhadas e soluços e terminou com um suspiro.
Ele saberia certamente que nenhuma destas palavras estava a ser realmente ouvida, apenas imaginada na cabeça de cada um. No duelo final com a natureza esta tinha-lhe ganho.

Repuxos

A água faz um desenho rectilíneo quando cai da torneira e uma curva esbatida quando é vertida de um copo para outro, uma curva acentuada quando corre de uma mangueira apontada para cima, intermitente quando cai na chuva, com pressão quando há uma fuga.

Inventário de desenhos despreocupados da água numa cidade inteira.

Uma mulher levou-lhe um jarro a um tanque e retirou-lhe um pedaço. Chegada a casa bebeu-a e a restante comeu-a num cozido.

A água seguiu o seu caminho pelo organismo fora – novos desenhos se esboçaram nesta nova cidade.

A ausência

Comprei tudo aos pares. A dois parecia tudo mais simples, mesmo não havendo mais ninguém. Mesmo que nunca houvesse a outra pessoa. Aos poucos a nova casa ficou arranjada para duas pessoas. A primeira noite senti-me acompanhada. A verdade é que os objectos, comprados a dois, me faziam companhia. Eram toalhas, pratos, talheres, almofadas, etc, e todos realmente me faziam companhia. Acreditei mesmo existir a dois e do escritório ligava por vezes para casa. Nunca ninguém atendeu porque estava concerteza também no escritório. Levei muitas vezes flores, pedi para sair mais cedo para ir com ela ao médico, para encontros românticos. Passamos anos felizes. Mas a vida tem destas coisas e um dia um terramoto partiu tantas das coisas que lhe pertenciam deixando as minhas intactas. Descontinuada a nossa hostória.

Interpretação tola

Um monge plantava as mais belas e fortes árvores para conversar com a obra de Deus.
Num inverno rigoroso foi chamado à parte por outro monge que, munido de um machado e prestes a abastecer-se, lhe perguntou se comia o que plantava, se vestia e se abrigava com alguma daquelas árvores. Ele respondeu que não era esse o seu objectivo - nem estar gordo, nem mais quente, nem mais cómodo. O outro monge foi-se embora com um encolher de ombros. Talvez, entre os monges, o Deus não seja o mesmo, nem as mãos iguais.

Frinchas

Um monge dedicou-se à beleza da terra plantando graciosas árvores de espécies exóticas num terreno cedido pela ordem a que pertencia. A terra fazia vingar as árvores, as árvores faziam crescer os ramos, os ramos suportavam alegremente os frutos e as flores. A população defendia a terra que o monge plantava e orgulhosamente mostrava-a aos estrangeiros, os estrangeiros falavam desta alegre porção de terra com enternecimento e inveja de não pertencerem a uma igual. O monge era assim gratificado, mas não tardou a ser repreendido por se agarrar demasiado à terra e foi destituído da parte que lhe tinha sido cedida.

Assim o monge não teve outro remédio e meteu-se num buraco.

Luz que parte espadas

Um monge recluso numa floresta já tinha visto uma luz tão forte que partia espadas, já tinha falado com os mais ferozes lobos, já tinha escutado os lamento de uma rã, faltavam-lhe ainda algumas surpresas. Correu então para um abrigo numa cova e contemplou a escuridão. Mal os olhos se tinham habituado não havia ali paz – todas as sombras o distraiam. O monge estava exausto e fechou os olhos, começou a observar o seu interior e ficou ainda menos tranquilo – os intestinos falavam-lhe com grunhidos que não entendia, a circulação era ruidosa, uma tortura. Saiu do abrigo bem disposto e aliviado.

ABCD...

Um escritor puxa os cabelos de uma máquina de escrever.
A máquina arrepia-se a cada puxão e murmurava poemas nocturnos muito tristes.

A cauda da Estrela

Um faquir contempla uma bela mulher iluminada que lhe diz:
“ se tu soubesse para que lado está a luz não eras um faquir.”
O faquir sabe que a mulher tem razão e vira-se para o outro lado.
A mulher comenta consigo mesma:
“ o faquir é um tolo, a luz está atrás de mim”.

Luz brilhante

Um faquir sofria horrores quando se aproxima uma mulher que lhe propõe trocar de posição. E disse-lhe para o convencer: - “Nem os teus caminhos são penosos, nem os meus os mais correctos”

O faquir aceitou. Travada a experiência viu a mulher num mercado sentada em picos e propôs-lhe reverter a troca.
Disse-lhe então: - “Nem os teus caminhos são os certos, nem os meus penosos, assim como assim, cada um segue o seu”

Liderança

O velho capitão de um navio experiente no mar e a liderar a sua tripulação saltou para um mastro e subiu ao topo. Gritou bem alto: “que o mais tolo de vos me indique o caminho para dispersar da minha ideia o fim que eu tão bem conheço”.

Brilhos

Um comboio seguia de noite o seu caminho habitual. Os passageiros estavam acostumados à viagem e confiavam no comboio. E este fiava-se que sabia onde ia, pois o seu caminho estava há muito traçado pelo suor de muito homens que por ele tinham sacrificado a sua vida e a das suas famílias. Assim os homens confiavam o seu destino a outros homens por intermédio das suas construções.

Este comboio era eléctrico, bastante moderno e os passageiros estavam tranquilizados pela modernidade do engenho. Quando o sistema eléctrico sofreu uma avaria, deixaram de ver as estações onde apeavam e assim os homens confusos perguntaram-se uns aos outros qual a sua estação para saberem onde sair - mas nenhum sabia. Então perguntaram ao comboio. E este manteve-se em silêncio.

Rocha

Um homem estava sentado numa rocha que se despedaçou e que se fez ao mar.
A rocha entrou pelo mar dentro à deriva aguentando a influência do temperamento da água agitada. Descansou quando viu corais e a eles se juntou. Quando chegou a hora de partir verteram lágrimas que se confundiram em sal. Voltou ao seu caminho anexando não só com um homem como também uma mulher, peixes, moluscos e algas variadas. Ainda se agarrou aos destroços de um navio. Mas fora em vão.

Séculos passados, quando chegou à costa era uma grande rocha onde estavam fundidas as marcas da viagem. Era agora sólida, incorporando muitas vidas, mas jamais dali saiu. Um dia um homem sentou-se na rocha e uma parte dela fez-se ao mar.

Criar memória

Aconteceu de novo, cada um separava-se e prosseguia o seu caminho até à próxima reúnião daqui a dez anos. Tudo o um tem, carrega-o. São as capacidades de utilizar modelos orgânicos. Os orgânicos crescem e aprendem com as pessoas ainda crianças. Abrigos e outros dispositivos para trabalho, lazer e subsitência transformam-se, adaptam-se e acompanham cada individuo durante a sua vida. Desde o Grande Gelo que os abrigos são sempre individuais embora possiveis de partilhar mementâneamente. Cada um tem consigo o necessário, o resto está disponível, sempre que preciso, à disposição de todos. O mesmo se aplica para o conhecimento. Estes que se separam agora pertencem a uma grande família dos que vieram do mesmo lugar de criação. A sua vida é viajar e depois de um cicli de dez anos voltam para não se esquecerem de quem cada um é na sua forma física.

Desistir do que é inevitável

O passado surgia em pormenores deixados pelo desleixo da remodelação urbana. Eram todos velhos naquele lugar. Todos menos o espectro, que era nova, jovial, quase uma criança. Houve quem desse de comer aos pássaros em tempos em que os havia. A população insiste em não largar a vida e a única que por acidente a conseguiu largar tornou-se este espectro. Nestes dias não se dá comida aos pássaros, dá-se conversa ao espectro.

De novo

Despertava já de um sono induzido por processos hipnóticos. Foram vários dias seguidos e eu sentia a distância da realidade. O meu problema foi não dormir e depois não conseguir dormir e a seguir deixar de pensar no assunto. A causa era simples, observava o nascimento, crescimento e maturação do que seria o meu companheiro de trabalho, guardião dos meus documentos, ligação com o mundo virtual e muito mais. O que eu quisesse este seria. Então precisava de o cuidar. Esta era a segunda tentativa. Na primeira, era eu jovem imatura, adormeci. Resultou um companheiro desleixado e lento. Distraía-se com qualquer outro, companheiro também desleixado de qualquer amigo. Este será diferente, os progenitores, três categorias diferentes combinadas, foram companheiros de vidas inteiras de um espírita, de uma viajante e de um escritor. O companheiro está ao meu lado e dorme ainda. Hoje iniciamos a caminhada.

Um mundo induzido

A textura era tão descritiva que sentia um impulso forte em tocar. Ouvia o murmuro texturado dentro de si, a origem da textura era sonora. Virou-se rapidamente e deu uma volta sobre si de forma a apreciar toda a beleza do mundo que criara ainda agora como envolvência daquela textura. O som compunha uma paisagem utilizando os volumes da paisagem real - a apreendida com os outros. O som, motivado pela imaginação, e que ás vezes era quase silêncio, descrevia tudo que somente os olhos viam.

Opostos negros

O gelo cobria a água do lago e através da sua translucidez viam-se as plantas e alguns peixes congelados.
Estes, os que foram feitos para serem congelados, ainda assim vivos, observavam também os seres que estavam para além da superfície, do outro lado da translucidez. Navegavam até ás profundidades mais escuras e voltavam à superfície para ficarem quase cegos de luminosidade. Quando olhei com atenção para as algas que flutuavam abaixo do gelo encontrei dois olhos que retribuiam o meu olhar. Em espanto por ser observadora observada olhei ainda com mais curiosidade em confirmação. Espelho de mim não era. Outro concerteza e talvez um oposto. De tão incrível movi-me e o outro seguiu-me. Movendo o corpo não movi os olhos. Durante dias congelei na miragem de um outro, oposto negro de mim.

Convicção profunda

Um corte profundo marcou a pele com uma linha de sangue. Uma faixa muito recta abriu-se, como uma boca de baton vermelho à espera de receber. Dentro colocou, com a ponta do dedo, um fio de cabelo e com dois dedos da outra mão, como pinças, fechou os dois lados da abertura. Fechou os olhos e em dor pediu o desejo.

Mapa de um processo perdido

Cada desenho significa uma etapa do seu caminho. Deixa os desenhos como rastos da sua passagem como posts nos prefiles dos seus amigos. Não havia aparenteente razão não havia comentários posteriores. As datas marcavam as etapas. O progreeso era lento e o fim tardava deasiado.

Incondicionalmente

De mochila, com mantimentos para um mês duro de Inverno pela frente, caminhava em direcção ao sinistro escurecer da floresta de um país muito frio e pouco habitado. Não trazia qualquer elemento que a indentificasse e sabia que as entidades locais não tinham as técnologias necessárias para a seguirem por satélite. Precisava de desaparecer por uns tempos. A sua idêntidade virtual era demasiadamente bem conhecida pela população do mundo inteiro. Qualquer forma de idêntificação poderia ser reconhecida por um qualquer dispositivo móvel. Regularmente anónimos aproximavam-se para lhe fala da sua vida pessoal ou somente tocar as suas roupas. Muitos insistiam em ser seus amigos sem perceber que a idêntidade que conheciam era um outro lado dela que não aquele que estava ali no mesmo espaço físico. Muitos escreviam-lhe amores incondicionais e prometiam noites muito criativas, obscenas, impossiveis até. Escondia-se agora para ser esquecida.
O som do escritório interrompe perturbadoramente. Uma chamada entra. Ser secretária tem disto. O jogo das celebridades terá que ficar para mais logo quando terminar o expediente. Hoje o objectivo é esconder-se. Um passo no plano para voltar em glória maior e sair da floresta levada por uma multidão de fãns que a querem a todo o custo.

Em aventuras

Na despedida um sapato olha para o pé num vislumbre de saudades de ser útil o seu tempo. Beija-o por todo enquanto se afasta. O outro sapato do mesmo par faz o mesmo. Vêm os pés num afastamento que parece a eternidade.
Ambos tentam ainda e mais uma vez prolongar o evidente. Fica o calor e o cheiro que os atormenta e conforta ao mesmo tempo. Os pés continuam novas aventuras pelo chão, texturas, temperaturas e materiais desconhecidos.

os riscos da natureza

Jamais deixou o vulcão constantemente a ameaçar erupção. Nunca de lá saíu. A cada minuto corria perigo de morte. Mas sabia que a vida já em si era um risco. Sim, literalmente um risco, visto o artista era um ponto. Um dia, a artista que morava no vulcão, pensou demais no propósito de ser um ponto e resolveu fazer riscos em círculos (até então fazia riscos em direcções aleatórias). As primeiras tentativas foram inúteis. Muitos meses depois conseguia fazer circulos em volta da cratera. Muito em breve investigadores e ciêntistas de vulcões encontraram as marcas deixadas mas nunca a artista (porque ser um ponto é ser invisível). Também não procuravam ninguém. De tal forma estavam concentrados no que viam como um fenómeno único que não equacionavam a sua construção a outro senão à própria natureza das coisas. A artista morreu na invisibilidade da sua vida sempre à beira do abismo.

A vida virtual dos animais embalsamados

Uma avestruz, à janela, tira o seu chapéu a quem passa na rua. Estava embalsama há uns anos e disponível para visita das dez da manhã ás sei da tarde. À hora certa abria-se a janela e ela lá lá estava. Sofria de entorces por não poder dobrar o pescoço de vez em quando para o enfiar na terra. No entanto os musculos e penas das asas, de tanto retirar e pôr chapéu, gastavam-se mas em nada melhoravam. O rítmo contínuo, a actividade regular era mecânica. Valia-se contudo de uma habilidade de comunicar com sons inaudiveis com o mundo dos embalsamados. Este é um mundo que existe numa dimensão oculta (entre muitas) e que se desenvolveu entre as multidões de animais que insistem em não largar os seus corpos mesmo depois da transformação que sofrem. Embora aborecidissima da sua vida, o que vemos dela se espreitarmos pela janela, a avestruz estava contente e tinha até um namorado lagarto que morava dois andares acima.

Inflamações

O tampo da mesa era de mármore onde a mãe cortava um pedaço de carne.
Tampo e carne tinham a mesma textura: o conjunto parecia homogéneo: mármore e carne, ambas as superfícies raiadas de branco.
Assim que o rapazito fazia a associação desligava-se daquela realidade e transportava-se para a infinidade de paisagens possíveis de ver riscadas com o branco gravado nas duas superfícies.
Paisagens campestres com árvores bem recortadas e montanhas aguçadas, caminhos desbravados e por vezes um ou outro animal. Outras vezes calhava de ver paisagens marítimas: mares revoltados a espumarem-se de tão zangados que estavam, barcos encalhados e um céu carregadíssimo de nuvens cerradas.
Quando lhes tocava desfalecia caindo de um falésia ou de um gigantesco abismo.

Barragem

Uma parede intransponível abre-se ao meio para fazer verter umas águas que o corpo continha. A água foge-lhe. Com os braços de betão tenta segurá-la. Incapaz de o conseguir, fecha-se de novo. Ninguém podia dizer que não tentou porque ninguém lhe sobreviveu.

Natural dispersão

Uma vez uma estrela do mar foi ao encontro de um rochedo e partiu a simetria - arrependida, deixa-se levar pelas ondas até à areia - pois, sabe que o seu maior desgosto será a nascença de outra estrela a partir da parte que deixou para trás - sem que tivesse tempo sequer de solidificar como estrela que era.

Marcar o tempo

Começou a caminhada nesse dia de Inverno. Pelo caminho encontramos ambos muitos animais, entre gatos e cães, vacas e cavalos, com quem partilhamos a comida e a dormida. Enconramos muita gente, uns mais importantes, outros mais simpáticos e outros menos. Anos depois chegamos. Tinhamos marcado o tempo da caminhada, a direcção mas não o lugar. Marcamos justamente a meio e assim foi.

O esforço dos dias

Na janela pendrava-se um senhor de peito ao léu que chamava por alguém. Um minuto e meio mais tarde apareceu alguém a olhar para a janela mas o senhor já não estava. Do desencontro não há resultados a declarar. Se encontro houvesse haveria concerteza. É nestas incertezas das possibilidades que descançam os Domingos, feriados o outros dias solarengos. O calor é um luxo de meio ano, quem sabe improvisá-lo aprendeu por insistência e essa não é coincidência.

Ser - vivo

Um livro dá nojo a quem acaba de lhe coser a barriga.
Passada a convalescença torna-se num lindo ser vivo.

Situação

Quando os cães ladraram, acendera-se uma luz dentro de casa. Pensando que se tratava de um gatuno o dono disparara uns tiros para o ar.
Não havia motivos para preocupações - na cama a filha mais nova começara a ler um escritor árabe e este tinha aparecido entre fumaças para com ela se encontrar.

Sono

Chegados, ainda que atrasados, ao jantar literário, desculparam-se dizendo: “...e se não fosse aquele rato da biblioteca não sei quando é que despertávamos da estante”. Vejam só há quanto tempo ninguém lhes tocava.
Felizmente iam a tempo porque o jantar que nunca tinha terminado.

Sol

Estava um dia de sol maravilhoso.
Acabava de saltar de uma gaivota – um daqueles barcos pequenos de rio – e socorrer-me de N(ie) para dar o salto corajoso para terra.
Sacudindo as mãos para limpar a sujidade e activar a circulação olhei para P(rou) para saber quantas horas ainda podíamos ficar. Ele disse-me que o dia ainda ia a meio. Aos três ali reunidos faltavam-nos aventuras – N(ie) e P(rou), ambos debruçados na margem do rio reflectiam sobre a transparência das águas: um na vontade da natureza se transformar em diversidade e o outro a senti-la até à ponta dos cabelos, por isto, naturalmente que não estavam muito faladores. Foi então que pensei em chamar M(us) para nos entreter – se bem que ele seja extraordinariamente mal disposto – e senti-me entre as pedras a ler um dos livros, duas ou três linhas bastavam, e lá veio ele. Todo ele estava envolvido em sensualidade e esta dava-lhe para divagar. Se bem que o tivesse imaginado mais feio estava encantada e deixei-me ficar. Quando anoiteceu os outros já tinham partido. M(us) também se abanava com frio. Procurei na mochila de viagem quem mais tinha trazido, mas sem luz, não despertei mais ninguém.

Jasmin

Mulheres-criança de cabelos longos, pele branca e roupas pretas, ainda que magras, decoram o café de juventude. Os demais são senhoras velhas de cabelo branco, unhas vermelhas e senhores de nariz vermelho e fato preto. O café é velho e os empregados estão vestidos de branco. A luz é fraca e amarelada para manter à distância as modas e os gostos estridentes. O pianista chega ás 7 da tarde. Entra pela porta da cozinha e vai directo à mesa do canto onde se senta desde sempre com a avó. É tão velho quanto ela. Tomam chá juntos. De seguida vai se sentar ao piano e confessa-se tímidamente, no seu papel de Chopin de café, ao rapaz de cabelos loiros (pintado) encaracolados, que se senta com os amigos nas mesas do meio e que graceja e se ri ainda mais alto quando o piano toca. Quando este homem, mais novo do que a idade que tem, se ri, o piano quase se cala para o ouvir.
Um dia, igual aos outros. O piano toca. A avó escuta. O rapaz loiro não está - excepcionalmente. O piano sentiu-se alto e de voz forte elevou-se do chão e saíu, junto com o banco e com o pianista, janela fora e para a rua na direcção do céu, como acontece com os balões cheios de hélio.
Mas o nome dele era Jasmin.

Boutique

Uma montra como uma moldura, enquadra formas.
Diante de uma montra pude assistir como se representava a figura humana - coisa que apenas muito lentamente acompanhava nos Museus.
Nesta montra, diante da qual parei, assisti à diferença do “olhar para nós mesmos”.

A menina que apareceu na montra vestiu uma manequim como que veste um morto passados dias. Experimentou de seguida tirar a peruca da cabeça para voltar a colocá-la. Estava colada, mas saiu com facilidade.
Percebeu então que o cabelo estava seco. Embora não se percebesse se era verdadeiro ou artificial, era certo que estava irremediavelmente perdido dada a secura e a rigidez dos fios dos cabelos dando uma má impressão ao conjunto.
Pousou então a peruca para pensar enquanto articulava mais uma vez os membros do manequim.

No final a manequim ainda estava careca. Era preciso remediar esse aspecto. Então agarrou num cachecol e envolveu-o à volta do pescoço e com uma das pontas deu mais uma volta à cabeça. No final destapou uma pequena franja de tecido que cobria a testa.

A manequim tinha um cachecol verde a fazer de cabelo.
E ao mesmo tempo um agasalho para o pescoço. A menina estava satisfeita porque o resultado era moderno.

O que a menina fez a esta manequim repetiu, se seguida, às restantes.

Voltas

Na época festiva é natural as saídas apressadas à rua. Não calha de ser sempre para fazer compras. Muitas vezes é só para observar a magia das luzes que brilham mais forte que a luz do dia e mais ainda que a luz abatida da noite.

Às vezes parece-me que quanto mais gente sai à rua mais a luz brilha. De cima, segundo a vista de um pássaro ou do interior de um avião, tenho a certeza que esta cidade, nesta altura, parece um grande retalho de tecido dourado cheio de reflexos provocados pela gente que passeia de um lado para o outro.

E quem sabe, se não é este movimento, esta fricção de pessoas que levam consigo objectos, que produz, afinal, toda a energia e a luz que ao mesmo tempo a excita nas primeiras saídas desta época festiva?

Tempo

O professor termina a sua aulas e todos sabem que não haverá uma próxima. É a última da sua carreira.
Os alunos sabem disso tão bem como o professor. Não é que, na sua maior parte, gostem dele especialmente. Tem sido concerteza um bom professor mas não excepcional. Os alunos levantam-se, dirigem-se à saida. O professor pede para esperarem um minuto, tem uma última coisa a dizer. Os alunos sentam-se, o professor enche o peito de ar, os alunos esperam as suas palavras, o professor abre a boca. O tempo suspendeu-se.

Os Alus

Os estados alucinatórios há muito que são induzidos pelas cores e sons. As drogas ingeridas, de uma forma ou de outra deixaram de ter interesse há mais de duas décadas. O sistema imersivo provoca uma experiência muito mais enriquecedora. A indução e o seu efeito são a mesma coisa. Os programadores destas experiências, na maior parte mulheres, fazem-no pelo gosto de controlar e pela popularidade entre os Alus associada ao nome. Os Alus são os que se perderam no sonho, vivem-no e não saem de lá, afinal o mundo cá fora pede esforço e constante comunicação com os outros. Estas mulheres têm um poder incrível junto dos Alus. Este fenomeno tem sido vastamente estudado por especialistas em estados psíquicos. Pensa-se que será tão vinculativo do que é a sociedade no futuro como foi no passado o LSD.

Na margem entre antes e o depois

No limite onde tudo é incerteza, encontrou-se um homem e um cão mítico.
Uma história antiga conta que um canino, maior e mais feroz que um urso polar circunda a região alimentando-se de padaços dos que vivem sem interesse. Come de pé, o corpo sustentado nas patas traseiras e vomita enquanto come com qualquer pedaço de mau sentimento.
Neva e o homem tem pressa de chegar a casa. Para prosseguir tem que passar pelo cão. Este por sua vez quer a mulher que cheira chegará a ele, por aquele mesmo caminho, em alguns minutos.
O cão é um mito e sabe disso, e portanto pedir passagem ou deixar passar está fora de questão.

Paciência

A luz estava fraca. Mas foi suficiente para que ele desse conta que alguém tinha entrado no quarto e que se tinha colocado atrás de si. Deu então uns abanões no ar com o tronco para trás e para adiante a ver se intersectava o gatuno, mas nada. Ainda assobiou com força a ver se o ar o gelava e o tipo soltava um ai. Mas também não funcionou. Definitivamente não queria dirigir-lhe a palavra. Não se humilharia assim para falar com um desconhecido que não teve o senso de o saudar. Também não lhe queria mexer muito porque não sabia de onde vinha, de que é que era feito a sua matéria (carne, osso?), nem a sua natureza relativamente à possibilidade de se mostrar vingativo. E depois, não sabia se tinha ido até ali simplesmente de boa fé. Assim sendo melhor era deixá-lo. Então começou a fazer de conta que estava sozinho a ver se outro se cansava. E parece que ficaram os dois juntos durante muitos anos, até que um teve que ganhar ao outro em termos de paciência.

299

Duas raparigas estavam sentadas na mesma mesa com os seus cadernos abertos.
Abriram-nos e folharam-lhes as páginas.
A superfície destas estava preenchida quase por completo com texto escrito a lápis.
As duas raparigas começaram a comparar quem tinha escrito mais e quem o tinha feito melhor. De repente assobiaram-lhes da janela que estava aberta e ao sentirem-se assustadas com o assobio deram conta que tinham estado a dormir.
Cheias de medo pousaram os cadernos e foram para baixo de uma árvore esconderem-se - uma da outra e de si mesmas.

O texto dos cadernos fez o mesmo, só teve vontade de subir uma linha e fugir com elas.
Escreverão nos troncos de madeira fresca?

Quando passamos por aquela rua lembrei-me perfeitamente de ter ali estado.
Continuei a segui-la com o olhar através dos vidros do carro, até que viramos numa curva e perdi-a de vista. Depois seguimos em frente, apanhamos mais adiante outra curva, demos uma volta e voltei a vê-la, a rua dos meus pensamentos. Depois perdia-a de vista. De seguida, sai do carro para procurá-la a pé. E assim foi.

Pensar colectivo

Destemida, a água entrava na sala, pela porta que vinha do corredor. Estava lá reúnida toda a família a almoçar. A água apanhou todos de boca cheia. Num instante inundou tudo e partiu as janelas. Para a rua saiu a água e levou consigo as cadeiras e tudo o mais que encontrou. As pessoas tinham, cada uma por si, encontrado alguma coisa à qual se segurar. Qualquer coisa ou alguém. Os que quase saíram janela fora com a água eram nessa altura agarrados por alguém. Não havia mulheres primeiro nem crianças perdidas. Todos se mantiveram dentro da sala, agora vazia, por si.

Culpa

O desejo mata. Sabendo disso, M. contava-se um momento passado todos os dias de manhã para o transformar. Podemos transformar o passado de facto. Está provado que construimos as nossas memórias e por isso M. aos poucos conseguiu realmente acreditar naquele momento sem desejo. O momento não a matou (aliás, morreu feliz e de idade avançada) de facto.

Aragem

Estava escondido atrás de uma cortina vermelha e acabou por relatar a aparência do sucedido. Ele contou que viu um pássaro solto a voar pela sala, que a cada esvoaçar de asas crescia. Pensou que este se queria libertar. Mas as portas estavam todas abertas. Foi então que o pássaro, já com uma escala assustadora para a sala se tinha entalado numa janela. Tinha finalmente tentado sair, arriscando a vida tarde de mais.

A única dúvida que a todos os que ouvimos ficou foi esta: onde estava a gaiola que o prendia?

As ervas daninhas não nascem sozinhas

A mais bela estampa que para ela, algum dia, tinha merecido a pena ser rasgada de um livro da biblioteca tinha sido a menina a comer um pássaro de Magritte. A boca ensanguentada lembrava-lhe qualquer coisa de muito delicado. Lembrou-se de copiá-la e de a passar para uma pintura sua e dizia a toda a gente que era dela a ideia de toda aquela pose, desenho, associação de cores e luz. E de facto ela acreditava tão profundamente que era já uma jovem pintora de reconhecido nome, com pinturas reproduzidas em todos os livros de arte existentes nas bibliotecas de todo o mundo que quando não acreditaram nela, pela primeira vez, ela ficou muito abatida, como se lhe estivessem a magoá-la com força. Nunca mais acreditou e nenhum pombal, gaiola ou ninho foi suficiente para se esconder.

Exemplar prudência

As férias à beira da praia naquela instância balnear sempre foram inesquecíveis. Ela lia livros como quem quer viver tudo o que lhe é devido e ainda mais do que isso, queria explorar os limites da própria vida não se contentado com uma existência confinada à sua simplicidade. Assim sendo, cada verão vivia um tempo, um espírito, um cenário e todos os personagens de um novela. Era muito feliz e contagiava-nos. Era impossível ficar-lhe indiferente, tal era a crença que ela tinha no que era e agia. Até que um dia houve boatos, coisas que se diziam que ela tinha feito. Deixei de a ver e, claro, o nosso grupo deixou de frequentar aquele sítio. Ela era o nosso elo de ligação, a nossa razão para lá voltar e fingir que também acreditávamo-nos em qualquer conto por ela interpretado. Quando voltei a ver as fotografias, através de slides, numa daquelas pequenas máquinas com uma lâmpada por trás, retirada do fundo de um baú empoeirado, percebi que tínhamos vivido muito mais do que eu suspeitava. Na nossa inocência tínhamos revisitado a mais decadente cultura e percebido a relação desta com todas as proibições sociais. A nossa amiga tinha sido prematuramente eleita para nos dar o exemplo.

União secreta

Um contracto secreto tinha sido deixado desavergonhadamente em cima de uma mesa. Todos os membros da família passaram pelo papel e nem repararam na sua existência. O contracto ali se manteve à espera de atenção. Aos poucos toda a família assinou o papel sem ler o que estava escrito. O rapazinho, membro mais novo também. No final o contracto desapareceu e todos o procuraram.

No escuro encontra-se variedade

Contamplava demoradamente cada detalhe do seu sentimento. Assim, tão intensamente absorta, passava dias. O sentimento oposto atacou-a, de repente, numa certa noite, ainda cedo. Na manhã seguinte, quando o dia nasceu, o mundo era cheio de nuances sentimentais.

Retoque

Os iluminados ardem na própria chama.

Central

Os iluminados aquecem-se na chama das próprias cabeças.

Rosas murchas

Cada cabeça é uma paisagem.
Haverá paisagens menos naturais, menos terríveis, sombrias, obscuras que outras?
Em cada sítio chove, neva e faz sol, tais são as condições das estações do ano.

Por isso nego-me a julgá-los quando as cabeças estiverem prestes a cair.

Vontade

Nas dunas, as flores morrem sempre duas vezes, antes de morrerem de vez. A primeira é quando eu quero, a segunda quando não quero.

Um grupo de pessoas encontraram-se num porto marítimo para auscultar o mar. Se eu lhes apontar com o dedo a direcção para onde querem ir elas atiram-se para se afogarem. Se eu não o fizer elas morrem mesmo.

Energias

Algumas pessoas ainda sabem escrever. Vagamente, lembram-se dos desenhos cujo significado é o seu nome. Algumas pessoas, em maior número, sabem desenhar. Especialistas tentam manter intactas as cores e os desenhos da escrita. Os documentos em formatos digitais também são complicados de manter. Sistemas electricos foram implementados em casas que ainda existem com as estruturas necessárias. Como será no futuro quando iniciarem a implementação dos sistemas de comunicação baseados em energias internas do corpo? Deixaremos de existir como uma mente colectiva, como agora, enquanto utilizamos dispositivos movidos a energias externas e comuns?

Multipersonalidade

A foto de apresentação mostra uma rapariga jovem, de cabelo loiro e traços ligeiramente asiáticos, com um ar feliz e sorridente. É M. A. A. e trabalha nos intraserviços de assistência. M. contratou a nova empregada há dois dias. A anterior sentia-se muito desconfortável por nunca ter visto M. e n entanto sentir a sua presença em toda a casa. A nova empregada já está habituada pois esta é a segunda casa onde trabalha com os mesmos hábitos. M. tem trezentos amigos e uns dois mil colegas de trabalho. Quatro dos seus amigos são uma espécie de namorados. Todos pensam que mora em Tókio mas a sua casa é na China, numa vila de pescadores. T. um dos namorados hoje prepara-se para se lhe declarar. Para tal enviou já um presente que deve chegar a M. ás duas horas certinhas. Quando chegar, ele estará já a conversar com ela e poderá fazer a sua proposta. O que T. não sabe é que a empregada (muito mais experiente do que o esperado) não tem idêntidade própria, ou por outra, tem, mas como é procurada, não a pode usar. Por isso, a essa mesma hora, estará contactável como M. É um caso, de entre os mais recentes, de multipersonalidade provocada e onde M. é inocente.

Coinciliação

Uma casa assustadora e um pianista viviam juntos. A casa ocupava mais espaço que o pianista em termos concretos, mas a música do pianista sacudia a casa e ainda ia mais longe que o seu espaço. Enfim, no início o pianista encontrou algumas contrariedades, mas com o tempo foram ultrapassadas.

Terra

Num aldeia situada no centro da Europa, de dentro de uma vala comum, saíram mulheres e crianças com o passo ao contrário, que procuravam as suas casas e reclamavam as suas vidas. A população acordou com esta memória que desfez abrindo a vala e deitando para dentro os homens ainda vivos e atirando terra por cima.

Tábua

Reconstruiu o seu navio no meio do mar e inventou a viagem.

Promiscuidade

Os galhos do salgueiro, como fios, caídos com graciosa ondulação, entrecruzavam-se. O vento trazia para companhia do salgueiro tabém as folhas, vindas das árvores vizinhas, e de vez em quando uma sementa, um plástico ou um papel. O vento, elemento da natureza ousado e pouco dado a convenções, forçava a aproximação e o toque entre coisas totalmente desconexas. Enquanto que a maior parte das coisas tocadas pela força do vento não se alteram, simplesmente se magoam, algumas excepções existem de combinações com repercursões evolucionárias.

A casa que se manteve escondida

A música cobria todos os outros sons da casa. Nada mais so ouvia. Um ladrão pensou em entrar, era Verão e as janelas abertas e rés-do-chão estavam a convidar. Olhou pela janela dentro e não vou ninguém mas nada havia para roubar. A música vinha de algum lado mas não daquele quarto vazio. Entrou janela dentro. Procurou algo e tento não encontrar ningué. Quando deu por si havia luz mas não conseguia encontrar a entrada da luz, parecia que a janela estava sempre no quarto ao lado, a música estava, mais perto ou mais longe, pela casa toda. Um ladrão que não ladrava nem de outra forma deixava que se notasse a sua presença, logo não prendeu a atenção do que estava dentro da casa.

Experimento

A palavra "maravilha", como todas as outras palavras, têm significado em conjunção e em relação com as outras da mesma frase ou do mesmo texto. Também depende, a sua intensidade, da situação. Isto ocorre com todas as outras palavras mas esta é a que eu mais gosto de usar e daí a razão de ser o exemplo.
Um dia reparei de que entendia melhor as expressões do que as palavras. Acho que tentei algumas vezes até comunicar da mesma forma mas demais intervenientes no diálogo não percebiam nada do que eu dizia. O código sem palavras era usado no envio da mensagem mas não funcionava na recepção. Com a ajuda de um amigo surdo inventamos uma máquina de traduzir expressões em palavras. O dispositivo em si foi um sucesso. As experiências levadas a cabo confirmaram o que previamos: as expressões são menos subjectivas e são contudo muito mais complexas. Deitamos o projecto ao abandono visto que foi um fracasso com os demais (mesmo entre os surdos). Quando fomos entregar os planos e o protótipo aos serviços que arquivam experiências faladas encontramos uma armazém imenso de máquinas exactamente iguais.

Luva

Estava frio.
Uma luva pesada pousada numa mesa assemelha-se a uma mão morta abandonada.
No entanto foi deixada ali em cima da mesa sem essa intenção - de parecer uma mão morta. E para além do mais era precisamente isso que parecia - uma réplica de uma mão morta acidentalmente colocada ali.

Comportamento

A presença carismática de M. naquele jantar não deixava margem para dúvidas - dentro dela crescia um ninho, uma espada e um anzol. Analisava-a há já algum tempo, de outros contextos e situações. Tenho este hábito de ver à transparência certo tipo de opacidades e por isso vi-a sem que ela notasse.

A forma com se relaciona com os restante convidados circunscrevia-se contudo ao uso elegante da espada cujo o gume trespassado sacudia a vítima por dentro, do anzol que se enganchava no peito e as submetia sem perdão a todas as suas vontades e raras vezes olhou para alguém com vontade de estabelecer um laço de comunhão.

Tem um comportamento social estabelecido. Uma cegonha não o faria tão bem.

Branco

A vontade de se inscrever na vida era verdadeira e forte e por isso consumia todo o espaço de qualquer texto por si escrito. Os espaços entre letra, entre palavras, entre linhas, entre páginas, e por aí fora.
Mesmo que em termos absolutos já não existissem espaços em branco, ela encontrava sempre mais um bocadinho com o que se ocupar. E se ainda assim apanhava um bocadinho mais de branco, visto à lupa, agarrava uma pena de escrever no arroz e escrevia.

Cair

Embora não pareça as árvores andam em manadas como os elefantes. Percorrem longas distâncias até encontrarem um sítio que lhes interesse. Quem sabe disto, sabe também que muitas árvores vão ficando para trás.

Tapeçaria

Desde muito pequena que a deixavam entretida toda a manhã e tarde em cima de um tapete persa - uma imitação de um tapete original da Pérsia. Fugia ao comportamento normal das crianças ao não se interessar por nenhum brinquedo ou objecto em particular. Ficava ali, só com o tapete. Estava porém muito concentrada num jogo qualquer que ninguém entendia. Fazia um ar compenetrado e corria em volta de si mesma como os gatos quando procuram agarrar as caudas - sempre em cima do tapete. Quando cresceu e o tapete estava velho e gasto, colocaram-no no lixo.

A palavra de Deus estava a ser esquecida - pensou.

Deus espalhara fragmentos de texto por todo o lado. O mundo significa - pura e simplesmente significa em todos os lugares.

Em loop entre opostos

Na Índia olha-se um pôr-do-sol branco e depoir amarelo, alaranjado, muito intenso. É muito bonito.
O sol na Lua não se põe. Na Lua, caminha-se no sentido contrário ao do sol até este desaparecer. O sol é um ponto constantemente branco no firmamento preto. Em tudo muito semelhante à luz do buraco na parede do meu quarto escuro. Quando me aproximo e espreito pelo buraco da parede vejo do outro lado um multicolorido sem formas. Muito desficado e multicolorido, tal como em volta do sol. Deste lado da parede onde me encontro agora, tenho s pés na terra e onde tudo é colorido. Do outro lado da parede anda-se na lua, é escuro.

Ver no escuro

Um ser invisível passou o detector de metais do aeroporto ao mesmo tempo que o meu companheiro de viagem. Senti o frio da proximidade do ser que não tem sangue mais tarde junto aos perfumes (é um frio diferete do ar condicionado que não é fácil mas possível para mim distinguir). Iniciamos entçao uma conversa amena com alguns pontos de discurdância. Gradualmente a discordância tornou-se maior até ao ponto em que discutíamos. O meu companheiro pensou eu que falava sozinha até ao momento em que o ser invisível ficou vermelho de tão fúrioso.

Insistência

Duas canetas estão prestes a perder a paciência com uma borracha de lápis que insiste em apagar as palavras escritas por uma e sublinhadas pela outra. Entretanto, por causa da borracha, o papel desgasta-se.

Inadaptação

O grande prémio saíu esta semana a uma estudante do quinto ano de arquitectura. Era a primeira vez que jogava e nunca tinha considerar ganhar e por isso não sabia o que fazer com o prémio. Aconselhada pelos pais e outros familiares investiu o dinheiro na elaboração da sua primeira obra com profíssional de arquitectura. O edifício tomava forma mas mantinha-se sem função. Os pais falaram-lhe de uma casa para a família, uma loja ou estúdio com uma função ocupacional, de um museu como doação à cidade, etc. A rapariga continuava a planear formas. Iniciou-se a construção do edifício. Tornou-se uma construção enorme na periferia da cidade e, quando terminado, foi coberto por árvores frondosas. Um edifício completamente inútil. A rapariga, agora uma senhora solitária, (a construção demorou anos e levava-lhe a energia toda) olhava o edifício e área circundante. Tinha construido ao lado uma tenda, como que uma habitação temporária e que era a sua casa. Pensou então em dar uma função, finalmente, ao edifício como a adaptação para ser usado como a sua habitação. Tinha terminado o dinheiro.

Os dedos na garganta

Uma estátua chorava, perdida, dentro de casa. O seu dono era um velho decrépito que não lhe ligava nenhuma. A estátua começou a vaguear pela casa, a vaguear e foi asim que se perdeu. O velho tinha perdido tudo o que alguma vez tinha desejado e possuído porque se desprezava. Tudo o que era exterior a si via como maravilhoso (o oposto portanto) e largava de tudo com desprezo. A estátua tinha se mantido na casa porque ficava sempre parada e a sua presença passava depercebida. O homem envelheceu e a casa também mas a estátua não. Esta é a situação da estátua, tem muito pouco tempo para encontrar o caminho de volta onde deveria de estar quando o homem passar a caminho do quarto.

Quando se torna visível

Os electrodomésticos da cidade, um colectivo até então desconhecido, ligaram-se, todos, ao mesmo tempo, à mesma hora. Aconteceu portanto o oposto do apagão. Pode-se dizer que aconteceu um iluminão. A cidade ficou quente, luminosa, ruídosa, atarefada. Durou cinco minutos. Depois voltaram ao silêncio os que estavam desligados e mantivera-se os que já estavam anteriormente ligados e as pessoas, nesse dia, perceberam o poder do quotidiano.

Simpatia

Uma borboleta à volta da luz de um candeeiro que pára subitamente por vontade própria. Pára e não volta a entrar em marcha. Não havia nenhuma razão para continuar, nem mesmo estava a carregar energia para continuar a ser uma borboleta.

O mais difícil de desejar

Monet pinta com a juda do seu melhor amigo que lhe segura no braço e o direcciona contra a tela.
Ouve-se o som do pincel a esmurrar as fibras do pano. Toda a manhã pintaram usando a paleta dos vermelhos.
À hora do almoço pararam para comer queijo.
Monet precipita-se sobre um banco e cai. Pede para que se acenda a luz, sem dar conta que lá fora está um sol radiante.

- Está cego porque na juventude não queria ver como viam todos, desejava alterar a visão das coisas e o truque,
a sua especialidade,
era cegar-se expondo-se directamente ao sol.

Que impressão!

Conversa de rua que nos faz perder o sentido do tempo e do lugar

Passeava pelas ruas da cidade sem dar conta por onde ía. Estava com um amigo que me contava o seu último fim de semanana, uma viagem a Espanha atribulada e cheia de aventuras. Como resposta vinda da minha profunda inveja contei-lhe uma noite de loucura imprópria, cheia de desconhecidos que eu nunca tive. Ele ficou pensativo e disse que tinha passado por mim nessa noite. Na verdade os tais desconhecidos não passavam de ladrões de jóias que tinha conhecido há umas horas e com quem estava. Não há verdade nem falsidade na ficção. Ambos estavamos felizes por partilhar aventuras.

Enquadramento e luz

À minha frente um quadro de Monet está resplandecente. Emite a luz de dez candeeiros de rua. Já o próprio Monet ao meu lado está fosco e cansado. As palavras dele irritam-me severamente. Afio uma faca para passar o tempo. Antes de sairmos para um passeio digo-lhe: - “não há razão nenhuma para não sermos amigos e ainda assim não somos”. Está cego mas não tenho pena dele. A luz que produz não sente, então ele pensa - “para quê sentir?”

Movimento induzido

A vida animada das coisas para nós não surpreende nem deixa de o fazer - existe e pronto. E para as coisas nós devemos ser igualmente um objecto de estudo da ciência do movimento universal - afinal mexemo-nos a uma velocidade surpreendente para a velocidade normal das coisas.

Lixo moderno

Da janela do meu quarto vejo os homens-do-lixo a esfregarem o lixo nas pessoas. Tenho a sensação de que nem sempre foi assim. Para ser honesta acho que esta vocação dos homens do lixo me incomoda. Mas pouco posso dizer uma vez que os coitados são rapazes e raparigas traumatizados com o falhanço das expectativas que criaram ao longo da sua modernidade. Enfim.

Um ponto que perdeu a concentração humana

Ela fez um desenho como quem escreve, aproximando-se de um ponto entre o desenho e a escrita, num espaço longínquo - difícil de caracterizar se grande ou pequeno, se branco ou a cores - onde ficou algum tempo acabando por se esquecer por lá.
Quando voltou trouxe o desenho debaixo do braço e guardou-o.

Muitos anos depois, quando o encontraram enfiado numa gaveta os investigadores da vida desta mulher ficaram estupefactos: o olhar simplesmente não parava de divagar e não se detinha em forma alguma; digamos que tinha em si um movimento - o da fuga constante à nossa absoluta compreensão das coisas, como se nos baralhasse de propósito.

A certa altura alguém deve ter dito que um desenho daqueles guardado ainda sufocava.

Prolongada

Estava sentado. Olhou para os sapatos para vê-los dizer o impensável: que o seu corpo era magro, seco e enrugado. Foi então que se irritou: “estes tipos são demais, carrego-os o dia todo para me humilharem desta maneira”. Estava o campo preparado para uma discussão entre as duas partes envolvida numa relação de dependência mutua - um homem e os seus sapatos. O homem porém não tinha mais argumentos. Calou-se.

E quando assim acontece há humilhação.

Destruição dos monumentos

Aquele arquitecto reflectiu sobre os espaços vazios necessários à construção de uma nova cidade. Era para isso necessário implodir com os mais nobres edifícios - essas construções antigas, duráveis, mas que ocupam demasiado espaço no imaginário de cada um. Pediram-lhe para explicar o sentido de uma nova cidade. Ele respondeu que a nova cidade era nova.

Fluxos

Experimentei ontem o novo transporte e gostei. Demorei metade do tempo entre a minha casa e o local, na Baixa, onde tinha combinado encontrar uma amiga. A volta, visto que o transporte vinha com menos gente, demorou bastante mais. Na ída havia mais gente, visto que a energia do transporte é gerada a partir da energia dos utilizadores e isto reflecte-se nas velocidades. É parecido com os primeiros trabalhos participativos pela Internet. As influências desta e outras mudanças semelhantes, que estão a ocorrer por todo o lado, é cada vez mais notório do quotidiano das cidades.

Descanso

Como desenhar o fluxo da água? Como reconhecer a configuração desse elemento invisível? - esta dúvida preenchia-lhe os últimos anos de vida. Queria estudá-la e especializar-se em desenho de água para cidades realmente grandes. Preencheu vários mapas da circulação a lápis azul sobre cartolina e aos poucos entendeu que a circulação da água dominava simplesmente todo a área de uma dada cidade. Estonteado com a situação, que por mais que intuísse, não fazia ideia da sua realidade, imaginou-se detentor da informação mais importante de que havia memória.

(leitor: imaginar uma gota de água que ficou detida na folha de uma planta, de seguida imaginar a água a circular numa casa)

Este estudante descansava agora, com a cabeça pousada entre uma almofada e o colchão, com um lençol transparente a protegê-lo. Imaginava-se autor da maior loucura: a contaminação das águas. Estava em descanso induzido.

Dois: anulação

Uma alma pura, de santa, a desta menina que passa agora despida pela rua principal da aldeia. Uma cara bonita de êxtase e uma brancura imaculada na pele. Deixam-na passar sem a incomodar. Olham e esperam ser olhados com os olhos inocentes de quem os salvará. Em tempos ídos, o pai foi leva-la ao convento. A filha revirava os olhos, cada vez com mais frequência, gemia enquanto se despia e de seguida ía para a rua. Pelo caminho curava aos que olhava de frente. As freiras do convento não a quiseram lá e o pai trouxe-a de volta.
No caminho encontra agora um lagarto enorme de olhos esbugalhados. Ela para e olha-o. O lagarto olha-a de volta com tal intensidade que a menina morde o pulso. Ouço gritos desesperados da minha janela. Dizem os prantos que morreu.

Grade

As obras publicas no centro de uma cidade são um desespero. A maquinaria em funcionamento e os buracos abertos prejudicam a mobilidade da população que vive a um ritmo acelerado. Algumas obras chegam mesmo a demorar um bom par de anos. No final, pelo que já presenciei, ninguém sabe realmente para que serviu todo aquele espectáculo. Aliás, é mesmo engraçado quando começamos a dar alguma atenção ao assunto, é que ninguém faz a mínima ideia do que está ali por baixo. Quer dizer, há todo um esquema subterrâneo de auxílio à vida na superfície, isso faz parte do senso comum, mas conhecer mesmo, com alguma profundidade, ninguém sabe. Um dia ainda acontece um acidente, desaparece uma pessoa engolida pelo chão e nem damos conta. Ou então, algum tolo se mete a explorar a situação só para escrever um relatório, um romance ou uma noticia - sei lá, penso que só por dinheiro é que vale a pena a aventura. Eu ia, não me importava, e se desconfiasse de alguma tramóia municipal tomava as devidas medidas, ou se me deparasse com alguma situação especialmente grave e totalmente fora das possibilidades da minha imaginação fazia o mesmo, alertava toda a gente. Qualquer coisa assim só pode - mesmo -ser grave, só pode ser negativo para todos - não me parece que seja um parque de estacionamento ou um jardim de flores, pois essas soluções são sempre muito anunciadas para que se perceba que “estão” a fazer “o bem”. Eu ia, lá, claro, tomava esse risco, que de certeza que deve ser sério e real, mesmo, mas agora não dá jeito.

Efectivamente

Um casal de emigrantes volta a casa depois das festividades natalícias. Em cima da mesa da sala está uma nota escrita à mão. "Não foi possível", dizia a nota. Parecia rasgada, faltava-lhe uma parte. No entanto a casa pareceia como a deixaram.
Sentiu-se um tremor, a casa abanou. O pai fo ver à janela e logo se seguiu a mãe e as duas filhas. A casa estava suspensa, a muitos metros do chão. "Uma grua" diz o pai. "Ha, finalmente, [diz a mãe,] vêm fazer a limpaza à arrecadação. Estavamos cheios dos ratos"

Colaborar

Um livro que queria ser escrito, ainda hoje, em cima de uma mesa, com uma caneta de ponta afiada e por um poeta escanzelado, cego de fome, fora escrito quando encontrou o seu poeta na estação ferroviária lhe agarrou na mão e lhe serviu de suporte ao seu pulso magro.

A caneta ajudou massacrando o papel e deixando para trás feridas cor de luto. A mesa colaborou agradada, deixando-se estar quieta, passível, com as quatro pernas a tremer. O poeta bebeu aguardente e manteve-se aquecido por um aquecedor fraco enquanto aprendia a escrever o que o livro lhe ditava.

Tamanha era o delírio de hoje e a verdade de amanhã.

Pulso

Um homem sobe uma ponte e pretende descê-la rapidamente para não pensar mais no assunto. Mas ocorre-lhe percorre-la durante algum tempo, pois não quer parecer impaciente. Enquanto caminha na plataforma pensa no farol que avista ao longe, que até o visitaria senão tivesse já marcado para aquele dia a descida. É um homem rigoroso, sem dúvida. Olha para o relógio de pulso que tem a corda partida - “não era suposto! agora não era altura”. Ficou ali, literalmente sem horas para antecipara, para adiar, para medir, para usar, enfim, congelou-se naquele momento com o espírito totalmente atordoado.

Quando tocaram então os sinos ele saltou, no vazio com os braços abertos.

Arte

Um artista fabrica quadros que são autênticos recortes do mundo nocturno, inteiramente construídos a partir de pedacinhos de superfícies encontradas - atrás distribui os pretos mais fracos, à frente os mais profundos, para melhor traduzir a profundidade da noite. Constituiu-se ao longo de vários anos de trabalho uma extensa obra que fala por si e que o artista por vezes descentra-a do que parece dizer.

O que dizem os especialistas - confiantes da sua verdade - é que a obra tem origem na profundidade com que o artista encara a sua existência pessoal - o não é de todo descabido. Mas para um pequeno grupo de indivíduos o artista fabrica mapas dos seus arredores, desses quintais onde são programados encontros com o desconhecido. Aí é profundo o preto, é intensa a experiência e é incerta o retorno a casa com vida. (Há tipos com bonés virados com a pala para trás que cedo deixaram a escola e que ali reencontram alguns dos seus professores.)

Crenças sem importância

Iniciei um murmurinho. O assunto estava relacinado com um determinado sítio da cidade e com certos entes espirituais de estatura minúscula. Alguns meses mais tarde soube que havia quem tivesse acreditado e um grupo formou-se para iniciar a observação e contar as experiências. Certos cogumelos, de cores e formatos bizarros, nasceram no lugar. Coincidência talvez mas seguramente o suor ansioso, medroso e curioso dos visitantes ao lugar, ajudou ao aparecimentos destes fungos. Traziam breloques e toda a espécie de amuletos. O lugar, uma esquina até bem escondidinha, tornou-se lugar de folclore. Os seres transformaram-se e ganharam idêntidades. Certo dia, curiosa com todos os rumores em volta do lugar, fui visita-lo. Durante duas horas ali fiquei pasmada com a manifestação visual das crenças que eu sabia infundadas. No fim até consegui eu própria ver um vulto das tais idêntidades.

Hermes

Recentemente uma senhora de meia idade ficou conhecida porque deu um novo uso ás conhecidas impressoras de 3D. Vivia sozinha no isolamento de uma quinta agrícula. Tinha por companheiro regular um agente romântico, que se chamava Hermes, gerado aleatoriamente pela Rede e de por quem tinha um enorme carinho. Hermes desenvolveu-se de forma especialmente afectuosa. Na verdade, do ponto de vista desta mulher, que durante boa parte da sua vida adulta tinha mantido relações com alguns agentes de diversas ordens (não só romântico como também didático, artista, secretário, etc), Hermes representava uma evolução incrível no desenvolvimento das capacidades e competências. Hermes parecia ter sido desenvolvdo para ela que não lhe notava, para além do corpo físico, uma só característica que não fosse genuinamente humana. Tal era a intensidade da relação que a senhora passou a desejar contacto físico com o programa. Uma certa noite acordou sobressaltada com uma ideia bastante estranha mas genial. Acordou Hermes que, ainda em fase de início, sem todas as capacidades a funcionar portanto, lhe preparou um café e prontamente a ouviu apesar do esforço. O pano era genial. Iniciaram os preparativos, contactaram as pessoas para a realização da empreitada. A ideia era arriscada mas muito interessante e por isso todos os envolvidos estavam curiosos de ver os resutado. Foi por isso que os media globais seguiam a história emfatizando o lado romântico. Na hora certa, prepararam-se para sair. Ela iniciou uma viagem de quatro dias até ao portal 3D mais próximo - um dispositivo que permitia conctretizar ideias em material biológico. Hermes por seu lado iniciou a sua concretização em ser biológico. Embora de material construído e não gerado, Hermes seria em tudo humano. Aliás, seria seguramente melhor do que um humano gerado pois não tinha adições, melhoramentos nem o corpo continha marcas de doenças. Encontram-se pela primeira vez à entrada do portal.

Críticar

Um crítico de arte, conhecido por se aproximar de muitos artistas e de se tornar seu amigo íntimo, era um saudoso romântico, roçando o ultra-romantismo - o extremo do movimento e forma de pensar que desvia muitas vezes os seus seguidores de conservarem a sua própria vida. O que neste caso acontecia com frequência: ora através de duelos que começavam na pureza de uma teoria qualquer e que terminavam à porrada, com os dentes partidos e tudo, ora através de irrupções de raiva súbita que resultavam da mesma maneira em violência. Certo era que critico estava sempre em desvantagem em qualquer prova de força dada a sua constituição excessivamente mole, mas não magra, e por isso ficava sempre perto da morte. Um dia um grupo de artistas decidiu cercá-lo. O crítico criticou-os e eles fugiram.

Cachorro

O uivo de um cachorro pequenino fazia-se ouvir quando a casa estava silenciosamente escura. Os donos anteriores tinham andado à procura do possivel cachorrinh durante anos. Mudaram-se de casa porque se sentiam tristes com frequencia. Estes novos ocupantes também procuraram a criatura que parece ser etérea, eterna. Dez anos, a família cresceu e com as crianças vêm barulhos pela casa que acabaram por calar o uivo do cachorrinho.
As crianças cresceram e os uivos voltaram, ainda vindos de um cachorrinho, tão tristes como antes. No meio da loucura, um dos membros da família, agonizado pelo desconhecido, queima a casa para terminar o uivo agonizante. Das labaredas, que assumiram o seu esplendor de madrugada e que matou com queimaduras graves toda a famívia, salvou-se realmente um pequeno cachorrinho. Era branco e parecia feliz.

Lágrima

No palco a actuação de ventriloquismo ultrapassa as expectativas do público. A actuação tinha sido péssima - tão má quanto o dialogo privado de um homem com o seu cão de estimação - mas a sua insistência em ficar sentado no mesmo sítio e prolongar a conversa com o boneco desencoraja o público a sair. Ficam todos num impasse constrangedor. Expectantes com o que se seguirá.
O homem deita de um olho só uma lágrima cristalina que reflecte mil cores pela sala e inclina-se sobre o boneco, quase tocando-o com o nariz, e diz-lhe que está esgotado e que talvez fosse altura de se separarem. Ele bem sabia que não seria capaz de ser outra coisa senão ventríloquo e animar com palavras o inanimado, mas que agora precisava de ajuda, de alguém que o cuidasse, o animasse, e não o oposto. O publico limpava o nariz com vontade, estavam as primeiras filas num pranto ao verem a lágrima deslizar pela cara do homem.
Até que o boneco falou, pela primeira vez, e disse - não tenho palavras.

Apagão

Era noite.
No maior continente do planeta, na mais vasta área urbana conhecida, deu-se um apagão. No inicio os geradores mantiveram-se em funcionamento, em bancos e hotéis principalmente, para segurança dos clientes. Passadas poucas horas o abastecimento dos geradores enfraquece e esgota-se a energia ali conservada. Uma multidão segue descoordenadamente às escuras guiada por tochas, velas e pequenas fogueiras que marcam o caminho. Essa massa de gente desesperada não se lembra como é viver na escuridão, dos benefícios desse silencio e sofre a angustia de enfrentar o desconhecido. É neste momento que o desconhecido engole o conhecido e os mundos se encontram.

A lembrança deste episódio ficara registada como uma noite que tinha começado por se mostrar perigosa, mas aos poucos, como acontece com os nossos olhos quando se habituam ao escuro, se tinha mostrado a mais serena noite de que houve historia - como se tivesse ocorrido uma misteriosa reconciliação entre mundos.

Entre opostos

O eco dos passos e as cedas bem como outros tecidos dos vestidos componhem a música de fundo. As pessoas falam num tom íntimo, de passagem. Estamos no corredor que serve de passagem entre o hall de entrada, onde se deixam os casacos e se colocam as máscaras que velarão pela idêntidade dos individuos, e os salões onde os rituais decorrerão. O corredor é a ligação entre o lá fora e o primeiro salão e o único espaço seguro desta noite. Em breve será fechado o seu acesso. Por enquanto os convidados entam de um lado, juntos, e conversam ainda. Quando chegam ao lado oposto, entreda do primeiro salão, vão sozinhas, silenciosas. Por isso é um lugar seguro, porque é previsivel. Ninguém controla os opostos, do racional colectivo, do irracional colectivo.

Geração

Um ovo gigante tinha viajado há mais de dois séculos de continente em continente na mala de um zoólogo que o tinha encontrado pousado num ninho e que pouco sabia da sua origem quando o recolheu. Encontrava-se agora num museu didáctico onde dezenas de crianças ouviam contar a sua história através das ideias dos adultos. Todas as crianças tinham a sua versão pessoal dos acontecimentos que expressavam em longas redacções. Umas diziam que estava lá dentro uma nova espécie animal, outras esperavam que ali estivesse a esperança de um novo ser humano, outras ainda suspeitavam que estavam ali contidas forças naturais estupendas. Na passada semana o museu noticiara que o ovo se tinha partido.

Pessoas impossíveis

Uma mulher e homem cego faziam juntos uma caminhada.
A mulher tinha pressa de chegar ao destino.
O cego não conseguia andar mais rápido por recear o que se apresentava à sua frente.
A mulher levou o cego às costas.
Chegou a meio do caminho cansada.
Foi então que se lembrou de lavar os olhos do cego, de os raspar na areia e voltar a colocá-los.
Assim fez. O cego já não era cego, mas agora preferia seguir nas costas.

Dia / Noite

Uma violenta queda de neve isolou a escola primária do resto da aldeia. Nos primeiros dias os pais preocupados procuram salvá-las tentando encontrar formas de furar a densa camada de neve que se tinha transformado entretanto em gelo. Aos poucos o tempo foi melhorando, mas por alguma razão o gelo não derretera e continuava a barrar o acesso. A vida da escola florescera com o bom tempo. Inicialmente as crianças procuravam os pais, choravam um choro aflito, mas aos poucos, na companhia uns dos outros, começavam a pressentir as vantagens de uma vida emancipada precocemente.

Muitos anos depois os pais perderam a lembrança dos filhos e estes dos pais e do espaço fora da escola. As crianças pensando que jamais seriam perturbadas pelo contexto exterior como a certa altura conheceram, seguiram um rumo sem consciência da sua singularidade. Na linguagem falada e escrita ainda se reconheciam os traços do que fora ensinado. Contudo a relação com o espaços, com os objectos e as relações pessoais adquiriam características completamente novas.

(Posfácio) O capitalismo infantiliza.
Surpreendentemente estas crianças, mais tarde adultos, eram extremamente responsáveis no cuidado de si próprias e no convívio com os outros.

Oralidade

A nova biblioteca foi construída secretamente a pedido de um déspota com ambições expansionistas. Longe de ser um idiota, este homem era bem instruído e sabia claramente como controlar o povo. A biblioteca sugaria Todo o conhecimento - em rigor, todo o conhecimento de todas as terras conquistadas. A partir do saber dos segredos dos povos dominaria as vontades humanas. A sua ambição não tinha limites. No entanto, o déspota tinha um recanto no seu modo de ser que entrava em conflito com a sua ganância, malvadez e vontade desgovernada de poder - esse recanto remontava ao tempo em que o conhecimento era contado pela boca das mulheres. Assim, a nova construção, tinha paredes de mais de cinco metros de espessura oca. Uma largura demasiado grande que surpreendia arquitectos e construtores daquele tempo. No seu interior foram albergadas mulheres que passavam o dia a contar o conhecimento que fora marginalizado. O principal ouvinte e único frequentador destas mulheres era o próprio déspota.

Corredores

Há muitos anos que tinha um mesmo sonho: que a sua casa tinha mais divisões do que as que conhecia. O sonho produzia nele uma angustia profunda de que estava num espaço que não dominava. Todas as outras vezes sossegou-se contando e descrevendo para si todas as divisões. Chegando ao final e não encontrando nada de suspeito acabava sempre por adormecer. Mas hoje acordou a ouvir o som abafado de um martelo do lado de lá da parede que sabia que dava directamente para a sala. Levantou-se e lançou-se à rua, pondo-se de frente à fachada da casa. Mediu várias vezes as divisões que da fachada podia identificar. E de facto…havia um espaço intermédio inexplicável. E uma porta ao lado da sua por onde entravam e a saiam pessoas que ele estava a ver pela primeira vez, que lhe acenaram e lhe desejaram as maiores felicidades.

O que repousa no escuro

Acontece um encontro casual entre o artista e um anónimo de entre a platéia do concerto que há minutos terminou. O anónimo conta uma história sua que começa agora ao artista que nesta reconhece sua mesma história que terminou há cinco anos. Neste momento, dois desconhecidos, sentados lado a lado, entendem-se numa intimidade única, pela singularidade de cada um e nas possibilidades de algo de tão único como o que sentem existir em multiplicado. A verdade não existe, disse no fim o artista. No entanto acabamos de olhar o mais escuro de nós e um do outro, disse-lhe num sorriso um dos anónimos da sua audiência dessa noite.

Sub

Os grandes centros urbanos albergam comunidades de homens e mulheres que se recusam a viver à luz do dia. Os canais abertos para a passagem dos metros subterrâneos estão repletas de inscrições, sinais que ajudam, mesmo na mais completa escuridão, que um elemento de uma determinada comunidade não se perca e que encontre sempre o seu caminho de volta. Infelizmente estas formas de viver na cidade são já conhecidas e motivo de estudo. O seu reconhecimento pelas autoridades levou-as a procurar outros níveis mais baixos onde não fossem encontradas. Os canais de saneamento, embora húmidos e repletos de animais indesejáveis, foram durante algum tempo uma possibilidade. No entanto, novos canais foram encontrados: as ruínas de antigas vivências sobre as quais se construíram sucessivamente cidades cada vez mais avançadas. A primeira comunidade a ocupar estes canais é particularmente dedicada ao estudo em reclusão, debatendo-se especialmente com o conceito do retorno – o retorno do novo no mesmo e em todo o lado.

Jogo

Três jovens jogavam às cartas e tentavam enganarem-se uns aos outros. Tinham passado assim dias a fio esbanjando fortunas de valor incalculável. Foram colocadas sucessivamente em cima da mesa fabulosas heranças, das propriedades à beira rio às jóias da família. Nada, absolutamente nada os demovia de continuarem a jogar num contexto que se aproximava da mais pura abstracção. Como crianças em festas de aniversário, aborrecidas com os brinquedos espalhados pela casa do aniversariante, e fartas dos palhaços contratados ou dos ilusionistas dos truques de lenços, fabricavam bens que não tinham apenas para se manterem animadas. Assim se mantiveram os três jovens que subindo a fasquia apostavam terrenos tão vastos que equivaliam ao terreno coberto por certos países. Quando se sentiram finalmente esgotados e prontos para terminar a sessão procuraram um vencedor de entre os três. Não encontraram um critério económico que lhes servisse de ajuda uma vez que os valores eram simplesmente impossíveis de apurar. Foi então que procuraram infinitamente novas estratégias de jogo para que este continuasse, talvez num outro dia.

Zona Teste Z

O jardim resplandecia a brancura da pedra calcária e das plantas de folhas brancas e sem flores. O branco reflectia a pouca luz que, por entre as nuvens, ilumina os dias desta zona terrestre. Uma chuva infinita caía, noite e dia, como reacção à ausência prolongada da utilização do petróleo. Era a Zona Teste Z do deserto, onde novas formas de viver eram experimentadas. Todos os habitantes da Zona Teste Z, muito atentos ás reacções dos experimentos, aprendiam a medir felicidade e tristeza a partir de análises clínicas feitas diariamente. A chuva procurava, harmoniosamente, equilibrio com a brancura estudada. As medições eram exactas e os habitantes eram emocionalmente iguais.

O descontrolado conhecimento

Uma raça alienigena regressa à Terra depois de muitos mil anos de ausência. Certos de encontrar ainda deficiências e problemas, vinham preparados para ajudar, mais uma vez, no seu desenvolvimento, para que um dia, próximo da extinção do seu próprio planeta, a transportação de toda a população aconteça da melhor forma. Do seu lado, têm aplicado alguma alterações genéticas de forma que, ao longo das gerações, se tornem físicamente idênticos aos humanos.
Chegados à Terra enconram formas de comunicar que implicam as mãos e não o cérebro, que implicam a utilização de satélites artificiais em vez dos recursos naturais. Todo conhecimento dos planetas, das ciências empíricas tinha ficado para segundo plano. O Valor do artifícial era maior. Os edifícios glorificavam esse artificial e não o lado espiritual. Confusos, recolheram amostras, examinaram comportamentos e sem saber que fazer voltaram para procurar novas formas de lidar com a presente situação. O futuro era agora e de novo, ao fim de muitos mil anos, incerto e instável.

Os sentidos perpetuos

Um vale coberto de vegetação densa e árvores de grande porte era habitado por gente silenciosa. O lago cobria o fundo do vale. Não havia casas algumas nas margens do lago, estas situavam-se mais acima, na encosta e até ao topo. As pessoas da aldeia procuravam distância da escuridão profunda a que as árvores submetiam a terra. Havia uma casa que era inalcançavel de outra forma que não de barco porque futuava no centro do lago. O ser solitário que habitava a casa tinha consciência dos moradores através da visão do fumo das lareiras e dos balões e papagaios coloridos que as crianças largavam em direcção ao céu. Se havia barulho que ecoava no vale era o que ele produzia. Os demais habitantes não viam a casa porque estava escondida pela vegetação, no entanto ouviam o som do ser. Nesta relação de sentidos passaram-se mil anos de mitos. Tinha acontecido um filho indesejado que era deixado a navegar num barco. Era então criado pelo ser que habitava a casa do lago. As gerações do mesmo ser sucediam-se em segredo. As gerações da aldeia também. Incomunicáveis mas sempre presentes, uma silenciosa e a outra invisível.

Caderno diário

Nos dias de escola leva o caderno amarelo que em tudo se parece com um caderno escolar. Não tem amigos mas não vai para o recreio ver os outros brincar. Ninguém dá pela sua aparência ou pela sua ausência. Encosta-se à janela e olha a vida passar. Tira notas sobre todos os empregados e professores. Ninguém sabe o que ela sabe. O seu conhecimento do mundo dos adultos é vasto. Dado esse seu pequeno vício, quando o detective apareceu na escola para investigar um crime de homicídio, que tinha como principal culpado o director, pode analizar as situação comparando-a com outros possíveis culpados. As provas eram fortes mas as razões impossiveis de entender. Deixou que o prendessem. Sabia que assim terminaria uma má política escolar. De forma a tornar a situação ainda mais favorável, enviou umas fotos e um texto insinuador sobre a secretária do presente director e o mais provével futuro director, um romance bastante cor de rosa. Escondeu alguma tendência pedófila da empregada da secretaria que foi eleita (surpreendentemente) directora.

Colectiva

As projecções inundavam um pavilhão gigante e o som atacava o exterior mas mais ainda, o interior do corpo de cada elemento da platéia. A música faz-se sentir por dentro, literalmente. As pílulas, de tamanhos diferentes, à medida do peso e idade de cada indivíduo, são entregues à entrada. De todos os experimentos estes foram os mais bem sucedidos, são bons substitutos das latas e plásticos que contêm líquidos pouco limpos e nada saudáveis. Sem ressaca, completamente controlados pelos serviços de saúde e que, dependendo do gosto estão divididos segundo os estímulos que provocam nos vários sentidos. O desejo do colectivo faz direccionar a música e o fluxo das imagens. Os concertos mais agressivos acontecem quando as pessoas se apresentam com uma fúria interior. Uma festa pode começar de forma agressiva e no entanto terminar de forma apaziguadora. Estes concertos são momentos de diversão, onde legalmente se podem tomar estímulantes, mas são também momentos em que o indivíduo tem a noção clara da sua acção no colectivo. Os artistas são figuras que não se vêm.

Linhas

Um soldado rasteja no plano que separa o céu da terra.
Tudo o que está morto e em decomposição - as folhas, os animais e os outros soldados - infiltra-se escorrendo numa linha vertical, atenuando a evidência da separação.

Quando o soldado deixa a missão regressa a casa rastejando.

Animal homem

Evocavam-se as penas das aves que davam asas aos sonhos. Evocavam-se os corpos ágeis dos felinos para que o movimento corporal fosse mais fácil. Evocavam-se mil animais e acreditava-se que a cada um dos presentes pertencia as características, em proporções diferentes, de cada animal. O poder dos humanos aumentava ao sentir a ligação com todo o mundo animal ao qual pertencia por afinidade biologica e ritual.No centro, iluminada pelo fogo da fogueira, alguém pensava num animal maldito que ninguém se atrevia a evocar. Animal, que, se evocado, era capaz de aniquilar todo o frenezim que é raíz das forças interiores necessárias para o início de um novo cíclo em nome colectivo e do individuo. Evocar-se.

Eu falo

Todos nós falamos sozinhos. A explicação é simples: verbalizar é expôr as ideias de forma racional. É isso que fazemos mesmo quando estamos sem o outro por perto. Duas partes distintas no nosso cérebro, ainda grandes mistérios do conhecimento, desempenham as suas funções durante a racionalização de uma ideia pela fala: uma que pensa e a outra que verbaliza o pensamento. Falamos quando estamos sozinhos. Mas estaremos mesmo sozinhos? Se entendermos o outro num sentido que abrage o invisível então é possivel uma explicação mais concreta a nível da função do sistema cerebral e manifestação. Ambas as partes apresentam, com ou sem a presença visível de um outro o mesmo comportamento, o que leva a pensar que a solidão não existe. Se tomarmos a inexistência de solidão como fundamento, este pode ser o princípio para estudar o invisível como uma presença total. Na compreenção do invisível pode estar a chave de muitos mistérios. Descobriremos um outro mundo paralelo a partir dos indícios deixados nas nossas funções biológicas.

Constelações w

Um novo museu foi encomendado pelo rei a um arquitecto com fama e reconhecimento em toda a Europa. Como única imposição apresentada: o museu teria que traduzir o espírito do tempo. O arquitecto tomou este pedido como um desafio pessoal. Entregou todos os trabalhos que tinha em mãos aos assistentes e dispôs-se a aventurar-se no que seria a sua mais importante obra.

Passados seis meses entregou o resultado da sua devoção (quase obsessão): o modelo em maqueta de um museu que se parecia mesmo com um crematório. O rei pediu-lhe explicações.

Constelações y

Tinha travado conhecimento com a dissociação do corpo e da alma, pela primeira vez, quando uma criança da sua idade morrera de leucemia. Da janela do seu quarto, sentada numa cadeira para chegar ao peitoril, viu a marcha lenta que acompanhava a menina à sua morada final. Na frente seguia o padre, na cauda as mais importantes figuras da cidade, todos de fato de cerimonia apresentando nas expressões da face um forte sofrimento.

Naquele dia nada fez senão pensar no aspecto que a menina morta tinha quando enfiada num gavetão. Durante a noite construiu imagens da menina com os olhos esbugalhados e a pupila muito pequena, que sorria e punha a língua de fora. Indignada com a má-criação, tentou perceber porque é que tinha chegado a tal fabricação daquele anjo. Descobriu que sentia uma inveja aflitiva da morta.

Como as pessoas em geral sentem.

Constelações x

Numa província do interior norte de Portugal caiu ininterruptamente neve durante meses a fio. Os efeitos da neve fizeram-se sentir nos cultivos deixando a população sem recursos alimentares. Foi assim que as crianças começaram a comer neve para manterem o ritual da mastigação. Enquanto se alimentavam, imaginavam que sentiam no paladar sabores extraordinários. O que começou como um jogo infantil chegou aos ouvidos dos adultos que – possivelmente levados pela fome e pela falta de discernimento – começaram a fazer o mesmo. Durante este estado de euforia um homem ia acumulando numa gruta a neve que apanhava.

Terminada a queda de neve, a necessidade estava já instituída – todos sentiam urgência em comê-la. Foi então que recorreram ao homem da gruta onde a neve se conservava intacta. Mas ali apenas encontraram esculturas de gelo polido de um estranho valor estético.

Constelações

Na região nortenha de um país europeu perdurava a estranha tradição de celebrar a matança do coelho por altura do Outono. Oficialmente seria uma comemoração de uma santa canonizada no séc. XVIII, mas mais não era do que a actualização de um ritual pagão anterior às conquistas romanas daquele território. A população das pequenas vilas saía de casa a meio da tarde e caminhava sem descanso até de madrugada levando um bolo nas costas. Cruzavam rios e ribeiros, subiam um grande monte e voltavam a descê-lo, até chegarem por fim a um descampado, praticamente sem vegetação. Aí encontravam-se muitas pedras, muito diversas em formas e cores, que serviam de bancos aos viajantes. Mal estes chegavam ao seu destino sentavam-se, descalçavam as botas, retiravam o bolo do saco e esperavam que alguém os servisse com um pedaço de porco em substituição do coelho que era naquela altura do ano escasso.

A fama desta romaria era contudo secreta e comunicada entre as gerações no espaço limitado das quatro paredes. O estar ali, com a natureza, tão longe da civilização, sentir o sabor da carne mal cozida e sem tempero (alguns chegavam a comê-la crua) era considerado selvático. E era. Depois de saciados da fome mastigavam ervas e bebiam licores que os faziam viver o dia e a noite sem distinção esquecendo qualquer obstáculo formal aos seus impulsos mais primários. Regressavam a casa dois dias depois cansados e ainda eufóricos.

O companheiro invisível

Estava perdida e sabia disso. A noite tinha chegado sorrateira enquanto, atarefada, procurava o caminho de volta.
Luz por entre a silhueta das árvores é indicação de presença humana. Uma cabana. As sombras de pessoas passavam na janela e portanto bateu à porta. Ninguém respondeu e portanto abriu a porta. Comida na mesa, lareira acesa. As sombras não eram humanas mas labaredas. Esperou e acabou por comer parte da comida e adormecer sentada com os braços em cima da mesa. Nos seus sonhos o fogo falou-lhe: "Chamei-te desde a casa que habitas e agora ficarás aqui. Serás a minha companhia e eu tomarei conta para que tenhas sempre tudo o necessário". Acordou do sonho feliz.

Primavera

A música que ouvem os habitantes da cidade condiciona as suas acções, movimentos e emoções. O fenómeno desta relação tem sido largamente estudado desde a antiguidade. Os estudos, sempre em actualização, permitiam criar música cada vez mais direccionada para estados da alma cada vez mais específico, induzindo-os, provocando-os até.
Depois da cessação das estações do ano, a música da cidade ganhou uma nova dimensão, tornou-se fundamental para o quotidiano. Na Primavera todos os habitantes parecem mais doces, felizes e dispostos a amar. Nessa época do ano vendem-se muitas flores sem pé nem planta que desabrocham na palma da mão. Esta é uma dádiva comum entre os recém-namorados. Estas flores têm um som muito subtil e até encantador ao abrir. Dizem que dá sorte e dá o poder de prolongar o romance. Na verdade, as vibrações da música (uma invenção recente de um ciêntista músical sul-africano) provocam, no interior do corpo de quem segura a flor, uma libertação de químicos relacionados com os sentimentos do amor. Uma invenção ciêntífica completamente apropriada pelo senso comum, pelas crenças populares urbanas e que se tornou num ritual social.

Uma mulher de fé nunca está sozinha e nunca se aborrece.
Esta mulher que dou o exemplo, enquanto dormia sonhava sozinha e quando acordava pensava sozinha. É natural que nada ficasse fora de si e que as imagens que via eram por si pintadas. Um dia podou uma cerejeira e viu uma cobra corada de vergonha – a cobra disse: “quero-te enganar mas não consigo!”. Num outro dia apanhou uma centopeia no meio dos figos – que lhe revelou – “quero-te morder mas é difícil”. Assim, se sucediam os encontros, felizes e naturais, sem problemas de redução ao mesmo.

Macaco

Existia um intervalo desengraçado entre a racionalidade daquele ser e a sua biologia. O que sentia a meio do dia era fome, mas era uma fome física de comer para preencher um vazio estomacal. Mas se pensasse bem, não tinha qulquer vontade de comer. Imaginava que este sintoma se devia à sua opção em não comer carne. O corpo comunicava-lhe a falta de proteína animal. Mas ele, índividuo formado, com bons sentimentos e excelente intenções tentava a todo custo controlar esses impulsos mais básicos – para ele considerados de bárbaros.

Estava já há uns anos neste regime e não lhe assombrava sequer a ideia de alterá-lo, até que passou pelo jardim Zoológico e comeu um macaco.
Claro está, racionalmente ele nunca o comeu de facto. Mas sentia-se melhor.

Acidente

Ás Sextas fazia meia hora de natação. Depois encontrava uma amiga para o almoço. Eram hábitos de uma vida calma, regulada e sem solavancos. A caminho da piscina, numa manhã muito enevoada e cinzenta, a sua vida estagnou-se. A razão era uma criança que passava na rua e à sua frente se transformou numa borboleta. De volta ao caminho para a piscina tentou fazer a meia hora de natação mas o ritmo estava diferente. Ligou à amiga e não foi almoçar com ela. Chegada a casa nesse dia fechou as portas e as janelas, pediu inetrnamento e foi feliz para o resto da vida.

Javali

Numa embarcação que seguia no sentido dos Açores fora descoberto um homem que viajava clandestinamente. A tripulação não via com bons olhos a aceitação de clandestinos pelo capitão que entusiasticamente os convidava para a sua cabine para lhes oferecer vinho e codornizes requentadas.

Quando a embarcação foi colhida pelo mar desgovernado no centro de uma tempestade o capitão deu prioridade ao clandestino para se socorreu de um barco de borracha e se lançar ao mar. A tripulação revoltou-se e impôs-se armada diante do capitão. Estavam enraivecidos com a natureza e com o destino que se aproximava. De rompante o clandestino ataca a garganta do benfeitor que cai no chão morto sem qualquer hipótese de ser reavivado.


Numa das ilhas dos Açores viveu durante muitos anos um clandestino de grandes peitos descobertos que à noite alimentava um javali selvagem de codornizes e vinhos licorosos, encarnação de um mártir.

(nota de leitura: o clandestino era uma mulher)

Verão alucinante

Foi um Verão em que choveu muito. Sempre e sem parar durante mais de meio ano. É também um verão muito quente. A combinação dos materiais molhados com o sol causa efeitos deveras surpreendentes. Há relatos de grupos de pessoas que vêm cores e formas a flutuar acima das suas cabeças. Há amantes que enlouquecem aos pares. As causas estão relacionadas com a desidratação por enjoo à tamanha quantidade de água que cai do céu e que estagna por toda a parte. Estas alucinações individuais, aos pares e colectivas espalham-se por toda a parte, tal como a chuva. Procurou-se um diagonóstico e uma solução. À falta de voz segura por parte dos médicos. Tentaram-se os magos, mágicos, visionários, artistas entre outros.

Férias

Certo dia uma loja de penhores decidiu abrir as suas portas com um novo letreiro “penhoram-se vidas”. Até ao momento a loja continha os mais refinados objectos feitos em ouro (anéis, relógios, pulseiras, malinhas de comprimidos, canetas, suportes de batons, etc.), dispunha para venda também objectos feitos com pedras preciosas e cristais de imitação, algumas peças de vestuário em couro e pele de crocodilo e pouco mais. O letreiro que anunciava a mudança estava por cima de uma vitrina vazia.

Na manhã em que a loja abriu estava já um cliente à porta, vestido de preto da cabeça aos pés, com sapatos pontiagudos dramaticamente envernizados, chapéu fora de moda colocado de lado mal cabendo na cabeça e uma bengala esquisita na mão. Esperou que o dono desse por ele e ao mínimo gesto irrompeu com a mão para a frente para o cumprimentar. Apresentou-se dizendo que era um simples cangalheiro, mero agente dos desígnios divinos, com falência à vista uma vez que a saúde não era um problema nos dias que corriam. Mas o dinheiro era – disse peremptoriamente. E, desdobrando-se em explicações disse com honestidade que aquela ideia era tão boa que apenas lamentava não ter sido ele o primeiro a tê-la... Depois de uma breve pausa de silêncio forçado, adiantou-se então a fazer a proposta que constava do seguinte: ...e se as pessoas pudesse morrer por umas horas, dias ou anos para não terem gastos? Cancelando temporariamente a sua existência? Assim, como uma penhora...Claro que mal pudessem e recebessem, talvez, uma herança, podiam voltar ao que eram...Era como se fossem de férias para outro sítio.

Bruxa

Num campo de férias um grupo de pessoas de todas as idades jogava um jogo tremendamente excitante – uma espécie de “quente e frio”. Uma monitora tocava no piano notas ora graves ora agudas, consoante os participantes se aproximassem ou se afastassem do esconderijo do tesouro secreto. Passadas algumas sessões descobriu-se que quem encontrava o tesouro era sempre a mesma pessoa, a idosa Senhora Chanpu. Desfeita em risinhos e lágrimas de emoção mostrava-se ainda em forma para receber os abraços ternurentos e piedosos dos seus companheiros. Uma criança mal-educada teve o atrevimento de lhe perguntar porque acertava sempre no sitio do esconderijo e ensinou se por acaso a Senhora não seria uma bruxa... A criança estava claramente incomodada por ter perdido aquele tesouro cheio de bombons de licor e queria que se fizesse justiça à sua maneira.

A Senhora Chanpu atrapalhou-se um pouco a acabou por afirmar que era francamente incapaz de distinguir uma nota grave de uma aguda, mas conservava uma visão de água e podia muito bem ver quando a monitora sorria e revelava o canino brilhante não deixando espaço para dúvida, mal o canino aparecia o tesouro estava próximo.

incompleta!

As duas raparigas representadas na pintura de Renoir sentadas ao piano estavam apaixonadas por Goethe. Contudo o poeta vivia subtraído aos seus sentimentos dedicando-se exclusivamente ao estudo da metamorfose das plantas procurando um modelo de planta que servisse para reconhecer todas as outras plantas. O estudo em processo, prolongado por mais de vinte anos, era notavelmente exaustivo e rigoroso. De modo que o poeta, decidido pela ciência sem ter para isso estofo, esforçava-se muito para não correr o risco de ser motivo de chacota da elite de cientistas da academia.
Certa tarde de sol as raparigas terminaram os ensaios mais cedo decididas a encontrá-lo durante o estudo. Levavam-lhe um ramo de flores variadas, em cor, forma e textura, supondo que assim o poeta e cientista lhes daria maior atenção. Porém, tinham-se esquecido que eram feitas de óleo e ao contacto com primeiro raio de sol desfizeram-se em lodo cinzento. Estavam tão motivadas que o lodo que tinham formado corria pelo campo procurando Goethe. Quando o encontraram meteram-se sorrateiramente nas botas, entranhando nas ranhuras.
Chegada a noite, Goethe prepara-se para se deitar. Julgando-se sozinho naquele quarto da estalagem onde estava hospedado, dirige-se às botas e notando no lodo, espesso e em abundante quantidade, forma com ele a planta das plantas - modelo universal.

Tortura

Lá fora decorria uma tempestade como não havia memória. Intercalavam-se raios e relâmpagos, caia chuva só muito espaçadamente quando não calhava de cair granizo, já o vento corria com força, vergastando os ramos das árvores sem pudor.

Enquanto isso, certos jovens mantiveram o hábito de se encontrarem, ao anoitecer, naquele salão de convívio - divisão principal de um importante ateneu, cujo estatuto de membro herdaram do pai ou do avô. Lacravam a divisão por dentro até ao amanhecer.

Formavam um circulo curioso de ociosos pachorrentos muito vocacionados para os prazeres da vida e pouco inclinados para o trabalho. Eram jovens, rapazes e raparigas, cheios de entusiasmo e de ideias mal paridas que estavam ali confortavelmente acomodados sabendo que o futuro estava sem qualquer dúvida assegurado.

Fumavam, bebiam licores, comiam docinhos secos e contavam piadas para se rirem até à exaustão. Quando se abeiravam desse ponto de açúcar chamado tédio sabiam, no seu íntimo, que estava perto o momento de porem à prova o modo de vida que tinham elegido.

Costumavam então imaginar como podiam converter o espaço onde estavam num antro de tortura medieval que descreviam, à vez, com detalhe e em voz alta a todos os outros convivas. Era nesta altura, que temendo o pior, um deles enlouquecia com angústia. Os restantes revigoravam-se com a falta de coragem do louco que tinha levado a brincadeira mais longe que os demais e assim a festa continuava e o tédio desaparecia.

CORTINA

Uma cortina espessa de veludo vermelho cobria toda a parede do fundo do quarto.

O tipo de tecido de que a cortina era tecida, causava uma escuridão absoluta.

Quando ela se levantou, caminhou em direcção à cortina de forma a abri-la e assim inundar o quarto com a primeira luz da manhã.

Tentou a primeira vez, segurando numa ponta do tecido e com um gesto energético, puxou-a para a esquerda. Encontrou uma porta fechada.

Tentou a segunda vez, procurando a outra extremidade e com um gesto semelhante puxou a ponta do tecido segurando-o com força. Tinha destapado agora uma parte da parede com tijolos à vista.

Descontrolou-se um pouco pensando que afinal aquela cortina não servia para cumprir o seu fim.

Procurou então o meio. Colocou as mãos nesse meia e com um gesto vigoroso abriu a cortina nos dois sentido. Desta vez encontrou uma reentrância que não dava a lado nenhum, uma espécie de armário sem porta com morcegos lá dentro que naquele instante tinham despertado.

Estava assustada e estupefacta com esta experiência. Voltou a fechar a cortina, a pôr tudo como estava.

Sentou-se na beira da cama à qual tinha chegado com dificuldade. Reflectiu no que lhe acontecera e concluíra que a cortina respondia aos medos que sentia.
Se desviasse o sentido do seu pensamento que veria? Experimentou e viu as escarpas de montanhas pontiagudas, planícies douradas pontuadas de elegantes cactos, e por aí – fo - ra

Pertença ao inútil

Todos os habitantes da aldeia têm direito, num dia das suas vidas, visitar o oráculo. O oráculo é consultado somente pelos membros governantes e para fins de estado. O local encontra-se para além da entrada da gruta na montanha, numa sala coberta de ouro nunca recolhido pelos caçadores de preciosidades. Uma vez por cada habitante, portanto, este oráculo, a que se reservam premonições fabulosas, pode ser consultado para fins pessoais. Foi no dia do seu quadragésimo aniversário que M. o foi consultar. Não tinha consigo uma pergunta, achava somente que estava na hora. A sua vida era dura e poderia nunca o consultar se esperasse a grande pergunta que colocaria ao oráculo. Lavou-se e vestiu-se, como se faz, em qualquer cultura, quando se trata de uma celebração ou de um dia especial, e dirigiu-se à montanha. Não voltou a ser visto na aldeia. Nesse ano o inverno foi duro, muitos morreram de fome e o oráculo foi visitado por homens perdidos por saber o rumo a dar à aldeia.
M. não sabia da fome. O ouro, na sua pureza, na sua inutilidade, pela incapacidade de troca ou de utilização, tinha o encantado.

A comunidade que se repete

Sentado debaixo de uma árvore exótica cujos ramos e o tronco se confundiam, Elder olhava para a palma das mãos com estupefacção. – “Não pode ser, não pode ser”. Dizia ele para consigo mesmo.

Apalpou com as mãos o ventre e massajou-o em círculos perfeitamente sincronizados pelas as duas mãos. Parecia que procurava ver-se à transparência como numa ecografia. Pressentia que havia vida lá dentro, um certo tipo de vida que pouco ou nada dependia dele. “Quem está aí? Está aí alguém?”.

As aulas de biologia e a professora em especial - que lhe dera tantos conselhos para o futuro como amiga tanto quanto o punia com olhares severos – alimentaram nele a ideia que havia vida, mas uma vida múltipla, em número, e agora sabia que era verdade.

“E as abelhas? E as formigas? Comunidades de grandes e de pequenos? Dentro e fora de mim?”.
Enquanto se confrontava com a imensidão do universo e a sua desoladora finitude lançou mãos à obra e com um pauzinho desenhou na poeira, debaixo daquela singular árvore, uma cosmologia de escalas sem hierarquia, eram apenas assim.

E descobriu que pela relação que tinha criado, ele e os seus semelhantes podiam muito bem ser qualquer coisa como um microrganismo no ventre de um gigante.

Técnicas para a curiosidade

Três escritores encontra-se no banco e todos vão depositar o cheque referente ás vendas do último livro que editaram.
Conhecem-se mas não muito bem. Querem saber mas não perguntam quais os números que estão escritos nos outros cheques. As técnicas divergem. Um tenta utilizar as suas capacidade de visão de se abstrair do material e ler através do papel o que está escrito na outra face. O segundo tenta a força da mente para retirar os cheques dos bolsos e das mãos, para que se dobre ou se abram e conseguir assim lêr o que deseja. O terceiro, menos necessitado da resposta no imediato, escreve um próximo livro onde indica os seus honorários e espera pelas reacções dos parceiros.

Atracção

Dois precepícios, em dois continentes diferentes, moram frente a frente o mesmo planeta.
Não se avistam mas estão conscientes da sua existência em frente um do outro. Um dia foram planície uniforme e isso ficou na memória histórica.
As pontas opostas destes dois continentes nunca se encontraram e a sua forma transforma-se no sentido do desconhecido, afastando cada vez mais estes dois nossos conhecidos precipícios que não sabem que se afastam muito lentamente a cada segundo que passa.

Acidentalmente na rua

Um gato olha a rua da janela de uma casa desabitada. É a casa onde mora com muitos outros gatos. Passam as pessoas na rua a caminho de um qualquer destino. Cada um conhece o seu. O gato vê atentamente uma pessoa ao princípio da rua, prepara-se para o salto. Olha para trás e com um olhar despede-se da casa e dos gatos e da sua vida. Volta-se de novo para a rua, ganha lanço, salta e vai terminar o salto no colo da senhora que ainda há minutos estava no princípio da rua. "Olá, disse a senhora, vamos para casa?" E foram.

O triunfo

(um titulo escrito antes de um texto)
Entrou de manto vermelho, pela igreja adentro. Decorria a missa de Domingo. Uma matilha de quarenta cães seguiam atraz. Estava nú e era bonito, muito alto, excêntrico e arrogante. O padre congelou perante o vislumbre de um possivel demónio, mais vivo que o próprio deus vivo. Os fiéis olharam a impressionante grandeza de um homem nú. Os cães entraram a ladrar. Por debaixo do manto saíram dez anões que logo trouxeram bancos que puseram em cima uns dos outros. O homem subiu ao cimo dos bancos dispostos em pirâmide. De lá de cima, de mãos e braços abertos urinou. Levantava-se do chão um cheiro pestilento e quente que logo se propagou pela igreja. A urina ficou seca e transformou-se em sal. Diz alto "Sou o Jacinto Perdido, venho, mais uma vez, me entregar a vós". As palavras fizeram uivar os cães. Em pose de ascenção, de braços abertos, caiu das cadeiras. Os anões levaram-no as costas, horizontal e desmaiado. O Jacinto não era o louco mas o regente amado por todos os cidadãos desta aldeia que fica mesmo ao lado da cidade onde moro.

Por exclusão

Trabalhador competente, disciplinado, organizado e com estudos apropriados procura esposa compatível.
Eram três da manhã e M. procurava pelos óculos para lêr. Tinha muitas insónias e regularmente também dores nas costas. O seu colchão, nos sonhos, movia-se e depois acordava com estas dores. As pessoas que apareciam nos seus sonhos eram sempre as mesmas: as senhoras que visitara na sua procura mal sucedida pela esposa compatível.As situações eram também as mesmas: estas senhoras tentavam o enpurrar com as mão por debaixo do colchão.
Assim que encontrou os óculos leu os seus documentos preferidos para aquela hora. Lia as mãos que cortava ás senhoras a quem as pedia e que as recusavam. Relia as suas vidas e os destinos traçados nas linhas do amor, das vidas que congelou. Porque M. era competente, disciplinado, no emprego e esta sua missão também.

200

Esta noite a história é simples, passa-se na biblioteca de uma importante cidade universitária onde um conceituado professor procura um livro. A única pista que tem é que esse livro não está catalogado, está entre prateleiras, entre pisos, entre secções, entre campos do saber, etc. Porque este professor era verdadeiramente comprometido com a sua profissão e amava o ensino como recriação e não como repetição de palavras alheias. Este livro, talvez um compendio escolar, concluiria que há todo um conhecimento a ser travado com o desconhecido, do qual seria apenas uma prova.

A história termina com o professor a arrastar os móveis da biblioteca em vão.

O livro contudo, existia, estava precisamente a ser escrito e constava já com duzentos pequenos capítulos.

FOME

Um deles disse - “Aqui há fome”
Os outros três, sentados no chão, encostados às paredes, fitavam embasbacados, como se fora um milagre, a fina linha de luz que entrava naquele exíguo compartimento. Há já alguns dias se tinham selado com tábuas e tijolos numa casa da montanha para discutirem assuntos que lhes pareciam serem de séria envergadura. A conferência fora organizada tendo em vista o entendimento entre todos nas suas diferenças ideológicas.
O resultado era aquele: tinham esgotados as palavras, a garganta e a saúde em geral provocando-lhes ardores no estômago e chagas no fígado; tinham-se debatido não só com a linguagem mas com o físico também. Enfim, tinham-se debilitado por todo aquele circo que os tinha transformado em menos humanos, transpondo mesmo a fronteira para o animal - estavam sujos e a pele já tinha crostas

Uma voz rouca respondeu – “...há fome e há cães lá fora, na entrada da porta, à espera de se saciarem. Haverá sempre fome e caras com fome.”
Um outro disse – “referes-te à história escrita da humanidade?”

Três minutos

Entraram ambos, ela na frente, pelo portão metáloco, dentro do roseiral. Poderia ser um qualquer mas calhou que este tinha sido programado por ela com base num outro existente numa outra cidade onde se tinham conhecido. Ao desenho deste acrescentou coelhos brancos e andorinhas a contrastar e arranjou um problema com o som de fundo que no outro, dada a sua falta de experiência, tinha ficado demasiado confuso. Sentaram-se no bando vermelho de frente para o lago feito de perdra. Olharam-se demoradamente. Toca a campainha. Tudo se desintegra - escape button e de volta à realidade. Tem vido a reconstruir esta cena de três minutos, no tempo em que está só em casa, durante os últimos dez anos. Um bonito passatempo que os demais desconhecem.