Acaso não é perigo

Começo por dizer que o deserto não é um cenário escolhido ao acaso – ocorre-me sempre que imagino uma situação seriamente dramática embora não jogue muito com simbolismos quando escrevo.

Eu tinha vestido uns calções e um casaco de cabedal por cima de uma camisa de mangas cortadas rentes ao ombro e caminhava sozinho em busca de uma aventura. Havia cactos e terra seca polvilhada num grande plano horizontal que não tinha fim. A cor era ocre, género caramelo - estranha para quem vive em grandes cidades como eu e já não se recorda de ver um torrão de pó, nem das cores da natureza. Encontrei um hotel e entrei. A aventura que procurava era um encontro com o perigo. Um tipo de perigo que nos becos e nas más horas da minha cidade não encontraria.

Subi duas vezes ao quarto com uns tipos, voltei a subir para uma festa privada, bebi demasiado e acabei por cair, de seguida fui socado e retalhado com restos de vidro por uns camionistas que não gostaram do meu estilo, fui salvo pelo recepcionista que me levou para um quarto para me recompor, tomei um banho, limpei os ferimentos e finalmente dormi.

Acordei com uma enorme cobra enroscada a mim com óculos de sol com lentes escuras espelhadas a fumar, enquanto uma forte e maravilhosa luz de fim de tarde me entrava pelo quarto. Ela lambia-me a face e eu, ingenuamente e sem reflexão alguma, enquanto isso, a agarrava com força aliviado por sentir algum carinho. Quando me levantei, ainda que incrédulo, fazendo os rituais de qualquer acordar em casa, vesti as calças e arrastei-me em tronco nu até à janela. Vi uma cidade imensa onde podia jurar que há pouco, na véspera, era um deserto. Abri os braços e pensei “apetece-me agarrar-te também, ó grande cidade do Sol”. E deixei-me ir num imenso abraço.