Habitar este sítio que é uma casa de folhas

Uma escritora, em frente de uma chávena de chá, num café situado numa cidade onde nunca esteve de um país que não entende a língua, pensa nos que possivelmente vão ler o seu próximo livro. Começou a chover repentinamente. Ela olhava, atravéz do vidro, as pessoas que passavam abrigadas como podiam.
- Um livro é uma casa de folhas: como uma árvore as prende nos seus ramos e o vento as leva em todas a direcções.
A empregada do café aproxima-se para limpar a mesa e a escritora pergunta o que tem para almoçar. Acaba por comer algo horroroso e extremamnete caro porque era a única coisa à vista, não se entendiam.
- Se as minhas folhas estiverem cobertas de informação para a qual não ofereço o código, será hostil a casa que constuo. Eu sou construtora desta coisa que será real, que será um objecto. Não construi um obecto, construí um mundo inteiro onde posso ter uma empregada poliglota. Terei eu inventado esta empregada que não me entende e desencadeado toda a situação, incluindo a chuva, para assim ter uma história imperfeita?
- La fora o vento soprou, era Outono e as folhas, de cores vermelho fogo, cobriam a rua.

Como uma pedra que cai no lago

Havemos de nos encontrar daqui a vinte anos neste mesmo lugar. Vinte anos é muito tempo, respondeste. Sim, é, mas será o necessário para que grandes coisas aconceçam a nós, aos outros e a este lugar.
O golpe tinha desmoronado a economia de uma pequena empresa que dissimuladamente era pertença de elementos centrais de certos grupos poderosos. A actividade desta empresa era de maior importância para a sociedade como a conheciamos na altura. Ainda não é a nossa hora, disse-lhe, somos vilões, em vinte anos seremos heróis.
Em vinte anos houve duas revoluções de onde resultaram novos sistemas políticos, interessados em outros propósitos para além do poder económico. As populações questionaram o propósito de certas indústrias e serviços porque perceberam a superficialidade da sua existência. Estavamos preparados para uma certa crise provocada pela nosso golpe, uma acção semelhante à retirada da carta situada no meio do baralho, mas nada assim tão grande. O dinheiro do roubo, razão porque tinhamos ambos fugido serena e separadamente, tinha se multiplicado entretanto. O segundo encontro foi breve e depois dele seguiamos o mesmo destino mas milionários. Foi nesta altura que mudei silenciosamente com a família para um novo país e comecei uma nova vida. Ávido de mostrar ao mundo os seus feitos de riqueza e proeza O meu companheiro acabou nos notíciarios de todo o mundo. Tinha se esquecido que certos heróis, para o ser, têm que permanecer em silêncio.

Oportunidade

A caminho do mercado entrei e comprei uma saia nova de uma cor garrida. Eu sei, é estranha a escolha para quem vai a um funeral. Não me choca uma côr garrida no meio de tanta tristeza representada na negrura relativa a este acto. Deixei a servidão moral quando perdi o amor ao próximo. Aborreço-me de tudo e todos. Compro umas maçãs no mercado, ponho a saia nova no café e vou agora a caminho do cemitério para o funeral. Não sei quem morre, vou porque gosto de ver gente em profunda emoção. Deixo ficar o meu cartão aos mais entusiastas, aos que conseguem me convencer sem dúvida da profundidade dos seus sentimentos. Ligam-me umas semanas mais tarde para saber mais sobre os meus serviços. Tenho uma empresa de serviços pós-morte, para os que ficaram vivos.

O grupo Eon do deserto

Movendo-se rápida mas suavemente sobre a superfície rochosa da montanha, subindo, descendo, aparentemente sem detino ou objectivo, uma mononave era um único ponto que se destaca na paisagem. A visita à montanha é um ritual anual praticado com os meios mais modernos ao dispôr dos novos habitantes do deserto próximo. procuravam aqui plantas medicinais e alucinogénicas para todo o ano. Este grupo em particular, para além da visita regular de cariz ritual e prático, vinha com a intenção de mapear a superfície. O objectivo do mapeamneto é traduzir toda a informação que constitui a montanha para linguagem encriptda e condensada e replica-la posteriormente em tamanho reduzido para assim a controlar. Efectivamente, interferindo na maquete que pertendem construir, interferem na própria montanha.
A agressividade da natureza contra o elemento isolado é tal que não há vida solitária no deserto. A vida é só possivel como colectivo. Pode-se mesmo falar de uma idêntidade que define cada um dos grupos de habitantes, de uma só massa carnal. Este grupo em particular reúne pessoas que, descrentes das regiões temperadas, procuram no deserto, sem sucesso, um grupo de afinidades. Então juntam-se a este grupo e assim formam um corpo fechado sobre si com uma habilidade incrível na forma como exploram os seus recursos. Situados numa zona tórrida, no centro do deserto, sem água, o seu território muito raramente é invadido. No entanto o engenho é tal que desenvolveram um íman que atrai água, que viaja em forma de vapor, a distâncias enormes, e se condensa aqui no subsolo. A réplica da montanha é mais um desafio que os une, vem contribuir para a solução da medicamentação natural.

Pontes entre pontos

Estamos todos de passagem em qualquer lado. Refrear não ir e não fazer, torna a vida amarga, a de cada um e a dos outros. A glória de ultrapassar a barreia do nosso medo do novo é pessoal e ninguém alguma vez conhecerá nenhuma outra que não a sua. É nessa glória que está a realização de quem somos e não no reconhecimento dos outros.
Um dia fui-me embora da família por encontrar em mim uma tendência inata para a decepção. Durante vinte anos morei na floresta ao lado da aldeia onde nasci. Nunca ninguém me visitou. Pensavam que lá eu era feliz. E eu fui feliz na minha solidão infligida. Na verdade, sabia que sozinha não seria nem encontraria decepção e isso deixava-me feliz. Com o passar dos anos no entanto, também aqui me sentia desmotivada e triste: queria ser capaz de me meter toda cá dentro de mim até ser, exteriormente, um ponto invisível e não conseguia. Desmotivantes eram também os outros: queria das árvores ainda mais beleza, dos sons dos dos animais ainda mais perfeição, da terra ainda mais cheiro. Depois de uns anos de triste revolta pensava em voltar. Em vez disso preparei um fato e um espaço debaixo de água onde não entra água. Mudo-me em breve para o meio de um lago, onde o silêncio é total, onde não há animais nem terra nem mais nada.

Projecto Replicante

Aos 30 foi pai de uma rapariga saudável que era um clone perfeito da sua esposa. A informação que compõe criativamente um novo ser não tinha sido transmitida por si no acto de geração. Os seus genes tinham contribuido somente com a informação necessária para a construção deste novo ser.
Para melhor esclarecer o leitor, já que começamos com a descrição de uma excepção ao método humano de procriação, este texto explica sumariamente a existência de um homem que não conseguia gerar novidade mas tão somente duplicar a que existe. Estamos portanto a falar de uma falha da natureza.
A nascença da filha foi o legado do erro que era este homem para a construção da história da humanidade. Em criança, na escola, por exemplo, aprendeu a ler e a escrever copiando o texto e a fonte em que este estava escrito. No entanto não conseguia traduzir numa opinião sua o que tinha lido ou ouvido. Esta existência é secreta. O sistema policial secreto utiza a sua fraqueza como uma mais valia poderosa. Subjugado, instrumento dos outros, este homem sente como seu valor a confiança que lhe dá o estado em forma de casa, cama, comida e uma companheira.

ENTRELINHAS

Há homens que caminham com sacos de plástico pela noite dentro em todas as cidades. Saem pouco depois da hora de jantar. Diz-se que recolhem o desperdícios dos outros, vivendo do pouco que lhes é deixado, nos contentores do lixo e nas entradas das portas. Mas é uma falsidade. Eles não se sustentam da recolecção, eles não necessitam do que encontram, eles vasculham mas não levam nada...enfim, apenas passam o tempo assim. São aliás bastante esquisitos e sentem-se enjoados com os outros. São até arrogantes ao ponto de fazerem considerações sobre o modo como vivem os outros habitantes da mesma cidade. O que fazem é vitimizarem-se (o lugar do silêncio é o lugar da vitima), desejam que se tenha pena deles e assim, neste lugar confortável que lhes é conferido, adiam a imensa vontade de se insurgirem activamente (e nunca o fazem). Ao mesmo tempo, é só assim que são deixados em sossego, nos seus pensamentos e nas suas angústias.

Hans encontrou pela primeira vez um livro que lhe deu jeito a elevar a cabeça para dormir num banco de jardim.

Retorno

São vivas as recordações das férias desse verão de estranhas variações climáticas e em que encontrei uma velha tia que até então desconhecia.
Nesse ano resolvi fazer uma excepção na minha rotina de férias e em vez de conhecer mais uma nova cidade optei pelo género praia, sol e mar: fui para a costa.
Numa tarde demasiado quente, no bar do hotel, encontrei uma velha senhora, também ela fugitiva do calor, com quem iniciei uma conversa ocasional . A senhora era uma veraneante regular e muito querida de todos no hotel. À nossa primeira conversa sucederam-se várias outras, primeiro ocasionais e depois regulares. Gostavamos de passar o tempo juntas porque sentiamos grandes afinidades. Aos poucos abriamos-nos mutuamente a segredos e confissões. As nossas vidas pareciam estranhamente idênticas na sua história, tirando um ou outro pormenor, tal como estranhamente eram idênticas as marcas de nascença que tinha cada uma no lado de dentro do pé direito. Inacreditáveis coincidências, porém, acontecem a todo o momento. Foi no entanto um comentário sobre uma ocasional notícia de jornal que nos levou a suspeitar do parentesco. Concluimos mais tarde sermos tia e sobrinha, em outro grau que não o primeiro, mas contudo do mesmo sangue.
Choveu e houve tremendas tempestades muito ventosas nesse verão. Nesses dias de tempestade, impossibilitada de sair do quarto, atormentava-me o facto de não saber quanto da minha vida era eu que a construía à medida que a vivia e quanto dela estava já escrita na história biológica da família a que pertencia. Nesses dias, por entre o turbilhão de pensamentos e o cinzento da chuva, procurava a tia no seu quarto. Foram contudo tentativas sem sucesso pois nunca a conseguia encontrava. Quando os dias estavam de novo radiantes voltava também a minha boa disposição e lá voltava também a encontrar a tia no bar. Tudo voltava a ser de novo alegria de Verão.
Uma certa tarde, pressentindo a tempestade e conhecendo as tendências mais recentes do meu comportamento, fui ao quarto da tia. Ela parecia nervosa. Olhava-me como se conhecesse o plano que eu mal tinha tido tempo de esboçar. Sentei-me na sala adjacente ao seu quarto. O vento soprava mais forte e mais ruidoso a cada minuto e a escuridão instalou-se acompanhada pela chuva forte. Sem dar por ela adormeci e quando acordei a tia tinha desaparecido. Saí à sua procura e finalmente fui encontra-la em frente ao mar com uma outra senhora que lhe lia o futuro nas cartas. As cartas, pela voz da leitora diziam a sorte de duas pessoas. A sorte da tia era a mesma que a minha e ao mesmo tempo eu era outra pessoa que fazia só minha a mesma sorte que a dela.
Deito-me, de novo em férias, sob o mesmo sol, sento-me na mesma cadeira e penso nas cores que compõem as minhas vontades e desejos. Chego à conclusão que, no fim desse Verão já passado, despedimos-nos como quem nunca se chegou a conhecer.

Macaco e Serpente

Um dia um macaco de um Museu de História Natural mexeu-se do seu galho, retirou a palha em excesso que lhe enchia a boca, respirou fundo, partiu o vidro e pôs-se aos gritos. Do outro extremo apenas a serpente lhe respondeu.
- “Também sentiste calor? Está abafado, não está? Eu quero voltar a ser hipnotizada no centro mercado por um tolo que não saiba fingir...ó, levas-me onde fores?”
- “Não foi só o calor, esqueci-me do chapéu na montanha onde fui capturado...”
- “Mas tu és sagrado tal como eu. Onde fores leva-me...reinaremos o Universo”
- “Levo-te, mas tu mordes-me...”
- “Juro-te que não...”
“Mas eu não te conheço já? Não foste tu que me puseste aqui com uma mordedura?” – reflectia o macaco.

E assim o Universo continuo a ser governado sem deuses.

Instintos

De madrugada. Um crime foi cometido na rua do lado. O assassino olha, de cima para a vítima no chão, como que paralisado. O movimento da rua parou. Aproxima-se a polícia anunciando-se estridentemente. A vítima, ou aliás, as duas vítimas são um gato enorme (quase um leopardo) e uma rapariga. Os cabelos dela, como manchas de escuro, envolvem o animal num gesto protector.
Era meio-dia quando a polícia chegou. Prederam o assassino, ainda imóvel, e questionaram as pessoas em volta do cenário que não tinham as respostas.
A noite passada tive vários sonhos estranhos com animais que a mitologia descreve como simbolos de protecção. Nos meus sonhos estes animais existiam como animais e não como estátuas e tinham fraquezas, tal como os super-heróis que são as figuras protectoras dos nossos dias. Acordei de um desses sonhos, levantei-me e fui fumar um cigarro estava já o dia a começar. Pela janela encontrei uma rapariga que caminhava e à frente dela caminhava também um enorme gato. Um homem cruzou-se no caminho, perpendicularmente. A acção do gato tornou visível o que foi uma manifestação do instinto de protecção pessoal. A rapariga agarrou-o de forma carinhosa e com cuidado. O homem reagiu, instintivamente também e sem perceber que o fazia. Deu-se o assassinato.

Ser em escrever

Todas as histórias são verdadeiras. Aquelas em que o herói volta dos mortos em forma de fantasma, em forma de zombie ou renasce humano para mais uma oportunidade de se realizar. Aquelas em que as coincidências são aparentemente impossiveis e absurdas. Onde os animais falam. Onde os rios choram e as montanhas também têm sentimentos. Não há portanto histórias no seu sentido de ficção pois nada é ficção e tudo é factual. Tudo são factos. Há os que são factos-relatos de acontecimentos passados vistos pelos olhos do autor. Há os que são planos para futuros por acontecer. O acto de os relatar de antemão serve o propósito de viver um sonho ou pesadelo - ambos os casos são desejos do autor.

PONTARIA

Certa vez um homem agarrou uma faca entre os dentes. A faca saiu ao encontro do homem durante uma zaragata entre velhos amigos; o homem foi ao encontro da faca quando caminhava em direcção a casa. Era já muito tarde e foi uma sorte que a faca não se tenha dirigido a mais ninguém com o intuito de matar e que o homem não tenha chegado à casa antes da hora para não surpreender a mulher. O homem aprendeu a viver com a faca, a tirar partido dela, utilizando-a principalmente para tocar, como quem toca um instrumento. E a faca servir-se do homem, apunhalando de vez em quando um pedaço de carne.

Onde é impossivel voltar

De carro. De volta a casa depois de uma noite de copos, drogas e muita música. O carro não tem rádio de forma que estamos em silêncio. Uma conduz e a outra certifica-se que estão ambas acordadas. A luz passa pelas cores mais quentes de que é feita a manhã e acabam, atráz de nós, no azul mais intenso. Duas montanhas separam-se e mostram o sol que nasce esplendoroso. A estrada tem uma nublina espalhada junto ao chão muito suave. Por entre a nublina vêm-se as lebres junto à estrada e os veados mais afastados. Tudo é silêncio e o carro é um intruso momentâneo rapidamente esquecido: olho para o vidro de trás e as lebres voltam imediatamente à estrada que abandonaram lentamente para nos deixar passar.
-Morreriamos ambas em perfeita felicidade neste preciso instante, não achas? Sorriu e eu tomei esta expressão por resposta.

Korosti e Marsake

O Sr. Korosti tinha sido, desde a juventude, caixeiro viajante. Prenoitava aqui e ali e assim compreendeu a surpreendente variedade da diversidade humana. Tinha esta capacidade de viajar incansavelmente durante dias, meses, de estado para estado e dizia que por vezer tinha também viajado no tempo. Sempre que voltava à sua terra, juntava-se com amigos, no bar da esquina da casa que partilhava com a esposa e dois filhos, e contava as aventuras entusiasticamente. Os amigos seguiam os relatos como quem assiste fascinado a um filme de aventuras que, embora ficcionado, é baseado no momento de uma vida real. O objecto do seu negócio era contudo o menos importante e ninguém sabia sequer de que se tratava, nem a família.
Hoje era um homem reformado. Viajava somente para visitar antigos clientes, agora amigos. De entre as suas relações contava-se um velho senhor, ermita e inventor, o Sr. Marsake. Ainda faziam as velhas diabruras de sempre, testando maquinetas e engenhos e sobretudo viajando no tempo, melhorando sempre mais a sua própria existência. Todos os passados eram conhecedores dos seus futuros e vice versa. Conscientes das limitações do corpo e de que na vida só se pode seguir um caminho de entre as multiplas opções que se apresentam a cada momento, o Sr. Korosti e o Marsake, ainda assim, eram donos do seu destino.

Campus

Encontrava-se sozinho na biblioteca, já passava das 11pm. Redigia um trabalho para ciências politicas e relações internacionais. À hora de fechar soou o alarme - eram 11.25pm. Ele dobrou os cadernos, tapou as canetas, limpou a mesa de aparas do lápis com a manga da camisa, vestiu o sobretudo, entregou os livros e requisitou mais três. Passou depois pelos corredores que o levavam até ao exterior. Estava uma temperatura morna, própria do final do verão. Começou a caminhar sem urgência; puxou de um cigarro e seguiu tranquilamente para casa. Ainda antes de sair do terreno da biblioteca, avistou ao longe R e acenou-lhe. Quando ela o viu e reconheceu, começou a correr. Em fuga, ia caindo aos trambolhões com a atrapalhação.

Um ano depois, R foi notícia de primeira página. Tinha sido encontrada emparedada por um colega de turma que em sua dfesa apenas disse que se sentia rejeitado pelas raparigas do campus universitário, e em especial por R.

Modernismo

A culpa moderna surge nos humanos quando têm como objectivo retirar do mundo tudo o que lhes é devido - a melhor maneira que o mundo tem de se defender é manter essa culpa em andamento.

O entendimento pela arte

Fora de casa estava mais quente do que dentra das quatro paredes. Ausente, perdida nos pensamentos, uma mulher sai da sua minúscula casa, fria e humida e vagueia pelas ruas. Guiam-na os próprios pensamentos e perde-se na direcção dos passos. Encontrou dois extra-terrestres que diziam ser da Arkertra. Pediu-lhes um conselho, tinha um dilema. Foram os três tomar café a um lugar muito sinistro mas o único das redondezas onde se estava bem dentro de portas e aberto aquela hora. Os membros da Arkestra tinham uns fatos muito estranhos e todos os olhavam. A mulher, por forma a explicar-se claramente - afinal eram extra-terrestres, teve que organizar as ideias e foi à casa de banho. Quando todos se sentaram à mesa nada mais foi falado para além de música. Nada mais foi ouvido também. Tomaram um café quentinho.

O Clinique reinventado

O desperdício de comida dos restaurantes de luxo, extremamente caros portanto, é uma preocupação séria para os vizinhos das imediações. O que não é preservavel até ao dia seguinte (quase tudo), depois da hora de fechado, fica embalado em caixas especiais, deixado no exterior, até à passagem dos lixeiros. Muitas pessoas sabem ali estar os restos das iguarias mais deliciosas que possivelmente encontrarão. As visitas a estes contentores especiais são habituais para a classe pós-média, ou seja, para os que um dia tiveram uma situação económica razoável e estável com aspirações a alcançar sempre mais na vida. Vejamos, nem as aspirações nem o sentido pelo que é bom, e portanto caro, foram perdidas, a estabilidade e poder económico é que sim. Estes seriam sempre restaurantes interditos a esta classe mas nna sua nova situação, em que tudo é permitido, a porta das traseiras gradualmente se apresenta como entrada para um jardim das delícias em segunda mão. É este sentido de já usado, de segunda mão, segunda oportunidade até, que protege a classe pós-média da depressão colectiva e a motiva a avançar na vida de forma criativa. A seguir à hora de fecho, nas traseiras, por exemplo, do Clinique em Londres, os pacotes e sacos abrem-se e o banquete começa, muito silencioso e composto de pessoas que se querem a todo o custo anónimas entre si e para todos os demais. Aos vizinhos das redondezas preocupa este vulto negro colecivo que aparece, demora-se meia a uma hora e logo desaparece. Ao que parece, o murmurinho do movimento físico dos corpos na vasculhação, mastigação, entrada e saída bem como a energia colectiva que este encontro gera é causadora de uma instabilidade que afecta as boas vizinhanças destes bairros cosmopolitas.

Ocasionalmente em conversa

Duas amigas encontram-se ocasionalmente. Sentadas em frente ao mar trocam algumas frases e contemplativas lembram-se dos anos que passaram juntas, uma como parte observante da vida da outra. Não precisam de descrições ou explicações. Frases de construção simples são chave que abrem as portas, das memórias de determinados momentos.
Estão em silêncio durante um longo tempo. Por fim, a que estava vestida de branco, pergunta: e agora?
Tinham criado assim, ali, a observar as ondas do mar de Inverno, um ponto de mudança por retrocederem no tempo recorrendo à memória. A que se vestia de branco segurava um guarda-chuva e assim protegia ambas da chuva ainda que fraca que nesse final de tarde esbatia a luz. A outra, vestida de amarelo, trazia um objecto branco que cativava os raios de luz e reflectia-os.
Esquecidas, perderam a maré que aos poucos tinha subido.

Ser feliz

Num antiquário já há muito esquecido existia uma arca que muito caçadores de objectos raros procuravam. O proprietário do antiquário, embora muito velhinho, nunca fechava o establecimento ou se incomodava com as raras visitas . A arca era na verdade uma caixa muito simples mas à volta da qual tinha sido criada uma fabulosa história tão mítica quanto antiga. O mito descrevia a caixa como um objecto grande, sumptuoso, de tal forma que a real aparência da caixa tinha sido esquecida. Os caçadores procuravam não um objecto mas uma ideia e o mito bem como o desconhecimento deste velho antiquário que se aparentava desinteressante até para o ocasional ladrão, eram a protecção do seu conteúdo. A caixa continha, por assim dizer, o segredo da felicidade entre as pessoas. Como um oráculo responde certeiramente, embora de forma enigmatica, a uma pergunta se esta lhe for colocada, a caixa respondia com objectos, novos e inesperados de cada vez que era aberta. A pessoa que abria a caixa, ao usar o objecto sentia-se renascer encontrando assim a resposta que lhe proporcionava a felicidade.

De: sem volta

Entrei em contacto com a outra que era a nova namorada de um caso em que perdi. Liguei-lhe sem saber bem porquê. Nas primeiras palavras reconheci uma voz muito familiar: vens almoçar, perguntou-me. O meu número constaria já na sua lista telefonica? Porque razão esperava já a minha chamada e com tanta simpatia e intimidade? Respondi-lhe que não. No entanto estava pouco convencida da resposta e muito incapaz de me decidir a perguntar quem ela era. Pensei ouvir a voz do meu filho, ainda bebé do outro lado do telefone. A criança estava à minha frente e dormia, impossivel portanto. Olhei para o número dela escrito no meu telemóvel, o mesmo para onde ligara e que tinha sido apontado a correr com medo de ser apanhada a mexer no que não me pertencia. Era o meu número antigo e esquecido faz dois anos.
O caso perdido: acabamos há uma semana porque eu estava diferente. Ele foi para casa dela. Um romance que tinha começado misteriosamente, assim de repente e sem avisos nem suspeitas.

Acidente

Quando é que uma boa ideia se verifica como tal?
A caminho da mesa deste computador surgiu a imagem de uma mulher, cujo marido, vitima de esclerose múltipla, se move através de uma cadeira de rodas. Penso na tristeza que lhe causaria vê-lo definhar. E depois na falta de possibilidades para pagar a medicação. Surge então a solução: a mulher consegue que ele seja contratado para contracenar como doente num filme, já na fase terminal.

ISQUEIRO receptor de mensagens internacionai

No domingo à noite encontrava-se completamente esgotada por se ter esforçado tanto para se distrair do facto de estar sozinha. Achou melhor telefonar-lhe - mesmo que soubesse que não iria ser bem recebida. Levantou o auscultador e esperou que desse o sinal, depois marcou o número que sabia de cor, rodando o disco com o indicador. Encostou-se à parede e deslizou até ao chão, esperando que C a atendesse. Não houve resposta do outro lado da linha.

Arrastou-se então com o telefone puxando a linha até ao sofá. Pousou-o na mesa e voltou a tentar, rodando o indicador com um ritmo regular, como se fosse possível ser responsável por um gesto impessoal. C atendeu de imediato – “então, como estás?”
Ela foi apanhada de surpresa – estava na realidade completamente rendida ao facto de estar sozinha há horas, dias.
- “Estou bem, queria saber como está o pequeno H?”
- “Está bem, adapta-se às alterações que as nossas vidas sofrerão...”
- “Sim, ainda bem, obrigada!”
- “Até breve, ...”
Terminando a chamada C pousa o telefone. Estava transtornado e corre em direcção a P e a H e comenta-lhes:
- “É insuportável ouvi-la, zzzzxxx, espero que não pense em voltar atrás, zzzzxxxx, não há espaço para ela, zzzzzzzzxxxxxxxxxxxx, não é mais possível mantê-la...

O telefone não estava pousado e o som entrou nos orifícios a toda a velocidade e atravessou a extensa geografia que os separava. Do lado de cá da linha, com o telefone desligado, sentada no sofá, ela ouviu tudo a ser transmitido, não pelo telefone que de facto ela tinha desligado, mas do isqueiro! O metal de que era feito, era um verdadeiro transmissor sonoro. Ficou arrasada – não com a mensagem, mas com o fenómeno que se estava a passar. Agarrou-se ao isqueiro para interceptar sons, como se fosse um rádio. Não se sentia menos sozinha, mas pelo menos estava mais ocupada.

Jardim

Um jovem rapaz visita o jardim botânico onde cientistas estudam a face aberrante de certas formas de vida vegetal. Ele levava consigo um caderno e um lápis bem aguçado para poder fazer alguns esboços de carácter e tema livres. Entra numa estufa, logo depois do roseiral, passando pelos tanques das aquáticas. Aí, começa a examinar superficialmente aquele amontoado de massa verde que aos seus olhos lhe parece confuso e o deixa enjoado. Avança com o lápis de modo a pôr alguma ordem no seu pensamento através do desenho, mas adormece. Tinha ficado de pé, imóvel, com o olhar direccionado para o primeiro objecto do seu desejo de representar - um cacto em forma de soldado.

Pai

Um locutor de rádio tenta convencer os ouvintes, em directo, que possui a capacidade de controlar o som com a mente. Deu exemplos concretos, alguns até estúpidos da utilidade de tal competência, que lhe valeram inúmeros telefonemas: pedidos de ajuda na resolução de casos sonoros irremediáveis, pedidos de informação para o desenvolvimento cientifico da matéria, felicitações, etc.. Um telefonema muito especial surgiu, era o seu filho. “Pai, queria-te dizer que eu controlo a mente com o som”.

Besta

Um homem vivia numa aldeia à beira mar. Entrou numa zaragata com alguns dos habitantes, de tal forma que lhe tentaram incendiar a casa. Para se proteger começou a escavar o solo delimitando uma área que considerava suficiente para habitar. Depois de dias de escavação aquele pedaço de terra soltou-se e entrou mar adentro.

Mas o mar também não o queria lá e disse-lhe: “Tenho motivos para duvidar que tenhas um bom carácter.” Assim, revirou o homem e a sua ilha ao contrário, de forma a que este vivesse ainda mais isolado, e pudesse pensar no seu carácter com tranquilidade, sem distracções. No entanto o homem, com o tempo, transformara-se numa besta e com toda a sua ira criara todos os desastres marítimos provocados por causas naturais.

O mar arrependeu-se de o ter julgado mal e pediu-lhe perdão antes que mais algum desastre tivesse para acontecer. O homem, transformado em besta, disse: “alimento-me dos bocados dos náufragos e pedaços de madeira podre dos barcos, bebo óleo e tua água salgada, o teu juízo foi fraco, mas agora está correcto”.

PAPOILA

Uma flor vermelha cometera suicídio colocando-se transversalmente debaixo da roda de um camião. Todas as flores que a conheciam choraram o infeliz acontecimento. Na data marcada para o funeral, a flor defunta ia vestida de branco por cima de vermelho e todas as outras iam de preto.

Na entrada do cemitério, com todo o cortejo atrás, ouviu-se uma voz que disse: “plantas não passem esses portões, pois não me parece adequado que prestem qualquer tipo de homenagem a esta planta”.

As flores em conjunto responderam: “A papoila era um ser frágil, não tivemos culpa do que aconteceu”. A mesma voz respondeu: “Encostai-vos a esses portões e não penseis sequer em atravessa-los”.

Todas as flores se moldaram às grades e aos poucos foram-se lembrando da relação conflituosa que mantinham com a papoila. O tempo pôs-se frio, mas elas mantiveram-se em silêncio e em contemplação. Pensavam, cada uma para si mesma, “terei sido eu?”.

Com o passar do tempo - já a papoila tinha sido enterrada - chegou o frio e com ele todas as flores ficaram azuis e foram-se tornando trepadeiras. Espalharam-se inclusive onde houvesse grades.

A forma que arranjaram em conjunto para se livrarem do mal que fizeram foi melhorando o seu potencial alucinatório.

Uma curta história social

Um homem de preto contempla o mar cinzento e o céu coberto de nevoeiro. É manhã cedo e nada mais há que quebre a monotonia da paisagem. O homem de preto, singular ponto que se destaca dos tons azuis e cinzentos da paisgem encontra por fim uma gaivota, singular ponto branco. Ele caminha e ela debica um peixe apodrecido. Levanta o bico e cumprimenta-o. Ele cumprimenta-a também e põe a mão no revólver que traz dentro do bolso.
Dois minutos se passaram, os pontos seguiram o seu percurso.
Num helicóptero ultra silencioso uma mulher de vestido vermelho, suspensa por um cabo de metal, desce à praia. Nem ponto preto nem ponto branco dão pela sua chegada. Com um movimento degola a gaivota que mais tarde terá a mesma sorte que o seu peixe porque será comida pelos seuas pares. Com um segundo movimento afoga o homem que mais tarde será encontrado, e se tornará notícia de jornal, capa de revista e assunto de última hora e hora extra televisivos.
Pertencendo à sociedade secreta dos vermelhos, a mulher não faz parte desta história porque dela não há vestígios. O helicóptero ultra silêncioso leva-a, uma vez a missão cumprida, para a caverna super hi-tech (para além da compreenção do comum dos morais) que se situa numa falésia e que tem um castelo em cima onde a mulher, normalmente vestida de várias cores, é princesa.

Missão de salvamento

Na sua missão de bombeiro Joe vai a caminho de salvar a rapariga em apuros que está presa na varanda do terceiro andar e aos gritos.
Salta! Gritavam os outros bombeiros cá de baixo com a cama já armada para a segurar na queda. Confia, nada te acontecerá. Salta!
Não a convenceram e é por isso que o Joe vai já a caminho, pelas escadas acima, quase a chagar ao segundo andar.
Entra no quarto que tem a varanda com a rapariga. Está em chamas. Grita-lhe - Hey! Ela olha mas vira-se de volta para fora, de costas para ele. Tem que a ir salvar, tem que passar pelas chamas. De uma corrida chega à varanda e agarra-a - Vais saltar comigo! Não vou, não quero, diz ela, vai tu! Que reacção tão estranha. Joe está confuso. Em segundos, enquanto tenta lidar com a presente situação, deveras estranha, é empurrado da varanda a baixo e vem cair na cama que serve para salvar raparigas em apuros e gatos descuidados. O bombeiro salvou-se. A rapariga ficou sozinha. A situação é descuidada - o Bombeiro devia estar melhor preparado para compreender rapariguas que a todo o custo, mesmo aos berros, mantêm as suas convicções.