Cristaleira

Numa sala cheia de convidados realiza-se uma sessão de espiritismo através de um copo, um espelho e papelinhos com palavras e números, muito bem ordenados. A proprietária, uma senhora com um lenço vermelho de seda muito aprumada, pede para ser a primeira a estrear a sessão.
- “lepra, estás-me a ouvir, porque morreste?”
O copinho de vidro move-se com a pressão dos dedos na quase completa escuridão.
- “n-ã-o m-o-r-r-i!”
Todos sabiam que “lepra” era o caniche da casa e ficaram perturbados. Lembravam-se bem do caniche a rodopiar pela sala ou ao colo da senhora com um elegante laço idêntico à sua companheira. Começou-se a ouvir um murmurinho; perguntavam-se o que se estaria a passar.
- “lepra onde estás tu? Como é possível não teres morrido?”
- “c-r-i-s-t-a-l-e-i-r-a!”
- “rápido, procurem-na! estará aqui?”
Todos se afastaram abrindo caminho menos Marte, um homem de cinquenta anos admirador de álcool e eterno pretendente sem resposta da senhora.
- “Não abras”, diz-lhe Marte.
- “lepraaaaa”, dirigindo-se para a porta da cristaleira das bebidas com uma chave.
Abrindo a porta não encontra nada, só bebidas, copos e bases de cortiça. O ambiente é desolador. Estupefactos com a agitação, os convidados despedem-se à vez e retiram-se para suas casas prometendo uma próxima oportunidade.
A senhora procura consolo no ombro de Marte, agarra-o com força e pergunta-lhe:
- “A que se deveu este episódio?”
- “Querida, penso que o meu desejo por uma bebida foi mais forte que eu...”